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Um centro de educação e formação de adultos que aprende

A centre of adult education and development that learns

Resumos

O presente artigo resulta de uma investigação etnográfica realizada junto de uma equipe técnica de educação de adultos de um centro de educação e formação do norte de Portugal. Um dos objetivos dessa pesquisa, retratado no presente texto, foi tentar perceber se e como uma equipe de educação de adultos pode ela própria aprender em local de trabalho e, dessa forma, tentar verificar se a instituição que enquadra a sua atividade se constituía como uma organização que aprende. Os resultados mostram que essa equipe aprende de diversas formas no desenrolar da sua ação e que está presente, naquele contexto, uma forte dimensão coletiva da aprendizagem. Na base desse processo estão suas regras de ação, ou seja, as formas características de fazer naquele local: a entreajuda, a reformulação do fazer, a generalização do fazer, os processos de reflexão na e sobre a ação. Perante tais resultados, concluise que estarmos perante uma comunidade de aprendizagem e uma organização que aprende.

Aprendizagem Organizacional; Técnicos; Educação de Adultos


This article results from an ethnographic investigation carried out in a technical team of adult education in an educational and development centre in the north of Portugal. One of the aims of this research, reported in this article, was the attempt to understand if and how a team of adult education can itself learn in their working place and in this way, try to verify if the institution, which frames its activity, may turn into an organization that learns. The results show that this team can learn in many different ways during the development of its action and that, in such a context, a strong collective dimension of learning is present. In the base of that process are the action rules, that is, the characteristic forms of doing in that particular place: mutual help, reformulation and generalization of doing, and the processes of reflection in and on the action. Before such results we may come to the conclusion that we are in presence of a learning community and an organization that learns.

Organizational Learning; Technicians; Adult Education


ARTIGOS

Um centro de educação e formação de adultos que aprende

A centre of adult education and development that learns

Armando Paulo Ferreira Loureiro

Doutor em Sociologia da Educação pela Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro (Portugal); Professor Auxiliar do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; Investigador do Centro de Investigação e Intervenção Educativa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (Portugal). Email: aloureiro@utad.pt

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Departamento de Educação e Psicologia Rua Dr. Manuel Cardona 5000-558 Vila Real – Portugal

RESUMO

O presente artigo resulta de uma investigação etnográfica realizada junto de uma equipe técnica de educação de adultos de um centro de educação e formação do norte de Portugal. Um dos objetivos dessa pesquisa, retratado no presente texto, foi tentar perceber se e como uma equipe de educação de adultos pode ela própria aprender em local de trabalho e, dessa forma, tentar verificar se a instituição que enquadra a sua atividade se constituía como uma organização que aprende. Os resultados mostram que essa equipe aprende de diversas formas no desenrolar da sua ação e que está presente, naquele contexto, uma forte dimensão coletiva da aprendizagem. Na base desse processo estão suas regras de ação, ou seja, as formas características de fazer naquele local: a entreajuda, a reformulação do fazer, a generalização do fazer, os processos de reflexão na e sobre a ação. Perante tais resultados, concluise que estarmos perante uma comunidade de aprendizagem e uma organização que aprende.

Palavras-chave: Aprendizagem Organizacional; Técnicos; Educação de Adultos.

ABSTRACT

This article results from an ethnographic investigation carried out in a technical team of adult education in an educational and development centre in the north of Portugal. One of the aims of this research, reported in this article, was the attempt to understand if and how a team of adult education can itself learn in their working place and in this way, try to verify if the institution, which frames its activity, may turn into an organization that learns. The results show that this team can learn in many different ways during the development of its action and that, in such a context, a strong collective dimension of learning is present. In the base of that process are the action rules, that is, the characteristic forms of doing in that particular place: mutual help, reformulation and generalization of doing, and the processes of reflection in and on the action. Before such results we may come to the conclusion that we are in presence of a learning community and an organization that learns.

Keywords: Organizational Learning; Technicians; Adult Education.

1. INTRODUÇÃO

Os contextos de trabalho são, diversas vezes, apontados como locais de aprendizagem, de educação para quem neles exerce suas actividades (PAIN, 1990; TANGUY, 1991; CANÁRIO, 1999; SENGE, 2002; CORNU, 2003). Mas, como se aprende, efetivamente, ou pode aprender, em contexto de trabalho? Como se aprende em equipe e que processos de aprendizagem estão implicados nesse fenômeno?

Essas são questões que estão presentes neste artigo e às quais se procura responder, em termos empíricos, partindo de um estudo etnográfico de caso concreto: uma equipe técnica de educação de adultos que trabalha num Centro de Educação e Formação no norte de Portugal1 1 O artigo e seus resultados são apresentados com base numa investigação mais ampla, que resultou numa tese de doutoramento na área da Sociologia da Educação, defendida na Universidade de TrásosMontes e Alto Douro/Portugal, em dezembro de 2006. . Assim, identificar as principais modalidades por meio das quais o trabalho se revela educativo e salientar o caráter coletivo da aprendizagem naquele contexto são os principais objetivos deste texto.

Do ponto de vista teórico, esses propósitos são aqui enquadrados pelas teorias da aprendizagem organizacional (ARGYRIS; SCHÖN, 1978; SENGE, 2002). Teorias que estão fortemente ligadas às da aprendizagem situada (LAVE; WENGER, 1999), experiencial (DEWEY, 1971; KOLB, 1984) e, claro está, da aprendizagem social (WILDEMEERSCH et al., 1999; WENGER, 2001).

O artigo começa por fazer breve discussão teórica das temáticas que balizaram o estudo. Na segunda seção, esclarece-se o procedimento metodológico usado e realiza-se uma breve caracterização da equipe estudada. Em seguida, apresentam-se os principais resultados obtidos e, por último, tecem-se algumas considerações finais.

