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Nossas escolas não são as vossas: as diferenças de classe

Our schools are not yours: class differences

Resumos

O texto aborda as relações entre sistema de ensino e classes sociais, partindo de Bourdieu e valendo-se de estudos sobre a escolarização nas classes sociais no Brasil. Extraíram-se, dos elementos empíricos, as constatações e análises sobre significado da escola e processos de escolarização de grupossociais, buscando princípios gerais ou pistas de investigação. É um esforço de sistematização para dispor de um quadro de referência para a investigação dos sistemas de ensino, particularmente os processos de escolarização. Verificou-se a comprovação do paradigma bourdieusiano de que, quando a riqueza é distribuída de forma desigual, os modos dos grupos e classes se relacionarem com o sistema de ensino dependem de suas propriedades e da importância dos bens culturais no conjunto das posses. A desconsideração disso faz do sistema de ensino instrumento da distribuição desigual das riquezas, em que são favorecidos os que dispõem de condições prévias à sua recepção e acumulação e são excluídos os que não as possuem.

Escolarização; Sistema de Ensino; Classes Sociais


This paper broaches the relationship between educational systems and social classes, taking the work of Pierre Bourdieu as its reference point and further validating the work, through studies of the schooling process in the different Brazilian social classes. From the empirical data, the findings and their analysis were elicited. These concerned the school and schooling process in the different social groups. Using these results, an attempt was made to uncover some general principles or at least some clues pointing towards further research. It is an attempt to systematize research references that explore educational systems, thus facilitating further investigations into the schooling process. Bourdieu's paradigm, which is confirmed by this research, states that when wealth is distributed in an unequal way, the way in which groups and classes relate to the educational system depends on on the amount of property they own and the importance of possessions in defining ones social position. By disregarding these factors, the education system can be turned into an instrument that contributes to the unequal distribution of wealth, where those that already possess better conditions, are favored, at the outset and those without possessions are excluded.

Schooling; Educational System; Social Classes


ARTIGOS

Nossas escolas não são as vossas: as diferenças de classe

Our schools are not yours: class differences

Guiomar de Oliveira PassosI; Marcelo Batista GomesII

IDoutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UNB) e Professora associada da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: guiomar@ufpi.edu.br

IIMestrando no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: marcelobatista81@hotmail.com

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RESUMO

O texto aborda as relações entre sistema de ensino e classes sociais, partindo de Bourdieu e valendo-se de estudos sobre a escolarização nas classes sociais no Brasil. Extraíram-se, dos elementos empíricos, as constatações e análises sobre significado da escola e processos de escolarização de grupossociais, buscando princípios gerais ou pistas de investigação. É um esforço de sistematização para dispor de um quadro de referência para a investigação dos sistemas de ensino, particularmente os processos de escolarização. Verificou-se a comprovação do paradigma bourdieusiano de que, quando a riqueza é distribuída de forma desigual, os modos dos grupos e classes se relacionarem com o sistema de ensino dependem de suas propriedades e da importância dos bens culturais no conjunto das posses. A desconsideração disso faz do sistema de ensino instrumento da distribuição desigual das riquezas, em que são favorecidos os que dispõem de condições prévias à sua recepção e acumulação e são excluídos os que não as possuem.

Palavras-chave: Escolarização. Sistema de Ensino. Classes Sociais.

ABSTRACT

This paper broaches the relationship between educational systems and social classes, taking the work of Pierre Bourdieu as its reference point and further validating the work, through studies of the schooling process in the different Brazilian social classes. From the empirical data, the findings and their analysis were elicited. These concerned the school and schooling process in the different social groups. Using these results, an attempt was made to uncover some general principles or at least some clues pointing towards further research. It is an attempt to systematize research references that explore educational systems, thus facilitating further investigations into the schooling process. Bourdieu's paradigm, which is confirmed by this research, states that when wealth is distributed in an unequal way, the way in which groups and classes relate to the educational system depends on on the amount of property they own and the importance of possessions in defining ones social position. By disregarding these factors, the education system can be turned into an instrument that contributes to the unequal distribution of wealth, where those that already possess better conditions, are favored, at the outset and those without possessions are excluded.

Keywords: Schooling. Educational System. Social Classes.

1. Introdução

Este texto é resultado da aproximação com o referencial teórico da pesquisa "Educação superior e reprodução das desigualdades sociais: estudo sobre o acesso à universidade pública", financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq). Inquire-se sobre o significado da escola para as classes populares, médias e superiores, identificando as formas de relacionamento das famílias com a escolaridade dos filhos, isto é, com seus aprendizados e atividades escolares, por conseguinte, detém-se em uma das faces da vasta temática, convencionalmente, designada "família-escola".

A bibliografia sobre o assunto é significativa (existem mais de nove mil registros na Plataforma Lattes sobre a expressão família e escola), evidenciando sua fecundidade, complexidade e amplitude, todavia, ainda são escassas as que tratam sobre as atitudes escolares das diversas classes. Parte desta tenta-se ordenar neste texto, tendo como fio condutor as indicações de Pierre Bourdieu sobre a conexão entre êxito escolar e posição social das famílias, a fim de sistematizá-las num quadro de referência para a investigação dos processos de escolarização.

