Acessibilidade / Reportar erro

Das promessas iluministas à servidão

RESENHA

Das promessas iluministas à servidão

Janete Netto Bassalobre

Pós-graduada em neuropsicobiologia pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS); Mestre em Educação pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) e Psicóloga Clínica. E-mail: janette@litoral.com.br

Contato

MARRACH, Sonia. Outras histórias da educação: do iluminismo à indústria cultural (1823-2005). São Paulo: UNESP, 2009. 286p.

O Iluminismo, enquanto projeto racionalista que questionava as bases religiosas do mundo feudal e propagava a superação de uma visão ingênua e mística do mundo, trouxe com ele a consagração dos direitos civis e a ideia de renovação e esclarecimento para uma sociedade até então refugiada na fé como elemento essencial para a vida humana. Representando os anseios da classe burguesa, propõe uma nova forma de apreender as realidades e embasa a credibilidade nas grandes possibilidades da razão e da ciência, oferecendo aos indivíduos a possibilidade de promoverem o desenvolvimento econômico e social na direção de uma existência mais igualitária e elevada culturalmente.

Essa pretensão erigiu um cenário especial para a educação, pois a escola despontaria como o espaço onde os indivíduos se construiriam enquanto cidadãos: a proposta do conhecimento e da educação disponível a todas as camadas sociais era o meio ideal para melhorar a sociedade, favorecendo a justiça, a compreensão e a dignidade. Entretanto, a distância que nos afasta desse contexto, acentuada pelas críticas dirigidas a essa mesma razão, enfraquecem as luzes iluministas, hoje obscurecidas pela destruição de inúmeros alicerces racionais, tais como a crítica marxista ao sistema liberal e a freudiana, no tocante à primazia da racionalidade.

A obra em questão propõe a análise do trajeto da história da educação a partir dessas promessas iluministas de autonomia e esclarecimento, até o estabelecimento da Indústria Cultural, permeada pela morte do mito do progresso emancipatório, focando a "desconstrução" do processo educacional, transformado em instrumento de controle e alienação. Abordando a educação como parte da história da cultura contemporânea, considera as "outras histórias da educação" (até porque não existe uma história absoluta), edificadas tanto por protagonistas vencedores quanto por derrotados, surgidas basicamente das contradições verificadas na tela das complexas relações globalizadoras, em uma concepção antropológica que se estende além da problemática escolar e da organização do ensino. Sonia Marrach trabalha historicamente a transformação do Iluminismo em massificação e homogeneização, cenário no qual o conhecimento foi metamorfoseado em mercadoria e o exercício da crítica, em fiel absorção e concordância, deixando de analisar a educação como fator isolado.

Rejeitando o conceito de história linear, a autora parte do entendimento de história como construção dinâmica e ininterrupta para abordar o Iluminismo - matriz do pensamento educacional na contemporaneidade - e focalizar os momentos de ruptura dessa mesma história, em que os padrões tradicionais chocaram-se com os novos valores fabricados pela modernidade. A problemática educacional é abordada dentro do contexto das interrupções e incongruências existentes entre a educação, a história e a sociedade. Acrescente-se, ainda, que essa visão benjaminiana de temporalidade histórica implica, também, a crítica da ideia de progresso, que, na obra, é entendido, então, como um "mito renovado" - um discurso das elites dominantes, em que o saber científico associou-se à técnica em nome dos interesses do capitalismo hegemônico, mostrando claramente ter perdido seu norte quando se observa suas mais recentes consequências: "Em suma, o progresso como discurso dominante das elites globais parece ter perdido o seu rumo" (DUPAS, p. 12)

A autora possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. É professora de História da Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Marília. Publicou também O lúdico, o riso e a educação e organizou Conciliação, Neoliberalismo e Educação e Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas.

Inicialmente, investiga as inter-relações entre esclarecimento, Iluminismo e pedagogia através de dois jornais pernambucanos, veiculados entre 1823 e 1835, ambos os periódicos manifestações jornalísticas na luta pelo exercício da autonomia contra o poder imperial: o Sentinela da Liberdade, ligado a Cipriano Barata, e o Tifis Pernambucano, de Frei Caneca. Exercitando o jornalismo de opinião, essas publicações colocavam-se ao lado do povo, objetivando difundir as "luzes da razão" - aí, então, a dimensão pedagógica do Iluminismo exercida pela elucidação contida nos jornais ligados ao projeto da República: esclarecimento para a educação política do cidadão. Juntamente, Marrach nos traz um retrospecto do universo social da época e dos objetivos e condições do Iluminismo no Brasil, bem como uma visão do papel da imprensa de opinião e da educação aristocrática universitária ao tempo do Império.