2. AS ORGANIZAÇÕES QUE APRENDEM

Falar dos contextos de trabalho como locais de aprendizagem coletiva remete, entre outras, para as abordagens da aprendizagem organizacional. Existem várias definições das organizações que aprendem. Argyris e Schön (1978) foram dos primeiros autores a preocupar-se com essa questão. Para eles, uma organização que aprende é aquela que, face aos erros detectados, em vez de produzir simplesmente uma resposta adaptativa à situação (modificando as estratégias, mas não questionando os objetivos da ação – aprendizagem de circuito simples), problematiza e, se necessário, modifica as normas, os valores e os objetivos que orientam a ação dos atores e da organização, aprendendo, dessa forma, a antecipar o futuro (aprendizagem de circuito duplo), é aquela que, por meio da cooperação dos seus membros, adquire e usa novos conhecimentos, capacidades e valores para fazer face ao inesperado, quer esses conhecimentos sejam provenientes do interior da organização ou do seu exterior, necessitando todo esse processo um exercício de explicitação por parte dos membros da organização das suas teorias da ação e da interpretação realizada acerca da informação recebida (ARGYRIS; SCHÖN, 1978; ARGYRIS, 1994, 2003; SCHÖN, 1998).

Senge (2002) é outro autor que muito contribuiu para a disseminação do conceito de organizações que aprendem. Essas são

organizações nas quais os membros expandem continuamente a sua aptidão para criar os resultados que desejam, onde se criam novos e expansivos padrões de pensamento, onde a aspiração colectiva fica em liberdade, e onde os membros aprendem continuamente a aprender em conjunto (SENGE, 2002, p. 11).

São organizações que veem e fazem "da aprendizagem contínua uma faceta vital da sua gestão" (SENGE et al., 1998, p. 6). Sallis e Jones (2002) realçam a importância que assume a gestão dos conhecimentos e saberes nas organizações que aprendem, o mesmo salienta Argyris (1994), ao referir-se à importância da gestão dos sistemas de informação nesse tipo de organizações.

Craig (1996), citado por Roca (1999), diz que uma organização que aprende é um grupo de pessoas, uma comunidade, que continuamente incrementa sua capacidade para criar aquilo que quer criar. Esse último autor afirma que a aprendizagem organizacional ocorre quando se aprende como se faz aquilo que se faz, quando aquilo que se aprende é possuído pelo conjunto de indivíduos de uma organização. Bolivar (1997, p. 83-84) salienta que a organização que aprende "é a que tem uma competência nova, que a capacita para, ao aprender colegialmente com a experiência passada e presente, resolver criativamente os seus problemas", salienta ainda a importância que tem, nessa resolução de problemas, o "conjunto de conteúdos (saberes técnicos, procedimentos e modos de fazer)" e "os processos (intercâmbio mútuo, retenção e disseminação/utilização)" mobilizados. Poell e Tijmensen (1999) remetem o conceito para a forma de interligar trabalho e aprendizagem, de forma a tornar a organização eficiente e flexível. Esse tipo de articulação poderá passar pela formação intencional dos membros da organização.

Efetivamente, os locais de trabalho podem ser educativos pelos momentos de educação não-formal proporcionados aos trabalhadores. Esses momentos podem assumir diversas formas, desde a presença em seminários até a frequência em cursos de formação. Eles são considerados como pontos de contato com a teoria, com o conhecimento abstrato. Existem diversos estudos que, com preocupações diferentes, se referem a esse aspecto de forma direta ou indireta (CANÁRIO, 1997; SAINSAULIEU, 2001; WENGER, 2001). Em Portugal, há várias investigações que procuraram estudar as modalidades formativas dos contextos de trabalho e que se referem à educação não-formal desenvolvida nesses contextos: no setor da saúde, mais precisamente junto do grupo dos enfermeiros, podemos referir os trabalhos de Botelho (1993), citado por Canário, (1997), de Wilson (1997) e de Luís (2003); no setor bancário, temos, por exemplo, o trabalho de Coelho e Moura (1998).

Para se chegar a esse tipo de organizações é necessária a implementação de alguns passos. Senge (2002) defende que é necessário: existir um pensamento sistêmico, ou seja, o desenvolvimento de um tipo de pensamento que relacione todas as partes de uma situação, descobrindo as interligações ocultas entre elas; um domínio pessoal sobre as atividades, ou seja, a existência de uma aprendizagem que expanda a capacidade pessoal dos membros da organização para conseguirem os resultados que desejam e, dessa forma, pela aprendizagem individual dos membros, se atingir a aprendizagem organizacional; trabalhar os modelos mentais, isto é, implementar a aprendizagem de um exercício reflexivo que ponha em causa as visões internas dos indivíduos, que promova a planificação da ação; a construção de uma visão partilhada, quer dizer, promover o envolvimento genuíno dos membros nos objetivos da organização; e uma aprendizagem em equipe, isto é, fazer com que se dê uma transformação da atitudes coletivas, por forma a que os grupos tenham capacidade maior que a simples soma das capacidades individuais dos seus membros, o que passa pela promoção do diálogo que permite a descoberta de percepções coletivas que individualmente seria impossível de descobrir, permite que as pessoas aprendam a observar os próprios pensamentos, permite chegar a pontos de vista novos, e também passa pela promoção da discussão produtiva, ou seja, aquela que permite explanar pontos de vista diferentes por forma a chegarse a uma conclusão e tomar uma decisão.

Sallis e Jones (2002) salientam igualmente a relevância do diálogo e da conversação na vivência das organizações que aprendem. As conversas educativas, que podem ocorrer no decorrer da ação ou em espaços/tempos propositadamente criados para o efeito, permitem, por meio da reflexão sobre a experiência da organização, construir e expandir a memória coletiva dessa mesma organização.

Para Bolivar (1997), um dos elementos essenciais desse tipo de organizações é precisamente sua memória organizacional. Ela é entendida como um forte recurso de aprendizagem, porque diz respeito ao conjunto dos saberes, essencialmente tácitos, adquiridos, armazenados e usados pela organização. Assim, a aprendizagem é também aprender com a experiência passada. Essa memória encontra-se em documentos, procedimentos-padrão, modos de relacionamento entre pares, na estrutura física da organização e também nas representações dos seus membros sobre a realidade. É ela que selecciona o conhecimento a ser usado, que influencia a interpretação dos acontecimentos e o que deve ser feito.

