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Espaço escolar e discriminação: significados de gênero e raça entre crianças

School space interacting and prejudice: meanings of gender and race among children

Resumos

Este estudo tem por foco as interseções entre as expressões da discriminação racial, as concepções de masculinidade e feminilidade e o pertencimento de sexo entre crianças. Resulta de uma das vertentes da pesquisa de campo desenvolvida em 2001-2004 em uma escola pública com diferentes segmentos sociais, situada na cidade de São Paulo. Busca saber como meninos e meninas construíam suas relações no cotidiano escolar e como estabeleciam estratégias de sobrevivência em uma sociedade desigual. Caracteriza-se como pesquisa etnográfica e tem por referência os estudos de gênero e a sociologia da infância. Com crianças dos anos iniciais, foram observados recreios, salas de aula, e entrevistaram-se 26 meninas e 29 meninos. Entre discriminações de todas as ordens, observa-se forte racismo/sexismo em interações com pouca interferência dos adultos e que cabe às meninas negras tatear caminhos frente à estética dominante de cor da pele, textura dos cabelos, beleza e peso.

Discriminação; Gênero; Raça; Meninas; Anos Iniciais


This study focuses on the intersections between expressions of race/ethnicity prejudice and conceptions of masculinity, femininity, and gender among children. It is the result of previous field researches performed in 2001-2004 in a public school located in São Paulo, with the participation of subjects from different social segments. It tries to understand how boys and girls experienced and perceived their relationships in daily school and how they determined strategies of survival in a society that it is structured on inequalities. This study is an ethnographic research and refers to the studies of gender intercrossed with the fields of sociology and infancy. The research observed the breaks between classes, the life in the classrooms and it was carried out an interview with twenty-six girls and twenty-nine boys from elementary school. As well as prejudiced acts of all kinds, strong sexism/racism can be noticed in interactions that suffer little interference from adults. In addition, we observed that black girls are responsible for finding themselves the paths to face the dominant esthetics regarding skin color, hair texture, beauty and weight

Gender Prejudice; Racism; Girls; Elementary Schools


ARTIGOS ARTICLES

EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE E INCLUSÃO

Espaço escolar e discriminação: significados de gênero e raça entre crianças1 1 Nas citações bibliográficas, ao longo do texto, torno visível a autoria, citando o nome e o sobrenome dos(as) autores(as), quando de sua primeira aparição.

School space interacting and prejudice: meanings of gender and race among children

Tânia Mara Cruz

Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP); Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Sul de Santa Catariana (UNISUL); Integrante do grupo de pesquisa Educação, Cultura e Sociedade da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)/CNPQ. E-mail: tania.cruz@unisul.br

Contato

RESUMO

Este estudo tem por foco as interseções entre as expressões da discriminação racial, as concepções de masculinidade e feminilidade e o pertencimento de sexo entre crianças. Resulta de uma das vertentes da pesquisa de campo desenvolvida em 2001-2004 em uma escola pública com diferentes segmentos sociais, situada na cidade de São Paulo. Busca saber como meninos e meninas construíam suas relações no cotidiano escolar e como estabeleciam estratégias de sobrevivência em uma sociedade desigual. Caracteriza-se como pesquisa etnográfica e tem por referência os estudos de gênero e a sociologia da infância. Com crianças dos anos iniciais, foram observados recreios, salas de aula, e entrevistaram-se 26 meninas e 29 meninos. Entre discriminações de todas as ordens, observa-se forte racismo/sexismo em interações com pouca interferência dos adultos e que cabe às meninas negras tatear caminhos frente à estética dominante de cor da pele, textura dos cabelos, beleza e peso.

Palavras-chave: Discriminação; Gênero; Raça; Meninas; Anos Iniciais.

ABSTRACT

This study focuses on the intersections between expressions of race/ethnicity prejudice and conceptions of masculinity, femininity, and gender among children. It is the result of previous field researches performed in 2001-2004 in a public school located in São Paulo, with the participation of subjects from different social segments. It tries to understand how boys and girls experienced and perceived their relationships in daily school and how they determined strategies of survival in a society that it is structured on inequalities. This study is an ethnographic research and refers to the studies of gender intercrossed with the fields of sociology and infancy. The research observed the breaks between classes, the life in the classrooms and it was carried out an interview with twenty-six girls and twenty-nine boys from elementary school. As well as prejudiced acts of all kinds, strong sexism/racism can be noticed in interactions that suffer little interference from adults. In addition, we observed that black girls are responsible for finding themselves the paths to face the dominant esthetics regarding skin color, hair texture, beauty and weight.

Keywords: Gender Prejudice; Racism; Girls; Elementary Schools.

Introdução

Numa ampla pesquisa, em 2001, com crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola estadual da Grande São Paulo, registramos cenas do recreio e das salas de aula. Entrevistamos as crianças. O que pudemos ver nos levou, entre outras questões já trabalhadas em publicações anteriores, a refletir também sobre o quão discriminatórias podem ser as culturas infantis vivenciadas no espaço escolar e a perceber o quanto de tensão havia nessas vivências, particularmente quando se tratava de gênero (masculinidades/feminilidades), de sexo (meninos/meninas) e de raça.

Cabe aqui pontuar sobre os conceitos de discriminação e de preconceito, necessários ao entendimento da análise. Partilhamos da definição e diferenciação de Nilma Lino Gomes (2005) sobre os dois termos:

O preconceito é um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença, de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel significativo. Esse julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade, pois tende a ser mantido sem levar em conta os fatos que o contestem. Trata-se do conceito ou opinião forma dos antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos. O preconceito inclui a relação entre pessoas e grupos humanos. Ele inclui a concepção que o indivíduo tem de si mesmo e também do outro. [...] A palavra discriminar significa "distinguir", "diferenciar", "discernir". A discriminação racial pode ser considerada como a prática de racismo e a efetivação do preconceito. Enquanto o racismo e o preconceito encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam (GOMES, 2005, p.54-55).

Ainda que o preconceito racial nem sempre gere comportamentos discriminatórios, pois é da ordem da consciência de indivíduos ou grupos, ele é a base sobre a qual se assenta a discriminação. Mas Gomes alerta que "a discriminação racial pode ser originada de outros processos sociais, políticos e psicológicos que vão além do preconceito desenvolvido pelo indivíduo" (GOMES, 2005, p.55). Por fim, podemos afirmar, ainda que racismo e sexismo tenham trajetórias históricas diferenciadas e conteúdos distintos, que a mesma lógica conceitual exposta acima vale para ambos.

Ao pensarmos nos preconceitos e discriminações presentes nas culturas infantis, partilhamos com Manuel Sarmento (1997) e Manuel Pinto (1997) que as culturas vivenciadas pelas crianças não nascem num vazio social ou no mundo exclusivo da infância, porque resultam dos diferentes processos vividos por elas durante a institucionalização escolar, a organização de seu tempo livre, a inserção familiar e o acesso aos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, podemos aplicar a crianças e adultos a proposição de Agnes Heller (2000), ao afirmar que, "por um lado, assumem-se estereótipos, analogias e esquemas já elaborados, por outro, eles nos são 'impingidos' pelo meio em que crescemos" (HELLER, 2000, p.43). É um processo ativo de aceitação e recusa perante o já dado socialmente – uma sociedade racista e sexista. As crianças, e frisamos aqui não apenas o sentido singular de criança, mas sua multiplicidade, tão vasta quanto os diferentes contextos de infância, não repetem simplesmente o que aprendem do mundo adulto: são capazes de gerar produção simbólica e de constituir suas representações e crenças em sistemas organizados em contextos sócio-históricos e geográficos distintos. No entanto, não escapam, impunemente, da sociedade na qual adentram e aprendem a viver, com tudo o que implica o aprendizado das relações de poder e os ganhos que se podem obter ao se transformar a diferença em hierarquia.