É preciso dizer, desde logo, que esta ordenação não é tarefa fácil, e por várias razões. A principal delas é a seleção dos textos e autores a serem incluídos, pois a lista seria exaustiva, como demonstram os trabalhos apresentados no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia e publicados na Revista Contemporânea de Educação, de julho de 2009 (COSTA; NOGUEIRA, 2009). A escolha recaiu sobre Nogueira (2003; 2004), Paixão (2005; 2006), Brandão e Lellis (2003), Brandão (2007), Lellis (2005), Portes (2003), Romanelli (1995; 2003), Viana (2003) e Zago (2003) por enfocarem o significado de escola e as formas de escolarização em famílias brasileiras, considerando a classe social e aportando grande contribuição em termos de informações empíricas. Além disso, mapeiam fatores propiciadores do sucesso escolar, por conseguinte oferecem indicadores para a investigação dos aspectos da vida familiar que favorecem ou dificultam o acesso ao ensino superior público.

De seus estudos, foram extraídas, ao lado dos elementos empíricos apresentados, as constatações e análises sobre o significado da escola e os processos de escolarização dos grupos sociais estudados, vislumbrando pistas de investigação. Pensase que constatações relativas a determinados universos empíricos podem ser indicações úteis e representar novas possibilidades de entendimento de outros universos.

Assim, este trabalho organiza, sob certo princípio de ordenação, de modo necessariamente não exaustivo, argumentos apresentados quanto ao modo de relacionamento das famílias de diferentes classes sociais com a vida escolar de seus filhos. Destarte, foram deixados de lado estudos, igualmente relevantes, que abordam a relação família e escola sob ângulo ou perspectiva distintos, como: Costa e Koslinsk (2006), que investigam os condicionantes do valor atribuído à educação escolar; Presta e Almeida (2008), sobre experiências educativas e construção de fronteiras sociais; ou ainda a inovadora perspectiva de Setton (2009; 2010) sobre os processos de socialização contemporâneos.

Pretende-se tão somente organizar a produção teórica que se volta para a relação entre vida familiar e vida escolar, ordenando-a segundo as classes sociais. O texto divide-se em dois momentos: no primeiro, expõe-se como o sistema de ensino opera numa sociedade de classes, isto é, em que os bens culturais, como todos os bens, são distribuídos de forma desigual; no segundo, aborda-se como as diversas classes estabelecem relação com o sistema de ensino, analisando o percurso escolar dos filhos, nas classes populares, médias e superiores da sociedade brasileira. Por último, destacam-se as constatações mais significativas nos estudos analisados sobre o significado de escola e de escolarização para as classes sociais.

2. O sistema escolar numa sociedade de classes

O sistema escolar é, tradicionalmente, visto como um fator de mobilidade social; segundo o senso comum, "quem não estuda não é ninguém na vida". Nessa concepção, os indivíduos competiriam em igualdade dentro do sistema de ensino, e aqueles que se destacam, primeiro, o fazem pelos dons individuais, segundo, esses dons, por uma questão de justiça, leva-os a avançar nas suas carreiras escolares e, mais à frente, a ocupar as posições superiores na hierarquia social. Para Bourdieu (2002, p. 41), essa é uma ilusão ou, em seus termos, provavelmente, "um efeito de inércia cultural", pois, como seus estudos demonstraram, "o sistema escolar é um dos fatores mais eficazes de conservação social", sendo os mecanismos que garantem ascensão social os mesmos que sustentam a conservação dos privilégios.

Como operam esses mecanismos? Numa sociedade de classes, os bens culturais são distribuídos de forma desigual, mas o sistema escolar ignora isso no âmbito do conteúdo que transmite, dos métodos e das técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação. Desse modo, separa a reprodução cultural que lhe cabe da reprodução social e sanciona as desigualdades, pois, ao tratar como iguais os desiguais, mantém a estrutura das relações entre as classes. Nas palavras de Bourdieu:

Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais (2002, p. 53).

O sistema assenta-se no princípio da equidade, segundo o qual todos têm igualdade de oportunidade e devem ter o mesmo tratamento. Desse modo, desconsidera não apenas as diferenças em termos das propriedades culturais, como também que a assimilação do capital escolar requer a posse prévia de condições que nem todos possuem. O indivíduo, conforme Bourdieu (1998), ao ingressar na escola, depara-se com um código específico do universo escolar cujo entendimento exige uma competência cultural, pois sua apropriação depende da posse prévia dos instrumentos de decifração e esta deve ser transmitida pela educação familiar.

Todavia, nem todos possuem esses instrumentos. Segundo Bourdieu (2002), apenas aqueles que pertencem às classes favorecidas econômica e culturalmente os possuem e, por isso, os educandos das camadas econômica e culturalmente desprestigiadas são penalizados desde as séries iniciais, seja porque a prática pedagógica supõe pré-requisitos que não possuem, seja porque não promove sua aquisição por aqueles que não os trazem. Por isso, diz: "a equidade protege melhor os privilégios do que a transmissão aberta aos privilegiados" (BOURDIEU, 2002, p. 53).