Nas considerações desses autores estão presentes, entre outros aspectos, dimensões claras das aprendizagens experiencial, situada e social, que são também elas mobilizadas várias vezes para se abordarem os contextos de trabalho como locais de aprendizagem.

Efetivamente, é frequente abordar o trabalho como local de aprendizagem a partir da prática e da experiência profissional ou ocupacional. Aprender pela prática e pela experiência, ver a experiência como um recurso de aprendizagem é, assim, uma das formas pelas quais os contextos de trabalho podem ser encarados como locais educativos. Por isso, falase da aprendizagem pela prática (MALGLAIVE, 1995; 1997), pela experiência (CORNU, 2003), da atividade como fonte de experiência e aprendizagem (FALZON; TEIGER, 2001), da formação experiencial no trabalho em geral (BARBIER; BERTON; BORU, 1996; AMIGUINHO et al., 1997), ou nas empresas (OLLAGNIER, 1991), por isso se defende que a aprendizagem em local de trabalho exige tempo e experiência (HARGREAVES, 2000).

A experiência é, desde há muito, indicada como fonte de aprendizagem (DEWEY, 1971). Mas, como refere esse autor, nem todas as experiências são educativas, elas podem ser até "deseducativas", "tudo depende da qualidade da experiência por que se passa" (DEWEY, 1971, p. 14-16). Para ser educativa ela deve articular passado, presente e futuro e essa articulação se assenta no processo de organização da experiência, no processo de reflexão que extrai das experiências passadas "os significados positivos, que irão constituir o capital para se lidar inteligentemente com posteriores experiências" (DEWEY, 1971, p. 92-93). Ela deve também procurar ligar o que resulta da experiência prática aos princípios explicativos e gerais do conhecimento e método científico.

No mesmo sentido vão as apreciações de Kolb (1984), que defende que a experiência é um importantíssimo recurso da aprendizagem, mas também diz que, para poder ser considerada educativa, ela terá de passar por um processo de transformação. De acordo com esse autor, a aprendizagem experiencial é um processo de criação de conhecimento realizado a partir da tal transformação da experiência. Esse processo de aprendizagem passa por quatro etapas que compõem o ciclo da aprendizagem experiencial: a experiência concreta; a observação reflexiva sobre a experiência; a elaboração de generalizações realizadas com base nessa reflexão e a criação de hipóteses; e a experimentação ativa, que é a verificação concreta das hipóteses criadas que conduzem a novas experiências.

Mialaret (1996), referindo-se aos docentes, também afirma que a experiência pode ser fonte rica de educação ou não, ela pode inclusive ser atrofiadora, esclorosante. Ela é rica quando faz com que o docente reflita sobre o que faz, quando os insucessos são analisados, avaliados e vistos como recursos para melhorar a própria ação. Nesses casos, há procura de soluções para os problemas surgidos, que pode levar à articulação entre prática e teoria, os efeitos das ações são analisados em função de todas as variáveis em presença, faz-se, portanto, uma análise sistêmica da situação. Quando isso acontece a experiência torna-se altamente educativa. Pelo contrário, ela é esclorosante quando o docente pensa que a sua prática não necessita de qualquer melhoramento e quando os insucessos são atribuídos a fatores externos. Nesses casos, a adaptação a situações novas é nula, a experiência profissional reproduz as mesmas formas de fazer e, dessa forma, ela não contribui para o seu próprio enriquecimento, logo, não é educativa.

Schön (1996) realça igualmente o papel da reflexão como fator de aprendizagem profissional, como fator de enriquecimento da experiência e de transformação desta em meio de educação profissional. Segundo ele, é essencialmente pela reflexão sobre a reflexão na ação que a prática e a experiência profissional podem ser melhoradas. Esse processo é visto pelo autor como um meio de formação de adultos e essa reflexão pode levar a vários tipos de aprendizagem: aprender pelo sucesso, ou seja, ser capaz de descrever, explicitar o saber tácito usado em determinada situação que resultou, realizar uma análise crítica das estratégias usadas, conseguir formalizar a experiência positiva; aprender pela experiência do bloqueio, isto é, conseguir identificar o processo de reflexão na ação que não lhe permitiu resolver o problema; aprender pela transferência reflexiva, conseguir usar determinado tipo de intervenção eficaz noutra situação comparável, por meio de um procedimento de "re-invenção da prática original" (SCHÖN, 1996, p. 219), da experiência tida; e aprender pela "formação profissional" (SCHÖN, 1996, p. 220), ou seja, quando um prático hábil ajuda outro prático a aprender o que ele sabe fazer, o que leva a um processo de questionamento interativo da própria forma de fazer e também ao desenvolvimento da capacidade de demonstrar e de descrever a forma de fazer.

Portanto, a experiência por si só pode não ser educativa (JARVIS, 1987; 1995; CANÁRIO, 1999). Para que a experiência presente possa ser educativa terá de se combinar com as experiências passadas (DEWEY, 1971; CANÁRIO, 1999; 2000) e futuras (DEWEY, 1971) e terá de ser observada criticamente, terá de ser objeto de reflexão (DEWEY, 1971; FREIRE, 1975; KOLB, 1984; ROGERS, 1995; CANÁRIO, 1999; 2000), de questionamento e de intencionalidade (AMIGUINHO et al., 1997). Questionamento que pode levar ao refazer da prática, ao repensar da experiência e à necessidade de se tornar a aprender, o que precisamente só é possível por meio da reflexão, do questionamento (FREIRE, 1975; MEZIROW, 1994; 1998).