Culturas infantis e culturas do mundo adulto são dialeticamente relacionadas em diferentes espaços sociais. Dentro e fora da escola, crianças e adultos vivenciam – ainda que de modo contraditório – processos educativos que estão sujeitos hegemonicamente aos valores do capital na sociedade moderna e que se expressam em relações de poder e dominação exercidos em todos os níveis das relações humanas, aos quais se contrapõem conflitos e resistências, que se expressam em movimentos de contra-hegemonia (GRAMSCI, 2002; COUTINHO, 2007), ora desembocando em embates radicais, ora sendo reabsorvidos, ressignificados, sem que se altere sua lógica maior. Se, dentro da escola, os elementos de socialização que contribuem para um ethos capitalista se expressam muito mais nas relações sociais na e da escola do que no currículo que se configura como oficial – apoiando-nos, aqui, na teoria crítica de currículo, torna-se necessário olharmos para os processos interativos entre crianças e entre crianças e adultos como espaços de contestação e transformação escolar.

A escola, como espaço sociocultural pleno de contradições, como quaisquer outros espaços, abriga, em seu interior, relações entre crianças, que tanto podem reforçar como questionar as práticas discriminatórias vigentes nela. Há um processo dinâmico na escola, de possibilidades e necessidades. Partimos aqui do princípio de que os carecimentos ou necessidades humanas são de todas as ordens e não meramente cognitivos, sendo necessário compreender os sujeitos que frequentam a escola a partir de uma visão integradora. Como afirma Bernard Charlot, "aprender não é apenas adquirir saberes, no sentido escolar e intelectual do termo, dos enunciados. É também apropriar-se de práticas e de formas relacionais e confrontar-se com a questão do sentido da vida, do mundo, de si mesmo" (CHARLOT, 2005, p.57).

Do que necessitam as crianças? Como vivem e como pensam sobre suas relações? Como recriam ou reproduzem as discriminações que os estudos sobre os adultos nos têm dito? Que demandas apresentam para a escola que a própria escola não percebe? Como educam umas às outras longe dos olhares dos educadores? E, por fim, como entender a ação educativa que as crianças assumem umas sobre as outras, ou, dito de outro modo, a influência entre pares? Para nós, problematizar o ambiente escolar e as relações entre crianças pode contribuir para o questionamento de uma sociedade que, por definição, é calcada em relações hierárquicas e assimétricas. Inicialmente, buscamos compreender essas questões naquele cotidiano escolar e ter por foco as mediações sociais vivenciadas a partir dos conflitos de classe, étnicos, raciais e de gênero. No entanto, no decorrer do trabalho de campo, seguimos a vertente da análise sobre gênero e raça, por serem os motivos da maioria das discriminações ali vivenciadas.

Procedimentos metodológicos e a ética com crianças

Na busca de tratar a criança como um sujeito e em equivalência ao adulto, em seu protagonismo social, questionamos os procedimentos que a restringem a objeto de pesquisa. Em outras palavras, pensamos que podemos pesquisar com crianças e não apenas as crianças, inserindo-as no processo de pesquisa e mantendo uma escuta do que elas têm a nos dizer, dentro da ideia de simetria ética de Pia Christensen e Alan Prout (2002). Por ser processual, a etnografia permite esse cuidado e corrobora essa visão ética. Apresentamos explicitações prévias sobre o tema de pesquisa aos sujeitos envolvidos e, sobretudo, construímos uma aproximação lenta com explicações sucessivas no trabalho em campo, por meio de frequentes conversas com as crianças. Por meio de uma observação atenta, buscamos padrões, repetições, lógicas que refinam o olhar e nos possibilitam uma profunda análise sobre o contexto pesquisado (ROCKWELL, 1987; ERICKSON, 1984). Com a cumplicidade construída, tornou-se comum meninas e meninos virem a nós tecendo seus comentários e reclamações de um grupo ou de outro, integrando-nos às suas brincadeiras, tratando-nos como jornalistas, para quem vinham trazer notícias, ou, ainda, como aliadas e conselheiras em suas questões afetivas. Como as crianças já eram alfabetizadas, mostrávamos a elas as anotações de campo, ampliando nossos vínculos e favorecendo a autorreflexão infantil no processo de selecionar e contar fatos ou esclarecer dúvidas.

Por termos como base uma ética etnográfica e por considerar as crianças como sujeitos, pensamos ser insuficiente a autorização de pais/mães ou da escola: partimos do pressuposto de que o respeito deve ser contínuo, porque os contextos mudam, e, por isso, qualquer aproximação só ocorria após nossa solicitação de permissão para a entrada no que costumamos chamar de cena, local em que se desenvolve um acontecimento. Igualmente, procedemos nas entrevistas ou aplicação de questionários e formulários: informamos que poderia haver a recusa a qualquer momento. Mas os casos de recusa foram raros, sendo mais frequente o contrário: ficarem chateadas pela demora da entrevista ou a não realização dela. Essa situação nos fez proceder de modo extensivo, aplicando a todas as crianças o questionário de discriminação e o formulário de autoatribuição de raça/cor. Com relação às entrevistas, ampliamos ao máximo a possibilidade e chegamos a um número de 55 crianças entrevistadas, de terceiras e quartas séries (de agora em diante designadas como quartos e quintos anos, devido à mudança educacional), em um universo de 116 crianças, quando a intenção original era entrevistar apenas algumas crianças, em função das cenas observadas no recreio. Os nomes, tanto da escola quanto das crianças, são fictícios e atribuídos por nós.2 2 Alguns autores, como Sônia Kramer (2002), consideram importante manter o primeiro nome das crianças ou solicitar-lhes que atribuam a si mesmas um nome para posteriormente se reconhecerem. Apesar de já termos feito isso em outras pesquisas e considerarmos um procedimento pertinente na maioria dos casos, optamos aqui pelo sigilo máximo, já que as reclamações de discriminação eram feitas entre crianças e poderiam criar problemas entre elas, mesmo observando que muitas delas verbalizavam essas críticas durante o recreio para os/as colegas.

Durante as observações de campo, no decorrer do ano letivo, houve diferenciações por sexo, conforme o espaço em que se davam. No recreio, as meninas nos incluíam a todo instante, e os meninos oscilavam entre disputar com as meninas a nossa atenção, dispersarem-se após um primeiro contato, ou até nos incluírem em suas transgressões. Na sala de aula, ao contrário, os meninos manifestavam uma insistente curiosidade, sendo atrapalhados pelas meninas nesse movimento, já que elas mantinham o mesmo interesse demonstrado no recreio. Nas entrevistas, que duravam cerca de 30 a 40 minutos, o interesse foi comum, sendo as crianças orientadas por nós a escolherem seu/sua melhor amigo/amiga para formar a dupla. O espaço foi apresentado a todas como uma comunicação reservada, a ser mantida no anonimato, e, a cada dupla que saía, a dupla seguinte vinha mais animada, talvez porque ali comentavam seus dilemas que nós já vínhamos acompanhando no decorrer do ano. Durante cada entrevista, informávamos a cada criança sobre a necessidade de conhecer sua opinião, respeitando seus sentimentos e informando sobre o direito ao silêncio ou interrupção da entrevista a qualquer momento, critérios em parte semelhantes ao que Martine Delfos (2001) aponta para entrevistar crianças.

No início da pesquisa, aplicamos um formulário de autoatribuição de raça ou cor, conforme o Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE, 2000), a saber: branca, preta, parda, amarela ou indígena. Acrescentamos a opção outra com um espaço para que as crianças preenchessem, caso não se vissem dentro desses indicadores. Em meados do segundo semestre, aplicamos um questionário anônimo, centrado sobre as discriminações sofridas no espaço escolar, que ajudou na elaboração do roteiro semiestruturado para as entrevistas no final de ano, que tiveram como intuito refinar o olhar sobre as práticas cotidianas. Nas entrevistas, nossa pergunta relativa à cor centrava-se em ser ou não negros(as), pois tínhamos por objetivo saber se as crianças, que, em sua maioria, se haviam definido, no formulário de autodesignação, como morenas ou suas variáveis, mantinham verbalmente o distanciamento da ideia de pertencimento a uma identidade de raça/cor, tendo por referência os estudos que ligam a identidade racial à atribuição de cor e às problemáticas decorrentes da ideologia do branqueamento (MUNANGA, 2004).