Nesses termos, o livre jogo das leis de transmissão cultural faz com que o capital cultural retorne às mãos daqueles que já o possuem. Isso ocorre porque a posse dos instrumentos de apropriação dos bens simbólicos faz com que os bens desejados e possuídos sejam apropriados pelos que detêm capital cultural (BOURDIEU, 1992). O processo seletivo de acesso ao ensino superior, por exemplo, pesa com rigor desigual sobre as diferentes classes sociais, de modo que aqueles cujas propriedades, principalmente econômicas e culturais, são escassas terão chances reduzidas ou serão dele alijados.

Essas propriedades são de diferentes tipos: econômicas, expressas em capital econômico, são os meios pelos quais se toma posse dos bens e serviços; sociais, representadas pelo capital social, são constituídas por um "conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família" (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 59-60); e culturais, que podem ser incorporadas (valores e práticas), objetivadas (obras de arte, bens) e institucionalizadas (títulos escolares).

Esses bens, quaisquer que sejam eles, não são propriedade de todos. Por conseguinte, a decifração e a apropriação dos conteúdos ministrados pelo sistema escolar também não são acessíveis a todos; dependem das condições materiais e culturais dos estudantes e suas famílias. Como observou Paixão (2005, p. 142), a escola, na sociedade moderna, está inscrita no projeto de todas as famílias, sua valorização é universal, todavia, seu significado no futuro dos filhos "está estreitamente relacionado ao que dispõem em termos econômicos e culturais", isto é, à classe à qual se pertence.

Como as classes estabelecem relação com o sistema escolar é tema abordado no próximo item.

3. O sistema escolar para as classes sociais

As atitudes escolares das diversas classes constituem um campo pouco explorado pelos estudiosos da educação. Eles ainda estão definindo sua atuação nessa área, deixando um pouco de lado as preocupações com os processos mais globais das ações educativas e as políticas estatais e voltando-se, por exemplo, para a relação família e escola, inclusive em seus microaspectos.

Entre os pesquisadores brasileiros, a família, segundo Nogueira, Zago e Romanelli (2003, p. 9), "nunca esteve ausente dos estudos e das práticas escolares". Todavia, complementam os autores, nem sempre esses estudos se voltavam para compreendê-la em seus diferentes modos de interagir com a escola ou mesmo para identificar as práticas escolares de cada uma, mas para desqualificá-la, mostrando apenas o lado negativo da relação família e escola, um olhar preconceituoso. As pesquisas atuais, brasileiras ou estrangeiras, pelo contrário, têm as famílias "como sujeito central da pesquisa em educação, com o interesse em conhecer seu universo sociocultural, suas dinâmicas internas e suas interações com o mundo escolar, não mais se contentando com conclusões deduzidas unicamente a partir de sua condição de classe" (NOGUEIRA; ZAGO; ROMANELLI, 2003, p. 11).

São pesquisas que, segundo os autores, se voltam para a "compreensão dos processos de escolarização, suas variações entre os diferentes grupos sociais, mas também no interior de um mesmo grupo entre famílias com características socioeconômicas relativamente homogêneas" (NOGUEIRA; ZAGO; ROMANELLI, 2003, p. 11). No Brasil, têm chamado a atenção para questões ainda pouco exploradas, como, por exemplo, as atitudes das diferentes classes sociais em relação à escola. Recorre-se a elas, sistematizando suas contribuições esparsas num mesmo "lugar", mas, principalmente, buscando um princípio de compreensão e de inteligibilidade para os padrões de sociabilidade escolar daqueles que ocupam posições distintas no espaço social.

Na perspectiva de Bourdieu, o que define um indivíduo como pertencente a uma determinada classe é o volume de capital, em suas várias espécies (cultural, econômico, de relações, etc.), que ele possui e o peso relativo de suas posses no interior dos campos sociais. Um campo, segundo essa perspectiva, é "um espaço de relações [...] tão real como um espaço geográfico, no qual as mudanças de lugar se pagam em trabalho, em esforços e, sobretudo em tempo (ir de baixo para cima é guindar-se, trepar e trazer as marcas ou os estigmas desse esforço)" (BOURDIEU, 1998 p. 137).

Cada campo possui um capital que lhe é específico e uma estrutura de relações definidas conforme o volume possuído por seus agentes; aqueles que possuem mais ocupam posições dominantes e os que têm menos, posições dominadas. Isso é ignorado pelo sistema escolar. O princípio da equidade que o norteia faz com que os professores tratem todos como se iguais fossem; assim, conforme Bourdieu (2002), acabam transmitindo o conteúdo escolar para todos de forma igualitária, sem se aterem ao universo particular de cada sujeito.

No sistema escolar, as habilidades culturais adquiridas no meio familiar estão no princípio da estruturação das práticas escolares, vale dizer, dos modos de assimilação do que é transmitido pela escola. Isso porque a apropriação dos conteúdos transmitidos pelo sistema de ensino e, consequentemente, o êxito na trajetória escolar dependem da herança cultural que cada um carrega. A "herança cultural" que a família transmite é uma combinação de propriedades, as mais variadas, e certo ethos, ou seja, um "sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar" (BOURDIEU, 1998, p. 42).