Mas não basta refletir sobre a experiência, é necessário combinar essa reflexão, ou inserir nessa reflexão, elementos externos à própria experiência, como sejam, por exemplo, as leituras sobre o assunto em causa (ROGERS, 1995) ou os elementos e métodos do conhecimento científico (DEWEY, 1971).

Dessa forma, defende-se aqui que a experiência pode ser educativa para as organizações no seu todo quando os atores recorrem a ela de forma dinâmica, fazendo dela e da reflexão sobre ela meio para procurar novos saberes ou conhecimentos e assim refazer a experiência individual e coletiva.

Essa experiência desenvolve-se num local, ou em locais, de trabalho. A prática e a experiência estão assim situadas, tal como as aprendizagens realizadas. Dessa forma, é possível falar da aprendizagem efetuada em local de trabalho numa perspectiva próxima da teoria da aprendizagem situada de Lave e Wenger (1999), que não só referenciam o espaço, mas também o aspecto temporal e processual da aprendizagem, bem como a dimensão social da mesma, ou seja, a aprendizagem situada é vista como a participação em comunidades de prática (WENGER, 2001) e, por isso, é também aprendizagem social. De acordo com esses autores, as aprendizagens, as aquisições de saberes, passam pela participação num grupo que detém certa prática e competência, que é transmitida progressivamente aos que chegam de novo. O processo de aprendizagem realiza-se, assim, pela participação numa prática, trabalho e aprendizagem confundemse, acontecem em simultâneo. Gradualmente, graças à observação e a uma prática enquadrada pelos membros da comunidade, os novos membros vão começando a fazer parte efetiva dessa comunidade por meio da passagem de uma participação periférica a uma participação cada vez mais efetiva na prática. Assim, vão aprendendo a fazer, a estar e a ser membros dessa comunidade.

Cornu (2003), a propósito das formas de aprender em local de trabalho, apresenta-nos uma abordagem que se aproxima da dos autores anteriores. Ele salienta no processo de aprendizagem aquilo que designa por visão. Ver consiste no processo de aprendizagem que o trabalhador desenvolve a partir da observação do que os outros (mais experientes) fazem e como fazem, da audição do que os outros dizem sobre o que fazem, e do que os outros lhe mostram acerca do que e como fazem.

Nesses processos de aprendizagem coletiva, é essencial a comunicação e a cooperação entre os membros de uma comunidade (WILDEMEERSCH et al., 1999). A comunicação deve basear-se no princípio do controle multilateral, que assenta na interação colaborativa em que as ideias, as premissas dos atores se explicitam num clima de debate conjunto. A cooperação, dimensão intimamente relacionada com a anterior, exige uma negociação constante entre os membros do coletivo. Negociação aberta e pública que procura o equilíbrio entre o consenso e a falta dele no seio do grupo. Essas negociações são relativas aos objetivos e meios a usar para se atingir tais finalidades. Num coletivo, o mais natural é que existam diferenças de opinião, contradições, tensões, mas isso não deve ser impeditivo de levar o projeto adiante. Pelo contrário, essas tensões devem ser transformadas em fator produtivo, tal conseguese pelo processo de aprendizagem colaborativa, que torna as diferenças em pontos de união e promove a redefinição dos problemas de forma a encarar coletivamente a situação em causa. Portanto, num processo de aprendizagem social, é fundamental aprender a ultrapassar as tensões e contradições, e não a negligenciá-las.

Essa dimensão da aprendizagem social é evidenciada por outros autores, que nos falam da aprendizagem colaborativa como o aspecto fulcral desse tipo de aprendizagem (WELLS, 2001). A aprendizagem colaborativa ou, se quisermos, a heteroformação (PINEAU, 1991; 2001; HARGREAVES, 2000), realizada portanto entre membros de um grupo, uma organização, etc., é apontada como um aspecto fundamental para a constituição das comunidades de aprendizagem (AMIGUINHO et al., 1997; DIAS, 2002).

A ideia de comunidades de aprendizagem assenta na ideia das comunidades de prática de Wenger (2001), referida anteriormente. Para o autor, as comunidades de prática podem ser também comunidades de aprendizagem se a negociação de significado for um processo presente nessas comunidades. As comunidades de prática podem ser concebidas "como histórias de aprendizagem partilhadas" (WENGER, 2001, p. 115): assentes na participação e coisificação que dão forma à memória da comunidade; assentes na própria prática, ou seja, na aprendizagem das formas de desenvolvimento de um compromisso mútuo (desenvolver relações entre pares, aprender a participar, descobrir quem sabe o quê, etc.), de compreensão do empreendimento conjunto (aprender a responsabilizar-se individual e coletivamente por esse empreendimento), e de desenvolvimento do seu reportório (que implica um processo de renegociação do significado "de diversos elementos", de produção e adaptação de "instrumentos, artefactos, representações", de registo e de recordar de acontecimento, de "inventar novos termos e redefinir ou abandonar os antigos", de "contar e voltar a contar histórias" e de "criar e romper com rotinas" (WENGER, 2001, p. 125); e no encontro entre gerações de atores diferentes que vivem no seio da comunidade e que, precisamente por meio de alguns dos processos ligados à prática, desenvolvem o potencial educativo da comunidade, como sejam os relatos, as explicações sobre a prática.

Wenger (2001, p. 300, 309) defende que as comunidades de prática são essenciais às organizações que aprendem, pois "constituem o tecido social" da aprendizagem nas organizações, é nelas e no processo criativo de aprendizagem, "entendido como um sistema social produtor de novos significados", de negociação de significado, que as organizações que aprendem se devem basear. Roca (1999) também afirma que para ocorrer a aprendizagem organizacional, mais concretamente nos centros de formação, tem de se desenvolver a ideia de comunidades de prática.