Nas citações de trechos de entrevistas, colocamos, ao lado do nome da criança, a autoatribuição apontada em formulário, para que o(a) leitor(a) possa compreender nossa reflexão sobre os dois momentos. Ainda que raça e cor fizessem parte do universo infantil de construção de identidades e fossem visíveis nas situações de conflito, pôde-se constatar, no entanto, que a ressignificação de termos, como negro, esteve presente para poucas crianças da E. E. Luiza Mahim, constituindo, inclusive, para muitas, um adjetivo pejorativo.

Algumas reflexões sobre raça e gênero

Apesar de considerarmos que raça e gênero são indissociáveis de classe na constituição da identidade, em nossa pesquisa com crianças dos anos iniciais, observamos que a discriminação se dava de uma maneira difusa, a partir dos marcadores socioeconômicos, mas de maneira candente, quando revelava as imbricações entre raça e gênero, e, por isso, direcionamos nosso olhar para elas. Partilhamos a nossa noção de raça com Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, para quem raças são:

[...] cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. Podemos dizer que as "raças" são efeitos de discursos [...]. São discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc. pelo sangue (conceito fundamental para entender raças e certas essências) [...] quando falamos de lugares, falamos de etnias. Existem vários outros tipos de discursos que são, também, discursos sobre lugares: lugares geográficos de origem [...] quando falamos de lugares, falamos de etnias (GUIMARÃES, 2003, p.96).

O mesmo autor analisa, ainda, o conceito de cor como fundamental para entender como os brasileiros constroem suas identidades em um mosaico de cores e como processam também o racismo por meio dele. Entre as crianças, houve muita resistência aos indicadores do IBGE. Das quatro turmas pesquisadas, as duas turmas de quinto ano questionaram o conceito de pardo durante a leitura dos indicadores, o que nos levou a orientá-los no sentido de não o utilizar, caso não quisessem, tendo, para isso, a opção outros.3 3 Houve resistências de crianças de origem asiática, que se viam como brancas, e de origem indígena, que se viam como morenas. O resultado dessa recusa coletiva fez com que a utilização da cor parda fosse feita por uma única criança, tendo os demais registros apresentado um grau variável de designações e nuances, como moreno, café com leite, entre outros. A transcrição das falas a seguir permite refletir sobre a dimensão da cor:

Pesquisadora (P): Você já sentiu algum tipo de tratamento ruim em relação a vocês, por questão de cor, racismo? AN: Já. P: Dá um exemplo. AN: Tem que ser aqui da escola? Lá fora, né, você sabe que eu sou um pouquinho café com leite, né? P: Negro? AN: Não, só tenho essa corzinha aí [tocou seus braços], tinha uma menina loirinha, loirinha, de olhos verdes, cabelos cor do sol. Aí ela gostava de mim, a mãe dela falou 'ai, eu não quero você namorando com esse negro aí, já pensou um bebê todo negro com cabelo loirinho enrolado?' (E. André, café com leite 5I).

P: Você já passou ou já viu alguma experiência de racismo aqui na escola? AD: Já, em casa também, uma sobrinha, ela é pretinha, e a mãe dela ensinou ela a não gostar de branco, aí [?] e aqui na escola a mesma coisa, ou por causa da cor ou por causa do cabelo, ter cabelo ruim, ter cabelo duro. P: O que é um cabelo ruim? AD: Ah, é ter um cabelo assim, igual o meu, não é tão ruim pra pentear [o cabelo dela é longo] ele é crespo [...]. P: Você acha que é negra ou não? AD: Acho que eu sou morena (E. Adriana, morena 5I).

Dentro e fora da escola, a cor é vivenciada como um elemento definidor de si, e, na vontade de branqueamento, a cor negra é transformada em café com leite ou morena, para André, ou morena, no caso de Adriana, mesmo designando sua sobrinha de modo diferente, como pretinha. Curiosamente, a primeira manifestação de racismo que ela descreve é da mãe negra contra os brancos, só admitindo o racismo de brancos contra negros depois, sobre ela, ora em relação ao cabelo considerado ruim, ora à cor. Pensamos que a dimensão do cabelo crespo, quando associada à cor, é um elemento tão definidor de raça e racismo quanto a cor, considerando que aparecem quase sempre juntos na indicação de racismo; aparecem ainda na indicação de desejo de branqueamento, expresso no cabelo que não seria tão ruim assim ou na cor da pele, um pouquinho café com leite.

Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etnosemântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico (MUNANGA, 2004, s/p).

Cor e cabelo estão intimamente ligados à estética e à feminilidade, e, no olhar de uma masculinidade racista, que ainda é hegemônica, o padrão deve ser o da mulher branca; entre crianças, sexismo e racismo ganham força quando se fundem na construção social do que é ser menina e negra.

A complexidade do conceito de gênero merece inicialmente uma ponderação, apresentada por Heleieth I. B. Saffiotti:

A perspectiva feminista toma o gênero como categoria histórica, portanto substantiva, e também como categoria analítica, por conseguinte, adjetiva. Não existe um modelo de análise feminista. Rigorosamente, o único consenso existente sobre o conceito de gênero reside no fato de que se trata de uma modelagem social, estatisticamente, mas não necessariamente, referida ao sexo. Vale dizer que o gênero pode ser construído independentemente do sexo. O consenso, entretanto, termina aí (SAFFIOTTI, 2001, p.129).

A partir dessa base comum apontada por Saffiotti (2001), acrescentamos aqui outras vertentes com as quais dialogamos. Não há uma natureza que não seja informada pelo gênero, ou seja, o sexo já nasce generificado. Destacamos algumas contribuições que nos embasam: Linda Nicholson (2000) e Judith Butler (2003), por reafirmarem o caráter instituidor (e cultural) de gênero sobre os corpos, desvinculando a origem de gênero como decorrente de corpos sexuados de homem e mulher; Michel Foucault (1987), pelo olhar sobre as relações de poder em todos os níveis; e Robert Connell (1995), pela proposição de arranjos múltiplos de gênero em uma diversidade de masculinidades e feminilidades e seu conceito de masculinidade hegemônica. Pensamos, ainda, que não se pode utilizar gênero como sinônimo de mulheres e homens. Há sujeitos e há significados. Não são, entretanto, significados neutros do ponto de vista do poder, visto expressarem desigualdades sociais entre seres humanos, seja entre homens e mulheres, entre homens e homens, e entre mulheres e mulheres. Utilizaremos gênero(s) como construções simbólicas de feminilidades e masculinidades, vistos em relação ou separadamente, e relações de gênero, quando nos referirmos às relações sociais mediadas pelos significados de gênero, quer sejam elas relações entre homens e mulheres, mulheres e mulheres ou homens e homens.

As discriminações ligadas à raça e gênero eram frequentes entre as crianças e faziam parte de um rol maior de comportamentos discriminatórios de qualquer ordem de características pessoais, como peso, beleza, agilidade física e mental, entre outras. As crianças, ao produzirem as relações sociais, são produzidas por elas, em um processo complexo, no qual constroem interpretações próprias, reelaboram ou reproduzem informações do mundo adulto, ao mesmo tempo em que agem sobre ele, transformando-o, em um processo que William A. Corsaro e Donna Eder denominam de reprodução interpretativa (CORSARO; EDER, 1990). A temática referente a ser ou não uma pessoa preconceituosa era frequente entre as crianças, e é necessário destacar que havia crianças que se afirmavam como não preconceituosas, mas que não conseguiam se opor ao contexto discriminador vigente, assim como havia crianças que sofriam discriminações, conseguindo manter forte autoestima, a ponto de ignorar aquele(a) que cometia a discriminação. Entretanto, no contexto escolar pesquisado, as ações discriminatórias tinham uma intensidade que demandava cuidado por parte daqueles que educam e geram espaços educativos. Afinal de contas, "se o fenômeno é, como vimos, de origem objetiva, e, se, nos dias que correm, é difícil aos homens alterarem as condições objetivas, parece que resta, tal como sugere esse autor [Adorno], sobretudo à educação, fortalecer os sujeitos no seu combate" (CROCHIK, 2008, p.101).