Assim, quanto mais a herança cultural dos estudantes contemplar os elementos da cultura transmitida pela escola, que é a erudita, maiores as chances de êxito, por exemplo, melhores colocações no mercado de trabalho ou nas universidades e faculdades prestigiosas. O papel exercido pela família, diz Bourdieu (2002), é, exclusivamente, cultural por vias, o mais das vezes, indiretas e de forma quase osmótica, isto é, sem a necessidade de um aprendizado metódico, quase dissimulada, como algo que prescinde de um esforço organizado, "naturalizado", daí a percepção de que a aquisição de conhecimentos, de aptidões e de atitudes resulta de dons naturais ou vocações. Mas também por vias diretas, o chamado trabalho escolar, isto é,

todas as ações – ocasionais ou precariamente organizadas – empreendidas pela família no sentido de assegurar a entrada e a permanência do filho no interior do sistema escolar, de modo a influenciar a trajetória escolar do mesmo, possibilitando a ele alcançar os níveis mais altos de escolaridade, como, por exemplo ter acesso ao ensino superior (PORTES, 2003, p. 63).

Examina-se, a seguir, tendo por base alguns estudos da temática, o significado da escola para as classes populares, médias e superiores, expondo o valor que lhe conferem e o trabalho escolar que realizam para obtenção do capital cultural.

3.1. A escola para as camadas populares

A escola para as classes populares tem sido objeto de estudo de Paixão (2005), Portes (2003) e Zago (2003). Nesses estudos, constatou-se que a escola, para as classes populares, constitui um valor, é algo além do simples espaço de acumulação de conhecimentos, "é valorizada por sua contribuição na realização de projetos para osfilhos como um instrumento que se pode manejar" (PAIXÃO, 2006, p. 4). Conforme essa autora, em pesquisa sobre o significado da escolarização para um grupo de dez catadoras de um lixão do Grande Rio de Janeiro,

as catadoras não se distinguem de outros grupos no que se refere ao valor dado à escolarização dos filhos. Todas valorizam a instituição escolar. As expectativas relacionadas à escolarização dos filhos aparecem em um discurso em que se afirma o valor da escolarização e se reconhece sua necessidade sem especificar o nível de escolarização que se faz necessário(PAIXÃO, 2006, p. 6).

A semelhança com os outros grupos sociais, contudo, é só aparente. Para as classes populares, constatou a pesquisadora, a escola não deve ensinar só a ler, escrever e contar, mas também as normas que organizam a vida coletiva e, principalmente, as que regem as relações sociais. Assim, deveria ensinar a polidez, o respeito aos adultos e ajudar na internalização de atitudes e condutas desejáveis pela sociedade, isto é, aprovadas por aqueles que ocupam as posições dominantes no espaço social. Esperam, complementa Paixão (2006, p. 5), que "as crianças aprendam a falar a 'linguagem da escola' em oposição à 'linguagem da rua', promovendo a integração delas na sociedade".

Isso também já havia constatado Lahire (1997, p. 334), em pesquisa sobre atitudes escolares nas camadas populares francesas. Para os pais, "a escola é algo importante e manifestam a esperança de ver os filhos 'sair-se' melhor que eles", independentemente de sua situação escolar. Eles almejam para a sua progênie, complementa, um trabalho mais qualificado e, consequentemente, mais bemremunerado e mais valorizado.

A escola para essa camada, portanto, conforme esses estudos, significa um meio de integração dos sujeitos das camadas sociais desfavorecidas junto à sociedade, possibilitando-lhes o aprendizado de códigos e normas legítimos e a inserção social. Assim, esperam que "se empenhe na educação de seus filhos, que se ocupe de suasocialização, promovendo integração à sociedade" (PAIXÃO, 2005, p. 158). Para tanto, adotam estratégias e desenvolvem ações que não apenas estão de acordo com a posição ocupada no espaço social e com suas expectativas em relação à escola, mas, principalmente, com o capital cultural, especialmente o escolar, de que dispõem.

A participação das famílias de camadas populares na escolarização dos filhos, segundo Viana (2003, p. 58), é diferenciada, "nem sempre facilmente visível e voltada explicitamente e objetivamente para tal fim". Essas ações não são guiadas por um habitus escolar, isto é, nos termos de Bourdieu (1992, p. 296), "um sistema de disposições e mediações entre as estruturas e a prática"; elas são orientadas pelo destaque do filho no ambiente escolar, ou seja, investem naquele que, conforme a ideologia do dom, demonstra aptidão para o estudo. O filho-aluno desempenha um papel específico e ativo na construção do seu sucesso escolar, manifestando autodeterminação e dando mostras de um investimento pessoal na sua escolarização. Assim, o trabalho escolar realizado pela família associa-se e, por vezes, é dependente ou condicionado à predisposição do filho para o estudo, ou seja, a família "investe" naquele membro que se mostra predisposto à ação realizada pela escola.