Sintetizando, e tendo em consideração o referido, pode-se dizer que uma organização que aprende tem como principais características: o desenvolvimento contínuo de aprendizagens individuais e coletivas colaborativas que permitam a resolução de problemas; aprendizagens que podem resultar das experiências positivas e negativas da organização (portanto os erros serão vistos como fontes/oportunidades de aprendizagem), da implementação de novas formas de fazer e de pensar (tatear, experimentação, reflexão), da transferência da experiência de outros contextos; a aquisição e eficiente difusão de conhecimento junto de todos os membros da organização, de forma a ser integrado no coletivo e poder ser por ele usado; o diálogo e a discussão produtiva como formas de aprendizagem em equipe; e a partilha e a explicitação dos saberes implícitos.

Foi à luz desse enquadramento teórico que os dados apresentados em seguida foram analisados.

3. METODOLOGIA

A análise foi realizada com base no estudo etnográfico de uma equipe técnica de educação de adultos de um Centro de Educação e Formação de uma associação de desenvolvimento do norte de Portugal, limite geográfico definido para a realização da investigação. A etnografia é a tentativa de compreensão e tradução do outro (GEERTZ, 1994), é uma estratégia indicada para se confrontar o que se diz com o que se faz (ITURRA, 1987).

A escolha dessa associação e respectiva equipe técnica resultou de um processo demorado que passou pelo levantamento e pela análise das associações de desenvolvimento no norte de Portugal e pela seleção do caso considerado mais significativo para ser estudado em profundidade.

A unidade de análise foi, portanto, a equipe técnica acima referida, que era constituída por seis elementos, cinco dos quais do sexo feminino, com idades entre os 25 e os 45 anos. Todos tinham licenciaturas na área da educação ou da sociologia e possuíam experiência profissional.

O trabalho de campo decorreu durante meio ano. O Centro de Educação e Formação é um espaço constituído por uma recepção, pelo gabinete dos técnicos, por salas de formação, por uma sala de reuniões da equipe técnica, por uma sala para os formadores, por um Centro em Recursos de Conhecimentos, por dois gabinetes do pessoal administrativo e por um bar. Foi sobretudo no gabinete técnico que a maior parte das observações se fizeram. Mas a observação da atividade dos técnicos noutros espaços do Centro também ocorreu, tendo-se assistido, por exemplo, a diversas reuniões, a conversas que iam tendo com formandos e formadores nos corredores ou no bar.

A recolha da informação baseou-se, desta forma, na observação do que os técnicos estavam a fazer ou a dizer. Esse foi sempre o ponto de partida. Foi sendo a partir do que se via e ouvia que lhes foram colocadas questões de vários tipos. Tratou-se sempre dum perguntar contextualizado. O pedir de relatos também foi feito com base nesse princípio, ou seja, pediam-se relatos a partir de conversas ouvidas sobre fatos não-presenciados, a partir de conversas que eles tinham com o investigador e que levavam para o mesmo gênero de fatos. O mesmo se passou relativamente à recolha e à análise de documentos escritos, quer produzidos, quer usados por eles, ou seja, só foi objeto de análise o material escrito ao qual se referiram ou foi observado o seu uso ou produção. Assim, a base da recolha da informação foi a observação demorada, sistemática, e as conversas informais (entrevista informais) que com eles foram sendo efetuadas.

A estratégia de recolha de informação baseou-se, portanto, na observação que depois permitiu e exigiu o uso de outras técnicas, como as entrevistas (conversas) informais e a análise documental. Houve, assim, uma combinação de várias técnicas assentes na observação e no observador, que tem sido usada e/ou apontada como o esteio da estratégia etnográfica (ITURRA, 1987; MERRIAM; SIMPSON, 1989; BURGESS, 1997; CARIA, 2000; LAREAU, 2007).

Toda a informação recolhida foi sendo registrada sob o formato de notas de campo. Tais notas nem sempre foram registradas da mesma forma, nem no mesmo instrumento, muito embora o instrumento primordial tenha sido o bloco de notas, nem no mesmo local, embora o local privilegiado tivesse sido o próprio gabinete técnico. A informação foi sendo transposta de forma organizada para o diário de campo. Este era composto por: notas descritivas, que procuravam dar conta de tudo o que foi sendo observado, ou seja, dar conta do que se tinha observado em cada dia e que importava para o estudo; notas metodológicas, referentes a aspectos relativos aos instrumentos usados para recolher a informação, ao tipo de informação recolhida, às impressões e sentimentos do investigador e suas reflexões em torno da investigação, aos espaços de observação, à saturação da informação, entre outros aspectos; e notas empíricoteóricas, referentes a toda uma série de questões, interpretações e análises de índole teórica, referentes a uma primeira confrontação do que foi sendo recolhido com os temas teóricos.

O tratamento da informação foi feito em dois momentos distintos: as primeiras interpretações dos dados foram feitas ainda durante o tempo de permanência no local de observação, interpretações que permitiram ir dando conta dos primeiros e provisórios resultados da investigação aos técnicos; as análises mais profundas foram realizadas já depois de se ter deixado o campo. O tratamento da informação assentou na sua triangulação. Isto é, na triangulação das interpretações do investigador com a visão dos técnicos, e no cruzamento da informação entre o discurso escrito e o discurso oral dos técnicos. Quer os discursos de origem oral, quer os de origem escrita, foram tratados através da análise de conteúdo.

4. UM CENTRO DE EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO QUE APRENDE

Nesta seção apresentam-se os principais resultados da investigação, começando por se fazer uma breve alusão às atividades da equipe técnica, passandose, depois, à análise da questão da aprendizagem em contexto de trabalho.

4.1. A atividade

O trabalho da equipe técnica organiza-se em torno de cinco tipos de atividades: técnicas, que incluem o diagnóstico, o planejamento, a concepção, a organização, a execução e a avaliação das ações de educação de adultos (realizadas por toda a equipe técnica); coordenação da equipe técnica, que consiste na organização e na avaliação geral do trabalho (assumida por dois elementos da equipe); gestão, referente à gestão do espaço, recursos materiais, humanos e financeiros do Centro (assumida pelos mesmos dois elementos); direção, relativa a uma série de ações que exigem o compromisso formal da associação (assumida por um elemento da equipe que pertence à direção da associação); e "outras" que enquadram um conjunto de ações que não têm a ver diretamente com a educação de adultos desenvolvida (todos os elementos têm ações desse gênero). Como se vê, há envolvimento diferenciado dos membros da equipe na efetivação das atividades.