O inventário das diferenças

A ideia de gerar informações infantis de modo escrito pelas próprias crianças sobre as discriminações sofridas surgiu no decorrer da produção dos diários de campo e antes de procedermos às entrevistas, como um exercício de aproximação sobre as motivações infantis para as ações observadas. Os indicadores utilizados por nós pautaramse na linguagem infantil ali observada, com exceção do termo homossexual, já que o comum, entre as crianças, na escola, eram as expressões bicha e veado. Ao invés de "ser", que implicaria numa possível concordância com a designação alheia, a expressão "ser considerado(a)" buscava permitir às crianças que não se preocupassem se eram ou não (a partir de um possível movimento de autoatribuição durante a elaboração das respostas), mas sim com o que os outros supunham que elas fossem e as tratassem discriminadamente a partir desse referencial. O questionário anônimo de discriminação foi respondido por 112 crianças, sendo que 51 eram meninas e 61 eram meninos.

No total de 51 meninas, 40 manifestaram alguma percepção de discriminação contra si; e de 61 meninos, 36 manifestaram o mesmo. Em números individuais, podemos dizer que pouco mais de dois terços das meninas e metade dos meninos sofrem discriminação na escola pesquisada. Mas, se considerarmos o número de ocorrências citadas, vamos perceber um dado interessante: se o número de ocorrências entre meninos é maior que o número total deles, significa que os mesmos meninos são muitas vezes discriminados, principalmente nos quesitos considerado homossexual, por agir diferente dos meninos e por usar cores, objetos e roupas considerados de meninas. Tais dados correspondem a pressões ostensivas na defesa da masculinidade hegemônica e da heteronormatividade, por meio da designação de gays e veados a meninos que expressam alguma característica considerada como feminina, embora, ao designar um menino, quem o designa não trabalhe, necessariamente, com certezas, mas com enquadramentos em situações masculinas, como podemos ver na entrevista a seguir:

P: Vocês chamam uns aos outros de homossexuais? LU: O que é isso? P: Bicha. LU: M., ele é muito bichinha, ele fala assim 'traz essa régua pra mim' [modo feminino]. RE: É mesmo, ele falava isso pra Luciana emprestar a régua. LU: 'Me empresta o lápis!' [modo feminino] (E. Luciana, branca, e Renata, branca 4II).

P: Discutem muito como provar, e para você, como é que você prova que uma pessoa não é bicha? LU: Vamos supor, às vezes, no futebol, ele não fica muito tempo, ele sai (E. Leonardo, negro 4I).

Estudos pioneiros, como de Katharina Beraldo (1993), e muitos outros, nos anos seguintes, já analisaram, em outros contextos, essa situação escolar encontrada por nós, que resulta em maior pressão social sobre os meninos, tanto de adultos quanto de colegas, imbuídos da valorização de uma masculinidade em que o jeito delicado ou o fato de não jogar futebol são considerados atributos femininos.

A partir do QUADRO 1, podemos ainda pensar que o fato de ser menina já era um atributo por si mesmo desvalorizado, conforme a masculinidade hegemônica vigente em nossa cultura, na qual a hierarquia entre homens e mulheres é predominante. Parece bastar ser mulher para ser desvalorizada, como mostra o índice de 16 ocorrências de discriminação por ser considerada menina para um índice bem menor que seis por ser considerado menino. Ainda que, em ambos os grupos, haja uma postura coletiva normativa de gênero sobre o que entendiam ser apropriado para meninas ou para meninos, a balança pende mais para o sofrimento de meninos quando a forma de expressão é que está em jogo, já que quase metade dos meninos e um terço das meninas responderam sofrer discriminações relativas à utilização de adereços ou por agir diferente em relação a sexo/gênero. Somado aos outros atributos de gênero, podemos dizer que a menina sofre dupla pressão, por ser menina e/ou por agir diferente das meninas, ainda que isso não signifique ser considerada homossexual, como veremos mais adiante nas entrevistas analisadas, diferentemente dos meninos, que são discriminados a qualquer desvio que negue o padrão de homem, masculino e heterossexual.


Na parte destinada a outras ocorrências, foram citadas 37, em geral ligadas à aparência, sendo que o quesito peso, trazido pelas crianças, é fator de sofrimento aparentemente igual para ambos os sexos, principalmente sob o apelido de baleia.

JA: E isso que também ficam chamando as meninas de magrela, de baixinha, de altona, de gordona, de tanajura. P: Quem faz mais isso, as meninas ou os meninos? JA: Os meninos, muito dos meninos ficam achando que as meninas gordas são baleias (E. Jaqueline, branca 5II).

KA: Aqui eles chamam a gente de gorda, de baleia. P: É? Eles fazem muito isso? Ambas: Fazem. P: Ah, tem outras coisas que eles discriminam, como cor? Kátia, você se sente negra? [não respondeu uma parte da pergunta e foi direto para a sequência]. KA: Cor, eles nunca disseram, eles pegam pela gordura, ser uma baleia. KA: É [risos gerais]. P: E você, Marcela? MA: Já me chamaram de magricela, essas coisas, assim. Não ligo muito não, às vezes, eu me defendo, mas em geral eu finjo que não estou nem escutando. P: Como que você se defende? MA: Eu falo para eles pararem, que eu vou falar para a professora. P: E você, como se defende, Kátia? KA: Eu fico na minha, eu falo que quando me chamam de gorda e o menino que me chama é gordo, eu também falo. P: Que ele é gordo, você resolve assim? MA: É (E. Marcela, morena, e Kátia, negra 5II).

Os meninos tendem a usufruir do poder produzido pela linguagem com mais desenvoltura porque, ao chegarem aos anos iniciais, já exercitam uma diferenciação de gênero na linguagem que lhes é favorável, visto que, para a masculinidade hegemônica, o palavrão é um atributo de masculinidade. No conteúdo das entrevistas, a recorrência ao uso do palavrão como instrumento de poder e de atribuição de identidade sobre as meninas foi reafirmado a todo instante, ao que elas diziam reagir batendo, em cenas já vistas por mim no decorrer do ano. Salvo exceções, meninas pouco incorporam os xingamentos em suas formas de ataque ou defesa. Talvez por isso a queixa frequente das meninas, e suas sugestões nas entrevistas eram que, se pudessem mudar algo nos meninos, mudariam sua linguagem.

Ao analisar o conjunto das discriminações sobre os meninos relativas às diferenças, constatamos que as questões estéticas foram pouco mencionadas, com exceção da referência ao peso, e nem eram visíveis a nós no recreio ou sala de aula. As questões de sexo/ gênero/orientação sexual estavam presentes em todos os registros de campo, enquanto as relativas à raça estavam presentes quando eram registrados momentos de conflito de diversas ordens, que terminavam em xingamentos racistas ou em conflitos criados pelo próprio racismo, e que vamos aprofundar a seguir.

As relações raciais entre crianças

Nossos registros de cenas racistas marcaram momentos pontuais em que houve insultos e que, muito rapidamente, se desfizeram. Por sua vez, o questionário anônimo sobre discriminação respondido por 112 crianças pouco revelou a respeito das relações raciais entre crianças, já que apenas quatro meninas e cinco meninos demarcaram algum tipo de discriminação por serem considerados negros(as). Dificuldade de perceber o racismo ou de se ver como negro(a)? Ao cruzarmos com o outro formulário de autoatribuição de raça/cor respondido por 114 crianças, percebemos que o conceito de negro não é utilizado pela maioria das crianças. Apenas nove crianças se autodesignaram negras.