Já no segundo capítulo, o foco situa-se no mito do esclarecimento e nos impactos e mudanças ocasionados pelas ideias liberais (restritas ao liberalismo moderado e conservador) no pensamento educacional, transformando a revolução para a educação democrática em "modelagem de almas" (p. 77), utilizando, para esse objetivo, a discussão de obras historiográficas que sinalizam a época, cotejadas com as obras de Machado de Assis e de Eça de Queirós, que tratam da educação nos anos Oitocentos. A educação superior, realizada com fins à formação do quadro administrativo do Império, e as estratégias reformistas de "conservação e conciliação" são abordadas pela autora, demonstrando os esforços de adequação da ação política e das instituições às circunstâncias: a continuação da ordem colonial, a mentalidade conservadora e a manutenção da hierarquia. Da mesma forma, a imprensa acadêmica, a que cabia "disciplinar a vontade política do leitor acadêmico, segundo o princípio da prudência e da moderação" (p. 95).

A passagem para o século XX, analisada por intermédio da autobiografia de Stefan Zweig2 2 STEFAN ZWEIG - O MUNDO QUE EU VI (minhas memórias), editado pela Editora Guanabara após o suicídio do autor em Petrópolis - Rio de Janeiro, em fevereiro de 1942, vítima da perseguição nazista, exilado no Brasil e deprimido pela situação decorrente da Segunda Guerra Mundial em andamento. Na obra, o escritor descreve o mundo burguês, estável e sistemático do fim do período oitocentista até o desmoronamento da estabilidade e da segurança com o advento dos movimentos efetuados pelas grandes massas e o descontentamento da pequena burguesia e da classe média, receosas da proletarização. , é um dos tópicos do terceiro capítulo do livro, uma vez que a obra do escritor austríaco realiza uma retrospecção da vida social, educacional e cultural na virada do século XIX para o século XX, destacando as consequências advindas da sociedade industrial e burocratizada, com tecnologia dirigida para o controle de massas. As questões relacionadas à sociedade administrada e da educação hegemônica dentro desse contexto, a cultura de massas produzida pela Indústria Cultural e a consequente necessidade de uma forma de controle social (uma vez que a classe média e o proletariado passaram a ter acesso à educação) são tratadas ainda nesse capítulo, demonstrando detalhadamente como a educação veio a assumir esse papel de controle de mentes, necessário ao status quo, devido ao pavor da classe dominante em relação ao esclarecimento das massas.

O quarto capítulo fornece a discussão do advento das práticas pedagógicas libertárias, tais como as de Francisco Ferrer e sua Escola Moderna, cujas ideias comprometidas com a emancipação do homem reverberaram no Brasil a partir de 1910, atreladas ao movimento anarquista dos operários. A autora contribui, nesse ponto, além de um retrospecto do pensamento pedagógico do educador espanhol e das postulações da pedagogia libertária no Brasil, com a discrição da situação das escolas privadas, uma crítica à escola pública e um resumo do funcionamento da escola dos operários que visavam a exterminar a hierarquia social vertical e a submissão do sujeito à dominância hegemônica.

O enfoque do quinto capítulo é o pensamento pedagógico e a questão do lúdico sob a ótica de Walter Benjamim, ambas as postulações centradas na utopia libertária. Para o autor de Sobre o conceito da história, as reflexões sobre a educação baseavam-se, principalmente, no pensamento de que as crianças deveriam ser libertas do enquadramento que se dava através da pedagogia tradicional, pois a liberdade é requisito para o conhecimento. Benjamin critica a universidade, que, atrelada ao poder do Estado, tinha seus fins distorcidos, imperando a burocracia, e onde o conhecimento ficava dissociado da realidade: aponta a tarefa principal do jovem, que seria a de transformar a universidade "corporação de funcionários públicos" em universidade de pesquisadores, livre, comprometida com sua época, vinculada às questões espirituais de seu tempo. As postulações sobre o falso progresso, a alienação, o tecnicismo e a massificação estão presentes em todo o decorrer desse capítulo, sob a ótica de Walter Benjamin, da mesma maneira que seus pensamentos relativos à importância da criança na sociedade e suas relações com o brinquedo, o brincar e o teatro, este último visto pelo autor como a melhor forma de desenvolvimento infantil, pois é um dos meios educativos capazes de contrapo-rse à escola tradicional alienante, uma vez que brincar é libertação, tanto para a criança como para o adulto.

A análise do pensamento educacional no Brasil em época de grandes mudanças (1932-1964) - utilizando, para tanto, o Manifesto dos Pioneiros de 1932, as Crônicas de Educação de Cecília Meireles e os pensamentos de Anísio Teixeira e Paulo Freire (tudo isso visando à explanação dos conceitos da Escola Nova e as contradições existentes entre o pensamento educacional inovador e a prática pedagógica institucional conservadora) - é o tema do sexto capítulo. A proposta central inovadora era fazer da escola um local democrático para a criação da cidadania através do esclarecimento do povo.