O conjunto dessas atividades tem temporalidade diferenciada. Identificaram-se três tempos de realização do trabalho: um ciclo de trabalho diário, ou quase diário, que abrange as ações de organização, execução e avaliação da educação de adultos, e as atividade de gestão, coordenação da equipe e de direção; um ciclo de trabalho anual, centrado nas ações de diagnóstico, planejamento e concepção da educação de adultos a realizar; e um ciclo de trabalho muito variável referente às "outras" atividades.

A equipe técnica efetua grande parte do seu trabalho no gabinete técnico. Existem, porém, outros espaços no Centro nos quais a atividade é também desenvolvida: salas de reuniões da equipe técnica, salas de reuniões com formadores e formandos, as próprias salas onde ocorrem as ações de educação e formação, entre outros. Para além desses espaços, os técnicos efetuam ainda saídas a locais externos de formação onde decorrem cursos que são da sua responsabilidade.

Quase toda essa atividade exige o uso diário da escrita por parte dos técnicos e do seu principal instrumento de trabalho, o computador. Na verdade, esses técnicos passam grande parte do seu tempo de trabalho sentados nas suas mesas a escrever. Essa escrita materializa-se no mais variado tipo de documentos: ofícios, relatórios, planos de formação, atas de reuniões, orçamentos, panfletos de divulgação das ações, entre outros.

4.2. As aprendizagens

As observações realizadas permitiram verificar diversas formas pelas quais os técnicos de educação de adultos aprendem no e com o trabalho. Aqui apresentamse as principais formas, procurando dar destaque ao caráter coletivo da aprendizagem.

A aprendizagem e a maneira como se aprende nesse local derivam, sobretudo, daquilo que se constitui como as regras de ação dessa equipe técnica: a entreajuda, a reformulação do fazer, a generalização do fazer e os encontros entre a reflexão e a ação. Regras que ocorrem muitas vezes em simultâneo, num processo dinâmico de osmose. É, portanto, a partir desses aspectos, que foram identificados como transversais à atividade da equipe estudada, que se aborda a problemática das aprendizagens.

Independentemente do tipo de atividade e ações a realizar e de quem as assume à partida, o que é comum acontecer no seio dessa equipe é a entreajuda, a cooperação, a partilha, a discussão, a negociação, o compromisso mútuo, as sugestões que entre eles se efetuam na realização das mesmas. Essa característica constitui-se como uma das regras de ação mais relevantes dessa equipe. De tal forma é assim que como produto final de uma ação concreta, ainda que a responsabilidade da sua realização possa ser individual, aparece, muitas vezes, um produto coletivo.

Essa forma de atuar foi mais evidente em zonas indeterminadas da ação (SCHÖN, 1998), ou seja, em alturas complexas que traziam dificuldades individuais ou coletivas. Foi nessas alturas que a intensidade da aprendizagem colaborativa entre pares, da heteroformação, das conversas educativas foi mais notória. O diálogo que se segue remete para uma das situações mais observadas: a dificuldade de um dos técnicos perante a realização de uma atividade que nunca fez e a procura que faz junto de um colega que detém o saber necessário para que consiga ultrapassar a dificuldade.

A Margarida2 2 Os nomes são fictícios. encontrase a realizar o "acompanhamento" dos cursos de Educação e Formação de Adultos pela primeira vez. Está a preparar uma reunião que vai ter em breve com os formadores do curso pelo qual é responsável.

Margarida – Joana, eu precisava de falar contigo aí uns cinco minutos, é sobre a reunião que vou ter com os formadores do curso de Acção Educativa.

Joana – Está bem.

Margarida – Queria saber como costumas fazer em relação aos temas de vida. São os for madores que os definem?

Joana – Não, não é assim. Os temas de vida e algumas questões geradoras são definidos nas aulas pelos alunos e pelos formadores. Eles, em conjunto, é que decidem (...). Depois, na reunião que tens com os formadores discutes com eles o que eles decidiram, portanto o tema e sobretudo as questões geradoras, porque muitas vezes não vêm ainda trabalhadas e então é nas reuniões que as questões são acertadas.

Margarida – Ah! Está bem, já percebi. Então vou fazer assim.

Após esta conversa, ambas voltam para o que estavam a fazer. Passados uns minutos, a Margarida torna a expor uma dúvida às colegas.

Margarida – Digam-me outra coisa. Dou-lhes já o cronograma todo?

Sílvia – Eu não costumo fazer assim.

Joana – Eu também não.

Sílvia – Eu, normalmente, faço isso mensalmente com eles.

Margarida – Está bem, então dou-hes o cronograma até dezembro.

Sílvia – É melhor. Funciona melhor assim, mês a mês, porque sabes que eles às vezes assu mem outros compromissos e assim mensalmente é mais fácil fazer os acertos.

Margarida – Pois, realmente é. Vou fazer assim.

Como se pode ver, esse diálogo remete para a aprendizagem da atividade por meio dos pares. Remete também para outra forma característica de aprender naquele local: o aprender muito perto da altura do fazer. Efetivamente, essas transferências de saberes estão, normalmente, ligadas ao fazer e ao momento do fazer. Portanto, a aprendizagem nesse local está intimamente relacionada com a dimensão temporal do fazer. Isto é, é na altura do fazer, ou muito próximo do fazer, que se procura, a maior parte das vezes, aprender saber fazer. O episódio acima transcrito dá conta de uma situação exemplificadora desse formato, a Margarida estava a preparar uma reunião que ia ter naquele dia com os formadores e, perante a dúvida, foi recorrendo, na altura, aos seus colegas. A confirmação dessa característica foi sendo dada, diversas vezes, pelos técnicos quando interrogados sobre algo davam respostas do gênero: "sinceramente não sei, ainda não fiz nenhum relatório desses", "não, não conheço esses materiais, ainda não fiz nenhum Reconhecimento e Validação de Competências", "não sei, ainda não cheguei a essa fase, por isso não sei o que isso é. É melhor perguntar à Cristina ou à Joana porque elas já fizeram isso", "não sei, nunca fiz nenhum curso desses até ao fim e ainda não passei por essa fase. Sei que aquela caderneta é para entregar aos formandos, agora esses documentos, não sei, não sei como esse registo se faz".