Quadro 2


De modo geral, salvo exceções, as crianças se autodefiniram na entrevista com a mesma descrição que fizeram no formulário: poucas negras, algumas pardas e a maioria morena, o que não impediu as pardas e morenas de dizerem que sofriam racismo e relatarem situações vividas na escola. Cabe destacar que houve um pequeno número de crianças que se considerou morena e que, por ter pele clara e cabelo preto, ou ser bronzeada, poderia ser considerada socialmente branca, por heteroclassificação (GUIMARÃES, 2000). Talvez as poucas ocorrências de racismo no questionário anônimo de discriminação se devam à impessoalidade da folha escrita e ao sofrimento mais introspectivo que o racismo provoca, de impedimento de denúncia – nesse sentido, semelhante à discriminação contra o homossexual masculino, ao contrário das demais questões de gênero e suas lutas, que são de algum modo legitimadas socialmente e justificadas pelas mudanças culturais. Como exemplo, temos Fabiano, que, no formulário, havia-se colocado como moreno, mas, na entrevista (abaixo), disse ser negro e ter vivenciado o racismo. Nas entrevistas, as crianças revelaram identificar e sofrer o racismo em situações muito além das apontadas por elas no questionário.

P: E você, já viu alguma espécie de racismo? LA: Eu já. JA: Na escola? P: É, na escola, o que você já viu, Laura? LA: Um dia, um menino, não sei de que série que era, chamou o outro de neguinho, isso é racismo, né? (E. Laura, morena, e Jaqueline, branca 5II).

P: Fabiano, você acha que você é negro? FA: [faz que sim]. P: Você já vivenciou uma situação de racismo? FA e ED: Já [?] todos falam ao mesmo tempo [beiçudo]. P: [...] o chamaram de beiçudo (E. Fabiano, moreno, e Edgar, moreno 4II).

P: E apesar de vocês não terem passado por isso, veem situações de racismo aqui? MA: Com a Tatiana. P: De que modo? KA: Ah, eles ficam chamando ela de carvão, eu mesmo já vi. MA: Eu nunca vi isso. P: E você, faz o quê? KA: Ah, eu procuro não entrar na briga. MA: É bom não entrar na briga porque depois sobra pra gente (E. Marcela, morena, e Kátia, negra 5II).

A mesma espécie de insultos observados em interações infantis e relatados nas entrevistas foi analisada por Érica Renata de Souza (2006), que argumentou ser a estética atrelada, de modo geral, ao marcador raça, compondo ambos quase que um só marcador, que, a todo o momento, estrutura fronteiras e estigmas, citando ser fato comum meninos serem chamados de "Negão", "Preto", "Carvão", "Macaco", e meninas, de "Bombril", "Cabelo de vassoura", ou "Canhão".

Para Guimarães, a função do insulto racial "é institucionalizar um inferior racial, sendo capaz não só simbolicamente de dirigir a pessoa discriminada a seu lugar inferior historicamente constituído, como também de reinstituir esse lugar" (GUIMARÃES, 2000, s/p), legitimando a hierarquia entre grupos sociais. A ofensa verbal é uma das formas de insulto racial, que inclui, ainda, atos ou gestos. No Brasil,

[...] o próprio termo que os designa como grupo racial (preto ou negro) já é em si mesmo um termo pejorativo, podendo ser usado sinteticamente, sem estar acompanhado de adjetivos ou qualificativos. Assim, negro ou preto passam a ser uma síntese verbal ou cromática para toda uma constelação de estigmas referentes a uma for mação racial identitária (GUIMARÃES, 2000, s/p).

O insulto deixa de ser sintético e passa a ser qualificado quando combina com outros adjetivos, como insulto sexual, ao chamar a mulher negra de "vagabunda, sapatão, Maria Homem" (GUIMARÃES, 2000, s/p), ou fazendo uso de atributos diminutivos e de animalidade.

Nas observações no recreio ou nas narrativas durante as entrevistas, pudemos perceber que as crianças negras insultavam crianças brancas com termos qualificativos como branca azeda e leite moça, provavelmente como forma de defesa ao racismo do branco feito a elas por colegas, ou quem sabe como uma devolução particular, mas resultante do racismo social que ela sofre em outras circunstâncias fora da escola. Em situações como essa, raramente as crianças brancas interpretavam a reação da colega insultada como defesa, devolvendo com mais violência ainda, em suas demonstrações de racismo. No acúmulo de mágoas, o círculo vicioso estava formado, e a convivência por meio de insultos raciais recíprocos legitimava-se no cotidiano da escola.

A racialização é um processo vivenciado por todos(as), mesmo que, aparentemente, isso só se dê com negros(as), devido a serem eles(as) o ponto frágil da hierarquia social.

É importante salientar que tanto negros como brancos experimentam seu gênero, classe e sexualidade através da "raça". A racialização da subjetividade branca não é, muitas vezes, manifestamente clara para os grupos brancos, porque "branco" é um significante de dominância, mas isso não torna o processo de racialização menos significativo. É necessário, portanto, analisar que nos constroem como, digamos, "mulher branca" ou "mulher negra", como "homem branco" ou "homem negro" (BRAH, 2006, p.345-346).

Apesar de extensa, a citação que se segue demonstra bem o mecanismo de retroalimentação que as crianças instituem em suas práticas:

P: Vocês já viram, já presenciaram questão de racismo? Ambos: [Sim, com a cabeça]. P: Já, você se acha negro, Igor? IG: Sim. P: E com você, já aconteceu aqui na escola? IG: Sim. P: Dá um exemplo. IG: Os meninos já me chamaram de Neguinho do Pastoreio e de Saci Pererê. P: É? E o que você faz? IG: Ah, eu conto para a professora, às vezes eu não conto não, mas quando eu conto ela fica brava. O Milton, o Rafael, vivem me chamando de Neguinho do Pastoreio e eu não gosto. VLA: É que o Felipe não gosta que chamam ele de leite moça, de carirana, alemão, branquelo, mas ele xinga, ele dá risada na classe quando a professora... P: ...dá bronca. IG: Quando a gente vai falar com ele, ele fica com aquela cara de 'hummmm'. P: Vocês chamam ele de branquelo? IG: A gente tenta não chamar, mas ele fica xingando [...]. IG: Eu xingo ele de leite moça porque eu tô passando assim, normal, ele fala assim "ô Neguinho do Pastoreio, vai lá pro pasto!", aí eu falo "fica quieto, seu leite moça!" VLA: Não dá pra aguentar, assim, tem uma hora que você explode, porque não aguenta mais de tanta vergonha que você passa. IG: Um dia, o Lucas me provocou muito e eu comecei a bater nele, fiquei muito irritado, não consegui aguentar [...] toda a hora ele me chamava de Neguinho do Pastoreio. Aí eu falei "Ah, é assim? Pá, pá, pá" [Descreve que bateu no menino]. Ele foi falar com a professora, eu não deixei e falei que se ele falasse eu ia contar pra mãe dele e ele não falou (E. Vladimir, moreno, e Igor, pardo 4I).

A situação de relativa tranquilidade do menino branco aparece na risada à bronca da professora, ou, ao contrário, talvez justificado pela bronca parecer inócua, do receio que o próprio menino negro tenha de a professora saber que ele bateu no menino branco e ainda acontecer algo de ruim com ele, novamente. A situação de vergonha e perda de controle demonstra o sofrimento da criança pela discriminação pública e a violência a que ela é submetida a todo o instante.

Sem querer entrar no mérito das significações dos personagens literários citados por Igor, seguimos seu caminho ao considerar tal designação ofensiva. Partimos da concepção de Jurandir Freire Costa, que afirma ser a violência "[...] um artefato da cultura e não seu artífice. Ela é uma particularidade do viver social, um tipo de 'negociação' que, através do emprego da força ou da agressividade, visa a encontrar soluções para conflitos que não se deixam resolver pelo diálogo e pela cooperação" (COSTA, 2003, p.62). O ato de traduzir uma ação como violenta ou não passará pelo conjunto de significados para três personagens envolvidos – a vítima, o agente e o observador. Nesse ponto, não só a finalidade do agente entra em jogo, mas os significados que os demais envolvidos atribuem ao ato. Poder e violência são conceitos distintos, que podem apresentar-se combinados nas relações sociais. O excesso de dano e o excesso de poder são elementos que, articulados pelo desejo de destruição e controle, provocam violência. Partilhamos da concepção de Costa e acrescentamos ainda que, se o poder, no sentido foucaultiano do termo, está presente em todas as relações sociais e é negociado permanentemente entre grupos ou indivíduos, o mesmo não se pode dizer da violência.