Esse, contudo, é apenas um dos condicionantes. O trabalho escolar depende, ainda, segundo Portes (2003, p. 65), "das necessidades e questionamentos cotidianos a serem enfrentados pela família", os quais variam de família para família e das circunstâncias. São ações caracterizadas pelo planejamento precário, com horizonte temporal curto, conforme as disponibilidades financeiras e materiais de cada família, expressando o esforço contínuo que empreendem para encarar as exigências da escola, quase sempre voltado não para o sucesso escolar especificamente, mas para que adquiram os modos e as atitudes legítimas. Trata-se de trabalho escolar realizado em tempo próprio, conforme as condições de existência e "pela constituição histórica da família, que traz consigo as desvantagens da origem social", de que é parte o "desconhecimento da estrutura e do funcionamento dos sistemas escolares" e a "evidente ausência de um capital escolar" (PORTES, 2003, p. 63).

Portes (2003) constatou que as camadas populares dedicam uma parcela de cuidados para com a educação dos filhos, tais como: escolha da escola (sempre pública), quando viável; luta pela matrícula; possíveis contatos com outras mães; aproximações (mesmo esporádicas) com os professores; reuniões escolares (quando convidadas); manutenção física da criança e dos equipamentos necessários à frequência à escola; atenção para com as companhias dos filhos; ato de levar à escola (e buscar); vigilância da rua, etc. Para Portes (2003, p. 69),

essas situações revelam todo um cuidado dessas mães para com a escolaridade dos filhos, mesmo que elas não pensem nisso como um projeto, mesmo que não se trate de uma ação racional visando a um fim futuro, distante (por exemplo, a chegada à universidade). Para elas, trata-se de uma obrigação cotidiana que tem que ser feita, necessária para a formação do filho, para seguir em frente.

O trabalho escolar realiza-se dentro do possível, para ver os filhos integrados na vida social ou para que, pelo menos, tenham um trabalho digno, "o sonho da carteira assinada". Muitas compensam a escassez de capital cultural despendendo esforços, muitas vezes para além de suas condições de vida: acompanhamento e vigilância, mesmo quando a mãe está impossibilitada de interferir no processo pedagógico propriamente dito, em virtude dos poucos conhecimentos escolares acumulados; disponibilidade em escutar, ouvir e dar atenção ao filho; permitir que ele dê conta de suas tarefas e necessidades escolares; indagar-lhes sobre seu dia escolar.

Isso, como já alertava Lahire (1997, p. 334), contraria o mito da omissão parental "produzido pelos professores, que ignorando as lógicas das configurações familiares deduzem, a partir dos comportamentos e desempenhos escolares dos alunos, que os pais não se incomodam com os filhos". Os estudos sobre as atitudes escolares nas classes populares mostram que, nesse segmento, as atitudes propriamente no sentido de escolarização e aquisição do capital escolar dependem da estrutura familiar, da relação com o capital escolar e do papel deste na busca de melhores condições de vida.

O ingresso no ensino superior, por exemplo, ocorre entre aqueles que se dedicam aos estudos e reconhecem o valor e a importância que tem a escolarização. Durante o percurso escolar, esses estudantes precisam vencer as limitações e as desvantagens que advêm da atmosfera cultural de seu meio.

Nesse momento da escolarização, os alunos, com muito esforço, empenhamse para dar conta do curso superior em que ingressaram. A família dispõe-se quase totalmente para o sucesso acadêmico do filho, ou este entra no mercado de trabalho para custear seus estudos, pois o dispêndio é grande, em razão de exigências sobre o acadêmico e das características dos cursos, exercendo influência no estudante e na família e condicionando seu desempenho escolar. "Tudo isso irá propiciar uma instabilidade econômica familiar capaz de refletir-se de forma preocupante naquilo que ao longo da trajetória escolar (e social) mais parecia alicerçar esse estudante: sua segurança nas questões atinentes ao escolar" (PORTES, 2003, p. 65).

O ingresso no ensino superior, conforme contatou Portes (2003), leva as famílias a fazerem "adaptações possíveis para que o filho não jogue por terra todo esforço empreendido". Os pais despendem os mais diversos esforços para manter o filho firme na trajetória escolar, alterando o modo como empregam a renda da família, por conta dos gastos que ele vai ter quando do ingresso no ensino superior, movidos pelo sentimento de que a graduação possa garantir um futuro melhor.

Então, depois de todo um esforço para transpor as barreiras e ascender ao ensino superior, os jovens estudantes das camadas populares precisam ainda se adaptar às exigências impostas por cada curso, para uma formação dentro dos padrões preestabelecidos pelo colegiado do curso.

Constata-se, assim, que as famílias das classes populares desenvolvem, dentro das suas possibilidades, um trabalho escolar e, ao contrário do senso comum professoral ou, como diz Lahire (1997), do mito que vigora no sistema de ensino, cuidam para que seus filhos tenham um futuro diferente.

Examina-se, a seguir, a escolarização nas classes médias, expondo o valor que atribuem à escola e à educação e as estratégias que utilizam para obtenção do capital escolar.