É no decorrer daquelas conversas educativas que o saber implícito de uns se explicita. Na verdade, quem procura saber o que, como, para quê e até por que fazer de determinada forma faz com que quem sabe explicite o seu saber por meio da descrição, da demonstração, da explicação, da comparação e, dessa forma, vai-se transmitindo e circulando o saber e aprendese naquela comunidade. A explicitação do saber implícito é, sem dúvida, uma das principais maneiras pelas quais se vai realizando o processo de generalização do fazer, de coletivização da prática. Isso não quer dizer que esse processo de explicitação e aprendizagem seja fácil de se realizar, como se pode ver no excerto de uma conversa tida com uma das técnicas:

... quando vim para aqui, li tudo o que aí havia sobre as orientações da Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos e aprendi, mas aquilo não responde a tudo, nem nada que se pareça e portanto tudo o resto que aprendi, que foi a maior parte e o mais importante, foi vendo como as minhas colegas faziam, ouvindo-as, perguntado (...). Eu tenho aprendido com as minhas colegas, sobretudo com a Joana, que é quem mais experiência tem destes cursos e, às vezes, até é engraçado porque ela fala das coisas como se eu já soubesse. Aquilo é tão natural para ela, já tem os procedimentos tão interiorizados, que eu tenho de lhe perguntar várias vezes para ela conseguir explicar como se faz determinada coisa, ou para me explicar o que é isto ou aquilo (...), mas tenho aprendido muito com ela e com os meus colegas, isso sem dúvida....

Mas a aprendizagem da prática não ocorre, como o excerto acima clarifica, somente pelo processo de explicitação dos seus segmentos, também se dá pela observação e pela audição dos menos experientes sobre os mais experientes. Estes são três processos (explicitação, observação, audição) de aprendizagem do fazer no seio daquela equipe que concorrem para a generalização/coletivização do fazer, que é outra das regras de ação detectadas no local. Esses processos, sobretudo o da explicitação da prática feita pelos mais experientes junto dos menos experientes, são indicados por vários autores como uma das principais formas de aprendizagem organizacional, pois é dessa maneira que o fazer e os saberes associados se vão coletivizando (SALLIS; JONES, 2002; CORNU, 2003). Esses processos mostram, simultaneamente, que há uma memória coletiva naquele local que se vai partilhando e construindo, e que essa memória é uma fonte muito importante de aprendizagem e de socialização. Os dois excertos seguintes reforçam essa ideia:

...quer dizer, eu quando cá cheguei já se faziam as reuniões com os formadores e a forma de se fazerem as reuniões, a forma como se dirigem, etc., isso já se fazia e eu, e o mesmo se passa com os meus colegas, fomos observando, vamos vendo e também nos foram dizendo como se faziam. Quer dizer, há quase uma maneira de fazer da associação que nós vamos aprendendo (...) Depois também vamos falando uns com os outros e vamos introduzindo alguns aspectos novos, quando alguém altera alguma coisa e vê que resulta diz aos outros. Isso acontece no resto não é só em relação às reuniões. Quer dizer, nós fazemos assim porque vamos aprendendo uns com os outros a maneira de fazer as coisas....

...quando cá cheguei comecei a observar como se fazia, como os meus colegas faziam. Quer dizer, nós partimos sempre do que já existe, vamos aprendendo com os que já cá estavam e com a maneira deles fazerem. Depois nós, em conjunto ou individualmente, vamos acrescentando alguma coisa. Aliás, isso é-nos incutido, énos pedido que acrescentemos algo ao que já existe e nós vamos fazendo isso, vamos questionando o que estamos a fazer. Ainda há poucos dias discutimos o regime de faltas dos formandos, porque tínhamos um limite máximo de faltas que verificámos que não se ajustava e por isso discutimos em grupo e vimos que era necessário alterar esse regime de faltas que existia. O mesmo se passou com a entrevista que introduzimos para fazer a selecção dos formandos, porque questionamos a forma como estávamos a fazer essa selecção, que não era a melhor. Portanto, existe uma base que vai sendo alterada conforme vemos que é necessário....

Essas palavras remetem igualmente para outros aspectos por meio dos quais se aprende naquele local, que são apontados como processos e fontes de aprendizagem coletiva. É clara a existência de uma "filosofia" de reformulação do fazer, na qual está presente a reflexão na ação ou sobre a ação (SCHÖN, 1998), outra das regras de ação dessa equipe, cuja finalidade é melhorar a prática. Esse tipo de procedimento é indicado por vários autores como um dos principais mecanismos de aprendizagem organizacional (ARGYRIS; SCHÖN, 1978; SENGE, 2002).

É relevante assinalar que a origem da reformulação tanto pode ser de caráter individual quanto coletivo. Este último aspecto dá realce ao indivíduo no processo de construção da tal memória coletiva e de aprendizagem organizacional (BOLIVAR, 1997). Aquele que introduz uma alteração na forma de fazer determinada atividade, seja pela criação de um novo instrumento de trabalho, seja pela alteração da ordem dos procedimentos estabelecidos, por exemplo, divulga essa modificação junto dos colegas de forma gradual no decorrer do dia a dia ou num momento específico e de forma geral, como é o caso das divulgações realizadas nas reuniões da equipe técnica. O que costuma acontecer nesses casos, e se a alteração produziu efeito positivo, é a gradual ou imediata alteração na forma de fazer coletiva.