Em outra entrevista, aparece um vaivém de atos e interpretações racistas entre amigas que se ofendem.

P: E você, Jaqueline? JA: Eu também já vi, foi com a Tatiana, ela é da raça negra e eu sou muito amiga dela. Outro dia nós entramos numa discussão porque eu peguei falei assim, "éééé", e ela pegou e falou assim "sua branca azeda!" Aí eu falei assim: "Se eu sou branca azeda você é uma negra que precisa usar cândida pra ficar clara!" Porque já isso magoa a pessoa, porque você falar "sua branca azeda, sua loira azeda!" Entendeu? (E. Jaqueline, branca 5II).

Jaqueline designou a ação de sua amiga como racista por uma má interpretação de sua brincadeira. No entanto, no segundo momento, devolveu o racismo de modo declarado e ofensivo, ao mesmo tempo sentindo-se ofendida e colocando-se de igual para igual, como se a uma ofensa houvesse o direito de responder com outra ofensa. Sobre essa narrativa, pensamos que o tom de indignação de Jaqueline, ao narrar a briga, não revela se ela se percebeu racista ou se considera seu racismo justo, já que considera ter agido de modo defensivo. No entanto, Tatiana parecia estar reagindo, preventivamente, ao que víamos cotidianamente nos xingamentos que ela recebia, mas, ao fazer isso, recebeu de volta um racismo declarado, mas cada caso deve ser analisado em seu contexto, porque:

O insulto racial pode tanto ocorrer durante o conflito quanto, ao contrário, ocasionar o conflito. Pode ser uma arma de última instância, mas também um primeiro trunfo a ser sacado. Portanto, o que motiva o insulto racial e a ordem em que ele aparece no conflito são elementos decisivos para esta análise (GUIMARÃES, 2000, s/p).

É possível observarmos, na escola, relações de amizade, muitas vezes, intensas, entre meninas brancas e negras, mesmo que entremeadas por práticas racistas. As crianças parecem oscilar entre o que prevalece a cada momento: vínculo da amizade ou a representação racial. Na escola observada, crianças brancas e negras apareciam nas brincadeiras de recreio sempre misturadas, talvez confirmando o que Eliane dos Santos Cavalleiro afirmou sobre a educação infantil, em que declarou ter visto manifestações de afeto e de contatos corporais entre crianças brancas e negras e que a discriminação surge, segundo ela, por meio de um processo aprendido com o tempo (CAVALLEIRO, 2005).

Na sequência, descreveremos o mesmo comentário de um menino branco sobre o suposto racismo de um menino que considerou um insulto a associação entre feiura e negritude dirigido a uma das meninas:

P: Vocês já viram alguma situação de racismo? GI: Já, muito. AL: Tem um menino chamado Ahmad, primeiro eu falei assim "tem a menina maior feia, aquela ali de pele preta, assim, negra", aí ele "é, só porque você é branquinho quer dizer que você pode falar dos negros?", ele sempre fala assim que negro é melhor, tudo do negro é melhor, fala que negro joga mais futebol. P: Isso é racismo? AL: É, que negro é melhor e branco é ruim, só que assim, tipo, o negro joga futebol, só porque tem mais negro na seleção brasileira (E. Alex, branco e amarelo, e Gilson, branco 5II).

Nessa narrativa, vemos que os meninos brancos, ao questionarem o racismo de Ahmad (que é de origem árabe), nada mais fazem do que revelar seus próprios racismos em relação aos negros de modo geral, não só às meninas negras. Alex, por sua vez, reproduz o discurso da branquitude que, ao temer a ocupação de espaço pelos negros, nesse caso em relação ao futebol, fica incomodado e reage reafirmando o lugar inferior dos negros, revelando o mito da democracia racial, mesmo que sob um aparente discurso antirracista. A associação de meninanegra-feia ofendeu a Ahmad, um menino que é sistematicamente chamado de macaco pelos demais e que, provavelmente por isso, solidarizou-se com a menina negra. Sexismo e racismo firmam-se nas interações infantis, tornando as meninas negras a ponta mais frágil dessa cadeia de significados imbuídos de preconceito.

Jogo de significados: entre Maria, Maria Homem, Maria João, Maria Sapata...

Pudemos analisar que, salvo as meninas cujos corpos estavam mais desenvolvidos que a média ou as que mantinham distanciamento em relação aos meninos, todas as demais eram alvos fáceis da designação de Maria Homem e seus congêneres e, particularmente, as meninas negras.4 4 Dentro da categorização criada por Guimarães (2000), Maria Homem e Sapata devem ser qualificados como pertencentes à moral sexual.

Havia nuances de significados para as expressões utilizadas, a exemplo da distinção entre Sapatão/Maria Sapata e Maria João/Maria Homem:

AN: [?] tem a mulher sapata. P: O que é a mulher sapata? RA: Sapatão. RA: Não, tem Maria João. AN: Bruna. P: Qual Bruna, da tua classe? RA: A Bruna não é sapatão. P: Qual é a diferença entre Maria Homem e Sapatão? AN: Maria Homem é homem. RA: São meninas que parecem homem e a Sapatão é bem diferente, é que fica com. AN: Que [?] e dá beijo em outra mulher. P: Ah, que transa com outra mulher, Maria Homem para vocês é? RA: Que transa com vários homens. AN: Maria Homem é aquela mulher que é mulher mesmo só que finge que é homem. P: Então, tem esse significado, vocês não usam como sinônimo de sapatão? Todos: Não (E. Raul, branco, e André, café com leite 5I).

Pode-se perceber que as expressões Maria Homem e Maria João têm o mesmo significado de gênero, de mulher que faz o que um homem faz, de que são mulheres que parecem homem, em um sentido de gênero masculino, mas com orientação sexual de mulher, segundo as crianças, resumida na frase – é mulher mesmo. Apesar da confusão em relação ao fato de a Maria Homem transar com vários homens, a quantidade não parece ser o aspecto importante, e sim "transar com [...] homens", a orientação sexual pelo outro sexo está incluída na definição. O adjetivo sapatão, por sua vez, parece significar ser mulher masculinizada (gênero masculino) e não a orientação sexual pelo mesmo sexo, mas os meninos entrevistados demonstram relativa incerteza se o fato de possuir características masculinas é suficiente para se ter a orientação sexual pelo mesmo sexo. Diferentemente dos meninos com atributos considerados femininos, meninas com atributos considerados masculinos não são, para eles, necessariamente, homossexuais.

De acordo com Gilles Brougère (1999), persiste na cultura ocidental uma demanda de conformidade social que é mais exigente para os meninos e demonstra certa aceitação da menina que se insere perfeitamente no universo masculino, em francês, chamada de garçon manqué, ao contrário do menino, no universo feminino, designado como fille manqué. Talvez essa característica relativizasse o peso do conceito negativo de Maria Homem/Maria João entre os meninos, que o utilizavam como xingamento, mas não entre meninas, que, apesar de cientes de que não estavam sendo desrespeitadas enquanto homossexuais, sentiam-se desvalorizadas como mulheres, com os termos utilizados por eles.

Saffiotti designa como violência de gênero as diferenças que se expressam em conteúdos de gênero antagônicos e que vão além, ao expressarem diferenças convertidas em hierarquias e poder, mas chama a atenção para o contexto em que ocorre a violência:

Assim, embora a violência de gênero brote numa situação complexa, em que intervêm vários fenômenos, estes nem são da mesma natureza nem apresentam a mesma capacidade de determinação. Mais uma vez, chama-se a atenção para o risco da homogeneização de uma realidade extremamente diferenciada e, por isto, rica. O papel primordial dos cientistas sociais consiste exatamente na captação deste relevo multicolor mostrado pela sociedade. A uniformização do real sempre constituiu a meta dos que atribuem/atribuíam relevância exclusiva a determinações gerais ou comuns. Ao contrário, as determinações específicas ou históricas sempre foram a preocupação primordial dos que têm/tinham como meta a captação de uma realidade permanentemente in flux, em transformação (SAFFIOTTI, 2001, p.133).