Contudo, enquanto o movimento renovador e libertário crescia, a educação continuava, na prática, acontecendo nos moldes tradicionais. E o sétimo capítulo vem demonstrar como, apesar das reformas de 1968 e 1971 e das políticas educacionais impostas pelo regime militar, o projeto educacional democrático é interrompido e adentra-se no sistema de massificação do ensino, no qual essas reformas objetivavam consolidar a legitimidade do regime de expansão econômica (p. 210). A escolaridade obrigatória foi prolongada, através da junção do primário com o ginásio e, com relação ao segundo grau, instituiu-se a profissionalização de maneira generalizada, intencionando encaminhar mais rapidamente o jovem para o mercado de trabalho. No que tange à educação superior, uma verdadeira Indústria Cultural foi criada com a presença de maioria de instituições privadas: grande parte do público universitário constitu-ise de indivíduos preocupados com o diploma e as oportunidades de trabalho, ingressando a educação, dessa forma, no mercado de bens simbólicos bourdieriano.

O penúltimo capítulo é dedicado a ilustrar os caminhos da educação no Brasil após a ditadura, período já em contexto globalizado, pleno de profundas transformações e rápidas modificações nas relações econômicas, políticas e sociais. Sob a ideologia neoliberal, o Estado deixou de investir na educação pública e a educação fica atrelada a três objetivos básicos: a preparação para o trabalho; retransmitir os princípios doutrinários do neoliberalismo e fazer da escola um sistema tal e qual o do mercado. Nesse espaço, a autora remete-nos, ainda, aos diversos problemas relacionados com o livro didático (e sua falta) nas escolas públicas e à importante questão da perda da autonomia pela universidade e pelos acadêmicos, frente aos poderes econômicos e políticos contemporâneos.

Sonia Marrach encerra suas colocações refletindo a respeito da hegemonia dos meios de comunicação de massa, que, atualmente, ditam a direção cultural da sociedade, evidenciando suas consequências para a educação. Os meios de comunicação fabricam uma cultura homogênea, dissolvendo as características pessoais de cada grupo, o que transporta, muitas vezes, até os produtos chamados superiores ao nível da cultura de massas: "uma exposição de arte no melhor museu da cidade recebe o mesmo tratamento da plástica da atriz da novela das oito" (p. 265). Dessa forma, a educação sofre uma efetiva desvalorização e se atrofia, principalmente no que se refere ao seu papel de socialização político-ideológica, sendo substituída nesse aspecto pela televisão.

Por todo o seu conteúdo, a obra resenhada apresenta-se como uma importante contribuição voltada àqueles interessados em pensar as relações da contemporaneidade e suas características conservadoras e homogeneizantes com a área educacional, da mesma forma que na ressignificação das muitas histórias da educação através da concepção crítica utilizada pela autora. O caminho foi delineado para que o leitor apreenda efetivamente como, partindo do objetivo de formar e educar para o esclarecimento, termina-se chegando à massificação e ao controle das almas.

Abordando o contexto de embate da escola com o cenário contemporâneo neoliberalista, e dirigido a todos aqueles que tenham como área de interesse e atuação profissional a educação, a diversidade de seu trabalho permitiu a Sonia Marrach abordar, neste livro, significativos aspectos e contradições das "outras histórias da educação" no Brasil, visualizando esse cenário através do espelho das postulações iluministas e da Indústria Cultural.

Notas

Contato:

Rua Dr. Manoel Vitorino, 50/74, Bairro do Gonzaga

CEP 11060-430, Santos - SP

Recebido: 05/02/2010

Aprovado: 26/02/2010

  • 1 GILBERTO DUPAS. O mito do progresso: ou o progresso como ideologia. São Paulo: UNESP, 2006.
  • 1
    .
  • 2
    STEFAN ZWEIG -
    O MUNDO QUE EU VI (minhas memórias), editado pela Editora Guanabara após o suicídio do autor em Petrópolis - Rio de Janeiro, em fevereiro de 1942, vítima da perseguição nazista, exilado no Brasil e deprimido pela situação decorrente da Segunda Guerra Mundial em andamento. Na obra, o escritor descreve o mundo burguês, estável e sistemático do fim do período oitocentista até o desmoronamento da estabilidade e da segurança com o advento dos movimentos efetuados pelas grandes massas e o descontentamento da pequena burguesia e da classe média, receosas da proletarização.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
    Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antonio Carlos, 6627., 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil, Tel./Fax: (55 31) 3409-5371 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: revista@fae.ufmg.br