Para além disso, emergem no processo de reformulação da prática outros aspectos da aprendizagem organizacional que convém especificar. Nas alterações que se introduzem na prática local, assumem papel fundamental o tatear, o experimentar, o criar, o refletir, mecanismos que são fonte de aprendizagem (AAVV, 2000). Na base desse procedimento está, muitas vezes, a detecção de uma anomalia ocorrida na ação, a partir da qual se introduzem as alterações experimentais nessa mesma ação, como elucidam os excertos acima transcritos. Esse processo não é apenas cumulativo e feito em linha reta, faz-se também de recuos, de retornos a partes do fazer e saber anteriores, é, enfim, um processo complexo e multidimensional no decorrer do qual os técnicos recorrem também a formas de fazer externas àquele local e a conhecimento teórico. Tal acontece, no primeiro caso, por meio das trocas de informação que efetuam com parceiros locais ou da inserção adaptada de algum instrumento de trabalho trazido por algum formador que trabalha noutros locais, por exemplo. No caso do recurso ao conhecimento teórico para alterar a ação, pode-se referir, como exemplo, a transformação que uma das técnicas fez numa das fichas de avaliação dos formandos, tendo para tal consultado alguns livros nos quais encontrou escalas de classificação que adaptou ao instrumento de trabalho em causa.

Essa última situação é um caso claro de detecção de uma anomalia na ação que fez com que um dos elementos da equipe tivesse de recorrer de forma combinada à reflexão sobre a ação e ao conhecimento teórico para conseguir melhorar a prática. Ora, como se referiu anteriormente, esse exercício que insere na reflexão sobre a ação elementos exteriores à própria ação é indicado como fonte de aprendizagem (ROGERS, 1995).

Na reformulação do fazer dessa equipe estão presentes ainda mais dimensões da aprendizagem organizacional: a discussão produtiva (SENGE, 2002), que leva à necessidade e à capacidade de negociação de sentido e significado da prática local (WENGER, 2001). Quando os técnicos discutem "o regime de faltas dos formandos" ou questionam "a forma como" estão "a fazer" a seleção dos formandos estão precisamente num processo de aprendizagem coletivo deste gênero. E é dessa forma também que se constrói e reconstrói a memória coletiva naquele contexto de trabalho.

Esses foram os principais mecanismos de aprendizagem coletiva detectados naquele local. Mas eles não esgotam as formas de aprendizagem verificadas. A educação não-formal que assume várias formas, como a frequência de seminários ou cursos específicos, proporcionada pela organização aos seus técnicos é outra das fontes aprendizagem.

5. BREVES NOTAS FINAIS

Os resultados a que se chegou permitem defender que a equipe técnica estudada se constitui como uma comunidade de aprendizagem (WENGER, 2001) e que a organização a que pertence tem fortes características de uma organização que aprende.

Na base dessa realidade está o que foi identificado como sendo as suas regras de ação, ou aspectos transversais da sua atividade: a entreajuda, a generalização do fazer, a reformulação do fazer e os processos de reflexão na e sobre a ação. Essas regras, essa forma de fazer local é responsável por diferentes manifestações de aprendizagem coletiva realçadas.

Essa equipe é constituída por um conjunto de membros que, por meio das suas atividades, organizadas mediante processos diferenciados de racionalização, tem como objetivo chegar a um mesmo produto final: a educação de adultos por eles realizada.

No desenrolar dessa atividade, assiste-se a um forte processo de aprendizagem colaborativa, de heteroformação, sobretudo dos mais experientes para os menos experientes. Assiste-se à explicitação de saberes implícitos e, com isso, circulam e generalizam-se procedimentos, a prática e saberes associados vão-se coletivizando.

A atividade assenta num processo coletivo de negociação e renegociação da prática e do seu significado, no decorrer do qual surgem as discussões produtivas, as conversas educativas, a reflexão na e sobre a ação, que levam muitas vezes à sua reformulação, sempre com a finalidade de a melhorar. Tal ocorre, sobretudo, em alturas de incerteza individual ou coletiva, ou de detecção de alguma anomalia na prática. Foi nessas alturas que foi mais notória outra das características das organizações que aprendem: a introdução adaptada de elementos externos ao local para ultrapassar a dificuldade, como, por exemplo, o uso recontextualizado de conhecimento teórico ou a introdução de alguma forma de fazer de outra instituição.

Termina-se salientando a importância que a memória coletiva, que o reportório partilhado da equipe tem nesse local. Na verdade, a concretização da atividade baseia-se fortemente nesse recurso, que é feito de instrumentos de trabalho (por exemplo, fichas de avaliação), de documentos (os vários planos de formação realizados, estudos de caracterização da área geográfica de atuação, entre outros), de formas de fazer, ou seja, de regras de atuação locais (entreajuda, reformulação e generalização do fazer, reflexão na e sobre a ação), saberes, entre outros. É esse reportório, que foi sendo construído e reconstruído pelos técnicos ao longo do tempo, que vai sendo passado aos novos membros que chegam. Esse processo de construção e reconstrução é permanente naquele contexto de trabalho.

Mas, o que acabou de ser referido não deve fazer pensar que não existe heterogeneidade na equipe estudada. Muito pelo contrário, ela existe e é essa diferenciação entre os membros da equipe que contribui, diversas vezes, para que se vá realimentado a memória coletiva.

Notas

Data de recebimento: 03/11/2008

Data de aprovação: 18/09/2009

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  • 1
    O artigo e seus resultados são apresentados com base numa investigação mais ampla, que resultou numa tese de doutoramento na área da Sociologia da Educação, defendida na Universidade de TrásosMontes e Alto Douro/Portugal, em dezembro de 2006.
  • 2
    Os nomes são fictícios.
  • Endereço para correspondência:
    Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
    Departamento de Educação e Psicologia
    Rua Dr. Manuel Cardona
    5000-558
    Vila Real – Portugal
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      03 Nov 2008
    • Aceito
      18 Set 2009
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