No contexto estudado, observamos que os xingamentos das meninas pelos meninos expressam relações de poder e graus distintos de violência simbólica de gênero e sexo, já que os xingamentos demarcam determinados atributos que se associavam à esses pertencimentos. De alguma maneira, elas eram e deveriam ser meninas e, por isso, não poderiam fugir dos padrões de beleza ou de comportamentos socialmente atribuídos a elas. Como vimos, quando dirigidos a meninos, os xingamentos racistas eram diretos e específicos, sem agir na identidade masculina, tornando-se sexistas apenas quando se referiam à orientação sexual.

P: [...] já vi usarem a palavra Maria Homem. RE: A Cássia. P: A Cássia, por quê? RE: A Cássia porque sabe uns negócios e a Vânia [é interrompida pela Luciana]. LU: É, a Vânia que chamam mais. RE: A Cássia, assim, comentam que ela é bocuda, né, ela fica falando palavrão também [...] (E. Luciana, branca, e Renata, branca 4II).

ISA: [...] às vezes eles me chamam de Maria Homem. P: Você? Por quê? ISA: Às vezes eu [?] batia bastante neles, torcia as orelhas, agora não, agora não. FA: Ela ficou mais velha. ISA: E me chamavam de Maria Homem porque eu batia nos outros... (E. Fabiana, mestiça, e Isabela, morena 5I).

P: Já vi menina sendo chamada de Maria Homem. Eles: Laura, Tatiana. HE: Laura, porque ela fala cheia de gíria. FA: A voz dela é de homem. GI: Ela tem voz muito mais forte que a do Fabiano. A Kátia já [?] imagina ela sem cabelo, sem cabelo ela é um homem (E. Fábio, moreno, e Gilberto, branco 5II).

Os atributos de masculinidade, como ter conhecimento, falar palavrão, bater nos meninos, falar gírias, ter tom de voz forte, cabelo curto ou estilo masculino, eram a porta de entrada para receber o xingamento dos meninos. Tatiana parecia convergir para si todo o ódio dos garotos, por representar a eles a insubmissão e a recusa a todo e qualquer estereótipo de feminilidade. Tatiana era considerada negra (e se considerava como tal), não era considerada bonita por eles, mas revelava seu desejo por alguns e queria jogar futebol. No entanto, segundo eles, jogava mal e, além de tudo, brigava por seus interesses, chegando até a bater neles quando a incomodavam muito ou eram racistas com ela. Acompanhamos de perto todo o sofrimento de Tatiana, em não raras cenas de choro durante o recreio, ao vir desabafar conosco.

FA: A menina ta jogando mal, aí, a Tatiana, a Tatiana, ela fez o maior [?] contra, ainda. Errou a bola, ela pegou a bola, girou e chutou pro gol, bem no canto, matando o Roni ali com o pé, então todo mundo começou a zoar com ela: "menina é tapada e tal", chamou ela da melhor das piores, uma vez ela fez o terceiro gol contra [?] e a gente começou a zoar [?] ela faz quinhentos gols contra. P: Mas por que vocês acham que ela parece homem? FA:

Porque ela bate, é briguenta. P: Você também acha isso, Gilberto? GI: É. P: Isso é comum, os meninos da sala acham, ou são só vocês dois? [eles dizem baixo que sim]. HE: Mas tem pessoas que acha porque ela é negra, racista, né? (E. Fábio, moreno, e Gilberto, branco 5II).

A fala de Gilberto desvela o racismo. Apesar de algumas meninas brancas serem chamadas de Maria Homem, a maioria assim designada considerava-se negra, morena ou parda e parecia buscar, nos atributos considerados masculinos, a forma de enfrentamento com os meninos. Em sua pesquisa, Souza (2006) observou xingamentos semelhantes, a exemplo da menina negra chamada de sargenta. Situação que fez a autora supor, por não ter visto pistas explicativas das crianças sobre esse apelido, que isso poderia ser atribuído à masculinidade atribuída à menina, já que sua agressividade incomodava os meninos, o que os levava a atribuir-lhe uma característica de homem em sua versão negativa para inferiorizá-la na hierarquia do grupo.

A habilidade de jogar bem o futebol parecia ser o único elemento que dava garantias de aceitação pelos meninos, ocasião em que o termo Maria Homem era dito por eles como um elogio, tanto para brancas como para negras. Algumas meninas brancas jogavam futebol e eram tratadas com mais respeito pelos meninos. Entre as meninas negras que jogavam futebol, apenas Vânia, Isabela e Fabiana eram consideradas boas jogadoras e sofriam menos xingamentos dos meninos.

Um caso à parte era Vânia. Assumidamente negra e exímia jogadora de futebol, era um ícone para os meninos, que viam, em sua masculinidade declarada, elementos de identificação com o universo deles.

IG: A única menina que nunca, que nunca a gente viu brincando de boneca foi a Vânia, ela joga melhor futebol que homem. P: E o que vocês acham disso, é legal? Ambos: Legal [...]. P: E os meninos não tratam mal a Vânia por ela ser considerada diferente das meninas? Ambos: Não, igualmente, como se ela fosse um menino. VLA: Igual a gente. P: Tratam como se ela fosse um menino? VLA: É. P: Então trata diferente. VLA: Não. IG: Não, trata como todo mundo, como a gente trata lá todas as meninas e a gente mesmo (E. Vladimir, moreno, e Igor, pardo 4I).

Podemos analisar que Vânia circula para além do futebol, com seus atributos simbólicos de masculinidade, com linguagem dura e palavrões, força física e vestimentas largas, que escondiam seu corpo. Em geral, mantinha um ar tranquilo e estava com os meninos quase todo o tempo possível, em sala, no recreio ou mesmo nas viagens que faziam pela escola, considerando-se e sendo considerada por eles como um menino, daí a confusão semântica na entrevista. Apesar disso, não escapava da discriminação em muitos momentos.

VLA: Às vezes, a gente fica zoando com ela, ela zoando com a gente, "ô Maria Homem!" P: E depois fala que trata ela igual às outras? VLA: Isso é brincadeira com ela, ela brinca com a gente [?]. IG: Uma minoria de vezes, eu já vi uma vez o Celso falando Maria Homem pra Vânia. VLA: É, tipo, a gente tá jogando, ela chuta errado, às vezes, uma vez no jogo ela só tava chutando errado, eu tô aqui, ela ali tocou pra fora, aí falei "ô Maria Homem, troca de Chiquinha, faz um rabo" [porque ela vive de cabelos presos de cada lado Chiquinha] [e ri]. P: Ela não fica brava? VLA: Ela só dá risada (E. Vladimir, moreno, e Igor, pardo 4I).

No entanto, os meninos fazem questão de frisar o tom de brincadeira e a reciprocidade presente nas relações entre eles e ela, e nas risadas dela à expressão Maria Homem. Em sua entrevista, Vânia revelou ter uma visão positiva de si enquanto mulher e fazer tudo o que quer, mesmo sendo mulher, mas expressava uma visão negativa sobre as demais meninas, a quem atribuía o apelido de chatas, e evitava, ao máximo, a companhia delas. Provavelmente, a partir desse referencial simbólico, ser chamada de Maria Homem não era visto como ruim para ela, e os meninos percebiam isso, inclusive deixando claro que preferia a companhia deles.