3.2. A educação nas camadas médias

A escolarização nas famílias das camadas e classes sociais médias tem sido objeto de estudo de Nogueira (2003; 2004), Romanelli (2003; 1995) e Lellis (2005), entre outros. São estudos amplamente difundidos no âmbito da sociologia da educação brasileira e que têm contribuído para a compreensão da lógica e das práticas desse segmento em relação à aquisição do capital escolar.

De modo geral, a constatação é de que a escola é um meio para que consigam melhores condições de inserção no mercado de trabalho e, consequentemente, salários mais elevados. A escolarização dos filhos, de modo especial o ensino superior, "é avaliada como recurso que qualifica a força de trabalho, habilitando-a a disputar empregos bem remunerados, revestidos de alto valor simbólico, e a competir por posições hierárquicas mais elevadas nas empresas" (ROMANELLI, 1995, p. 446).

A escola e os cursos inserem-se em suas estratégias de reprodução social que, conforme Romanelli (2003, p. 104), "configura-se como processo de transmissão da herança familiar para os filhos, mediante difusão de diversos tipos de capital – simbólico, econômico, cultural, social, escolar", através dos quais as famílias estabelecem vínculos entre as gerações, difundindo conhecimentos que possibilitem a manutenção da estrutura de classe. Em seu interior, não apenas se dá a transmissão dos capitais fundamentais (cultural, econômico, de relações sociais), mas também se forja um certo ethos, como dito anteriormente, em citação de Bourdieu (2002). Em outras palavras, as famílias tomam atitudes, em relação à escola, baseadas em valores adquiridos ao longo das gerações.

Nesse contexto, as estratégias postas em prática pela família ou pelos filhos para garantir o êxito escolar e potencializar o valor dos títulos escolares são: frequência à pré-escola, escolha dos melhores estabelecimentos de ensino (na maioria privados), acompanhamento escolar ou pagamento de professores particulares para reforçar a aprendizagem (quando os pais não podem fazê-lo), aulas de línguas estrangeiras e outros cursos para maior e melhor aproveitamento do tempo extraescolar disponível.

No ensino superior, os jovens recebem todo o apoio material da família para a obtenção do diploma; quando não conseguem vaga numa universidade pública, os pais pagam uma faculdade particular; a meta é o diploma de nível superior e, consequentemente, status mais elevado na estrutura social. Essas estratégias, diz Lellis (2005, p. 138), "têm a capacidade de sedimentar habitus, ajudando a entender como alunos se mobilizam diante dos estudos, das tarefas escolares, de suas preferências quanto aos estilos de ensinar dos professores, etc.".

Essas características, de acordo com Nogueira (2003), acentuam-se ou reduzem-se conforme o peso do capital cultural no conjunto das propriedades. Nas camadas sociais médias, em que pai e mãe são professores do ensino superior com alta titulação, por exemplo, "os itinerários escolares encontrados caracterizam-se, de um modo geral, por sua fluência, linearidade, continuidade, trata-se de um percurso que se faz sem rupturas e que parece desembocar na universidade 'naturalmente'" (NOGUEIRA, 2003, p. 128).

Nesse grupo, constata ainda a pesquisadora, a educação básica é cursada, principalmente, em estabelecimentos da rede privada de ensino e, excepcionalmente, na rede pública, naqueles estabelecimentos de reconhecida qualidade, como as escolas de aplicação, vinculados às instituições federais de ensino superior. Já a educação superior é realizada, majoritariamente, na rede pública, realizando, como é característico dos favorecidos social e culturalmente, o chamado "circuito virtuoso", isto é, "frequência a escolas privadas no ensino fundamental e médio e, depois, ensino superior público" (NOGUEIRA, 2003, p. 129).

A trajetória escolar dos egressos desse estrato social, conforme esse estudo, é toda voltada para o ingresso no ensino superior. Por exemplo, submetem-se ao vestibular antes da conclusão do ensino médio e, uma vez na universidade, como têm certo conhecimento do mundo acadêmico, o senso do jogo, como diz Bourdieu (1992), participam de atividades extracurriculares – monitoria, bolsas de iniciação científica – "para reforçar, ampliar os saberes e saber-fazer mínimos oferecidos nos cursos frequentados" (NOGUEIRA, 2003, p. 140). Tiram proveito de oportunidades, trunfos e recursos disponíveis – em cada conjuntura particular do campo escolar.

Assim, a escolarização quase sempre termina com o sucesso escolar do filho, ou seja, com o diploma de um curso superior, podendo usufruir dos privilégios resguardados pelos títulos escolares (capital cultural institucionalizado), como vagas nos melhores postos de trabalho e prestígio social.

Verifica-se, portanto, que ao volume de capital econômico, cultural e de relações sociais da família soma-se o empenho com que são traçadas as estratégias que conduzem ao êxito escolar dos filhos, isto é, ações deliberadas e racionais tendo em vista um fim previamente traçado ou aquelas realizadas "naturalmente", intuitivamente,decorrentes da interiorização das regras do jogo. Às vezes, como constatou Romanelli (2003), o estudante, diante da exiguidade de capital econômico familiar, insere-se no mercado de trabalho para custear seus estudos, enquanto a família arca com as despesas de moradia e alimentação; em outros casos, o estudante custeia todas as suas despesas.