Por outro lado, algo considerado imperdoável pelos meninos era o fato de uma menina querer participar do futebol jogando mal, contexto que tornava qualquer crítica sobre ela avassaladora e permanente. As demais meninas negras, esteticamente discriminadas por não serem consideradas bonitas, como Adriana, Kátia, Sabrina, Patrícia, Danila e Tatiana, também não eram consideradas por eles boas jogadoras, e, por esse conjunto de atributos, eram, a todo instante, insultadas de modo sexista e, se possível, racista. Ao serem entrevistadas, Sabrina e Patrícia relataram que suas avós e mães foram insultadas em conflitos ligados ao futebol, o que demonstra possíveis conversas em casa sobre esse tão acirrado assunto. Esse aspecto era tão cotidiano que outras meninas que se consideravam negras ou morenas, apesar de gostarem de futebol, mas não jogarem bem para os padrões deles, evitavam aproximações com os meninos para impedir o estigma.

O sexismo e racismo revelavam-se juntos na discriminação por causa da cor, mas tinham na discriminação ao cabelo crespo e encaracolado um forte complemento. A força da estética branca relaciona-se à naturalização das desigualdades raciais, sendo que a estética, para Souza (2006), é um dos marcadores sociais utilizados pela cultura racista dominante, já que a beleza é branca. Essa marca se dá através da corporificação, entendida como

[...] experiência percebida e incorporada, física e simbólica, prática e representação. Pensando na noção de corporificação, poderíamos dizer que raça é a percepção que termina no corpo e que é, a priori, ponto de vista, julgamento moral e inserção em experiências e práticas culturais específicas (SOUZA, 2006, p.181-182).

Larissa Lisboa analisa as falas de professoras das séries iniciais, brancas e negras, que, ao desvalorizarem os cabelos de meninas negras, reforçam o racismo e sexismo no espaço escolar.

Para as mulheres, o cabelo sempre foi o referencial de beleza. Estar com o cabelo na moda, a maneira certa, ou seja, dentro dos padrões estéticos importados, é necessário para a construção da identidade da menina. Sua autoestima, a valorização da própria beleza e empoderamento dependem dessa padronização (LISBOA, 2008, p.28).

O racismo e sexismo estão presentes na negação da corporificação racial e podem ser expressos na crítica aos cabelos discretos e curtos ou aos cabelos de rastafári:

P: E você, Fabiana, já foi chamada de Maria Homem? FA: Já, por causa do meu cabelo [tem o cabelo crespo e bem curtinho]. P: Como é que você reagiu? FA: Assim antigamente [?] aí eu cheguei havia um menino, ele tava com o mesmo corte que eu, aí os meninos começaram a encher o saco me chamando de Maria Homem. P: E você fazia o quê? FA: Mandava eles parar (E. Fabiana, mestiça 5I).

MA: Tinha uns meninos que me chamavam de Carlinhos Brown e aí eu falei para a professora, eles pararam [...]. P: E você achava que isso era o que, racismo ou machismo? MA: Racismo. P: Você já viveu outra situação de racismo aqui na escola? MA: Não, aqui na escola não, mas na minha rua sim, que tinha dois meninos que me chamavam de Bob Marley e Zig Marley (chamavam eu e a minha irmã), porque nós fazemos as mesmas trancinhas. Aí meu pai conversou com a mãe deles e não adiantou, aí conversou de novo e adiantou [e sorri] [...]. MA: Mas nada a ver com [pássaro?] ficaram me chamando de azulão por causa do cabelo [ela ri]. P: Mas não te chamavam de azulona? MA: Não, de azulão [dá ênfase no azulão] (E. Maíra, negra 4I).

Ser considerada bonita pelos meninos não alterava a crítica à suposta masculinidade da menina, ainda mais se ela reforçasse a estética da cultura negra em sua homenagem aos rastafáris. Ao assumir-se positivamente negra, Maíra trazia para a escola elementos de outras matrizes étnicas, expressas no trato com um cabelo altamente elaborado.

O cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário (GOMES, 2003, p.174).

Na escola, o fato de Maíra ter muitos admiradores não impedia que outros meninos a insultassem com frequência. Para evitar constrangimentos, como as demais meninas, ela mantinha-se afastada dos meninos e não jogava futebol.

Considerações finais

Neste artigo, trouxemos o cotidiano escolar de um determinado grupo de crianças dos anos iniciais e as atitudes discriminatórias presentes no recreio e salas de aula. Pudemos observar, na escola estudada, que raça é um forte marcador social para ambos, meninos e meninas. Se o racismo assume em nossa cultura uma linguagem baseada em ofensas verbais de domínio predominantemente dos meninos, observamos que, na escola, esse racismo também está presente contra as meninas. Ambas discriminações se reforçam: o ato de qualificar os insultos raciais com atributos de gênero também produz o seu contrário, quando os insultos de gênero são qualificados com atributos raciais. O resultado dessa configuração simbólica é o aumento do sofrimento de meninas negras, que buscam, nos atributos masculinos, valorizados socialmente, os mecanismos de proteção de sua identidade. No entanto, além da crítica à suposta masculinidade delas, aspectos como a estética branca, com seu cunho naturalizante, ou o futebol, com a exigência de desempenho acima dos próprios meninos para aceitação social, reforçavam ali os atos de discriminação.

As provocações verbais ou insultos, tão comuns em nossa cultura, que alguns nem chegam a considerar violência, necessitam ser questionados. Luiza Mitiko Yshiguro Camacho (2001), ao refletir sobre as violências sutis, afirma que há apelidos que são carinhosos, indicam intimidade, e outros pejorativos, que o receptor, conceito utilizado pela autora, considera ofensivos. Em geral, os apelidos rejeitados pelos receptores "são aqueles que fazem referência à origem étnica, à orientação sexual, à condição social e a traços que evidenciam o que é considerado 'falta', 'defeito' e 'carência'." (CAMACHO, 2001, p.137). Na visão dessa autora, o significado para aqueles que recebem o apelido é também chave para definir os níveis de agressividade, e será da atribuição desses significados que o ato poderá ser considerado ou não violento.

Como vimos, questões de linguagem e conflito demandam uma reflexão séria a ser realizada pelas escolas, dado o papel crucial que desempenham na construção das identidades de gênero e raça. Wanda Maria Junqueira Aguiar (2000) explicita a relevância do papel do conflito como aspecto da intersubjetividade, ao discutir o processo de formação da consciência pelas relações de mediação. Se pensarmos que as crianças, nesse processo relacional, estão construindo identidades de gênero e raça, e que o embate através da linguagem na escola se dava preferencialmente sob o controle dos meninos, podemos dizer que tais relações configuravam-se para elas como violência de gênero, cotidiana e permanente. Para as meninas negras, essa violência era visível e presente. O que não estava presente era o suporte de outros sujeitos da escola para ajudá-las nesse processo, ainda que elas tentassem superar a seu modo, no aprendizado do futebol, na incorporação de características consideradas masculinas ou no distanciamento máximo dos meninos.

NOTAS

Contato:

Universidade do Sul de Santa Catarina

Programa de Pós-Graduação em Educação

Avenida José Acácio Moreira, 787

Bairro Dehon

Tubarão | Santa Catarina | Brasil

Recebido em: 15/10/2012

Aprovado em: 19/11/2013

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  • 1
    Nas citações bibliográficas, ao longo do texto, torno visível a autoria, citando o nome e o sobrenome dos(as) autores(as), quando de sua primeira aparição.
  • 2
    Alguns autores, como Sônia Kramer (2002), consideram importante manter o primeiro nome das crianças ou solicitar-lhes que atribuam a si mesmas um nome para posteriormente se reconhecerem. Apesar de já termos feito isso em outras pesquisas e considerarmos um procedimento pertinente na maioria dos casos, optamos aqui pelo sigilo máximo, já que as reclamações de discriminação eram feitas entre crianças e poderiam criar problemas entre elas, mesmo observando que muitas delas verbalizavam essas críticas durante o recreio para os/as colegas.
  • 3
    Houve resistências de crianças de origem asiática, que se viam como brancas, e de origem indígena, que se viam como morenas.
  • 4
    Dentro da categorização criada por Guimarães (2000), Maria Homem e Sapata devem ser qualificados como pertencentes à moral sexual.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Recebido
      15 Out 2012
    • Aceito
      19 Nov 2013
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