Para aqueles que trabalham, diz Romanelli (2003, p. 108), o ensino superior não é apenas um investimento de vulto ante o valor da mensalidade e "pela necessidade de conciliar trabalho e estudo, pelo pouco tempo livre, o que reduz as oportunidades de lazer e de repouso". Esse, contudo, segundo o autor, é um investimento rentável tanto para os que pleiteiam uma vaga quanto para aqueles já integrados no mercado de trabalho, pois o curso superior possibilitará ascensão profissional.

Nas camadas sociais médias, portanto, valores educacionais são mais difundidos do que nas classes populares e os meios de atingirem suas metas são sistematicamente postos em práticas para o sucesso dos filhos no meio social, pois é através da educação que realizam suas aspirações.

Examina-se, a seguir, a escolarização nas classes superiores, verificando, a partir de estudos referenciais do assunto na realidade brasileira, o valor da escola para esse segmento e o trabalho que realizam para obtenção do capital cultural.

3.3. A educação nas camadas superiores

A escolarização das classes que ocupam posições privilegiadas no espaço social é um tema que só emergiu recentemente e sobre o qual os estudos são ainda escassos. Segundo Nogueira (2004, p. 133):

a sociologia da educação – tanto no Brasil quanto no exterior – só muito recentemente passou a se interessar pela escolarização dos jovens pertencentes a famílias favorecidas do ponto de vista social, já que, tradicionalmente, é para os meios populares que a atenção do pesquisador se dirige.

No Brasil, conforme Brandão (2007), esse interesse encontra resistência, chegando a ser censurado, ainda que de forma velada, em face do caráter excludente do sistema de ensino brasileiro. Todavia, como afirma a autora e o comprova o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, essa é uma temática consolidada. Nesse contexto, destacam-se as contribuições de Zaia Brandão e Maria Alice Nogueira, que não apenas inauguram a temática no Brasil, como criam uma verdadeira tradição no campo da sociologia da educação nacional. São esses estudiosos que servirão de base para compreender as dinâmicas familiares e trajetórias escolares dos estratos favorecidos, seja econômica, social ou culturalmente, seja em termos da posse de mais de um desses capitais.

A abordagem, em todos eles, é microssociológica, vale dizer, busca as singularidades, focalizando grupos restritos, ora empresários, ora professores universitários com elevados títulos escolares, ora os estabelecimentos escolares em que estudam os membros das classes de maior poder aquisitivo ou com maior volume de capital cultural. Isso, por um lado, expõe seus limites, não sendo suficientes para invalidar o princípio teórico construído por Pierre Bourdieu desde os Herdeiros, em 1964. Por outro, põe em evidência as várias facetas da temática, que não apenas parece fugir de qualquer possibilidade de generalização, como se revela um intricado e emaranhado universo de interesses e intencionalidades. Assim, atestam toda a sua complexidade e a carência de investigação.

De um modo geral, a constatação é de que, nesse universo social, o sucesso escolar é relativo, registrando-se fracassos em meio a uma aprovação acima da média da população total, mas que, diferentemente das classes populares, dispõe de meios para reverter os resultados negativos. Até porque se verificou que, nesse segmento, a escola tem papel secundário nas estratégias de socialização, pois os títulos escolares são uma entre as várias propriedades da herança familiar, nem sempre a mais importante, já que dispõem de outros meios para conservar ou elevar a posição do grupo no espaço social. Com efeito, a escola, nesse universo, é uma entre várias opções com que se deparam os jovens.

Isso, contudo, não é uniforme; as formas de escolarização e as expectativas sobre o papel da escola na reprodução social dependem do tipo de capital predominante na composição da riqueza. Os privilegiados do ponto de vista econômico, conforme constatou Nogueira (2004),

'não apostam todas as suas fichas na escola, investindo – à semelhança dos filhos' – moderadamente (sempre em termos relativos) no setor. Na verdade, os pais do meio empresarial se servem também (ou até mais) de outros tipos de estratégia para salvaguardar ou elevar a posição do grupo familiar no espaço social (NOGUEIRA, 2004, p. 142).

Aqueles cujo favorecimento é mais cultural do que econômico têm conhecimento do "sentido do jogo", isto é, sabem como opera o sistema de ensino, suas regras, linguagem, avaliações. Assim, por um lado, escolhem o estabelecimento escolar a partir de características educativas (trabalho pedagógico, regras disciplinares, qualificação de professores, obrigatoriedade do dever de casa), além de expor os herdeiros às mais diversas atividades extraescolares (esportes, línguas estrangeiras, artes...). Em contrapartida, têm capacidade para "acionar estratégias corretivas e mesmo preventivas em face do primeiro sinal de risco de insucesso, como é o caso da aula particular, prática a que recorrem esses pais [favorecidos socialmente] com muita frequência" (BRANDÃO; LELLIS, 2003, p. 519).

No primeiro, conforme Nogueira (2004), registram-se experiências de reprovação, distorção idade-série, matrícula em escolas e cursos pouco prestigiosos e conciliação de estudo e trabalho remunerado. No segundo, constatam Brandão e Lellis (2003), as reprovações são raras, sendo comuns ações de monitoramento da vida escolar, tais como: disciplina de estudo, reforço escolar, supervisão e intensificação dos horários de estudo e redefinição de prioridades com relação às atividades extraescolares.

Assim, os dois grupos distinguem-se em relação às estratégias de escolarização. No primeiro, voltado para o campo empresarial, complementam-na com a inserção no mundo do trabalho, experimentando-o como empregado ou como proprietário, enquanto, no segundo, inserido no campo acadêmico, a complementação é feita com a "exposição a experiências ricas e diversificadas nos vários espaços sociais nos quais circulam", tais como viagens e convivência nos finais de semana com colegas(BRANDÃO; LELLIS, 2003, p. 520).

Todavia, experimentam o mesmo sentimento em relação à escola: blasé, nos termos de Brandão e Lellis (2003), ou moderado, na expressão de Nogueira (2004). Isto é, quase indiferente, certo desprezo ou, pelo menos, sem ansiedade e grandes esforços, até porque, como constatam esses estudiosos, o que está em pauta não é a excelência do ensino, mas o status conferido pelo diploma, o desenvolvimento integral da personalidade, a segurança emocional e a autonomia intelectual do educando, vale dizer, o valor simbólico da escola. Assim, mesclam, simultaneamente, valorização e desvalorização, crença e descrença, tendo uma relação instrumental com a escola e com o saber que ela transmite, ou antes, não esperando que ela altere suas condições de vida ou suas posições no espaço social.

4. Conclusões

O objetivo deste artigo foi sistematizar estudos e pesquisas sobre o significado de escola e a escolarização nas diferentes classes sociais, ordenando-os conforme as indicações de Pierre Bourdieu sobre as relações entre o sistema de ensino e as classes sociais. Não era intenção realizar um balanço crítico dos diversos estudos apresentados, seja no que se refere às metodologias empregadas, seja no tocante aos seus resultados e análise. Esta tarefa estaria muito além de nossas possibilidades. O esforço consistiu em sistematizar e interpretar os trabalhos examinados, de acordo com alguns argumentos explicativos sobre o modo como cada uma das classes se relaciona com a escola, o que constitui um dos muitos aspectos sobre os quais se examina a relação família-escola.

A intenção aqui foi tão somente organizar esse debate, de modo a reunir os estudos relacionados a cada classe social. Eles evidenciaram que são diversos os significados da escola e os modos de apropriação do que ela oferece. Assim, os destituídos de bens culturais não têm as propriedades necessárias à recepção e à apropriação dos produtos disponibilizados pelo sistema de ensino e, por conseguinte, não conseguem deles se apropriar e, em contrapartida, esperam dele o que não oferece. Já os que têm o sistema de ensino como meio de obtenção ou conservação da riqueza têm-no como principal estratégia não apenas de escolarização, mas também de ampliação das propriedades. Os que dispõem de outros meios para a conservação e a ampliação das suas propriedades usufruem do poder simbólico que os bens produzidos pelo sistema de ensino conferem, mas não despendem grandes esforços para obtê-los; buscam-lhes com moderação, talvez, possa-se dizer, com "naturalidade".

A escola e os seus produtos, saberes e títulos, portanto, diferentemente do que quase sempre se imagina, não têm o mesmo significado para todas as classes sociais, nem mesmo para grupos no interior delas. Esse significado depende da posição que ocupam no espaço social, ou seja, das propriedades de que dispõem.

Talvez o valor que a escola pensa ter e que aninha não só suas mais corriqueiras ações, mas também as diretrizes e os planos estatais, seja apenas a expressão dos interesses de uma classe – a classe média –, que tende a fazer de todos um projeto, talvez, apenas seu. A desconsideração disso pelo sistema de ensino faz com que seja instrumento da distribuição desigual das riquezas, favorecendo os que já dispõem de condições prévias à sua recepção e acumulação e excluindo aqueles que não as possuem.

Assim, construiu-se um quadro de referência para a investigação dos sistemas de ensino, particularmente dos processos de escolarização, extraindo-se lições de princípios de compreensão aplicados em outros universos e reunindo, num só lugar, contribuições esparsas. Todavia, as pesquisas são iniciais e restritas. Muito há ainda a investigar. É preciso envolver maior número de sujeitos e ter instrumentais metodológicos que captem as diferenças entre as classes sociais e seus processos de escolarização e apontem caminhos para que os bens produzidos e distribuídos pelo sistema de ensino alcancem aqueles que não dispõem das condições prévias à sua recepção e apropriação.

Contato:

Universidade Federal do Piauí Centro de Ciências Humanas e Letras Departamento de Serviço Social Campus Ininga Ininga

CEP 64049-550 Teresina, PI Brasil

Recebido: 05/10/2010

Aprovado: 09/11/2011

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Set 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2010
  • Aceito
    09 Nov 2011
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