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ARAUTOS DO IMPROVÁVEL, PIONEIROS DA RADIOFONIA E DA CINEMATOGRAFIA EDUCACIONAL NO BRASIL (1920-1930)

HERALDS OF THE UNLIKELY, PIONEERS OF EDUCATIONAL RADIO AND CINEMATOGRAPHY IN BRAZIL (1920-1930)

Resumos

Este artigo tem como tema os processos de introdução da radiofonia e da cinematografia no Brasil, ocorridos nas décadas de 1920 e 1930, vistos como resultado de uma fermentação intelectual que enxergava nestes veículos de comunicação a possibilidade de libertar nosso povo, disperso pela imensidão do território nacional, das explicações lendárias e da ignorância. Nesse sentido, o texto apresenta uma análise sobre o papel pioneiro desempenhado por estes intelectuais, a discussão por eles protagonizada em torno da finalidade do rádio e do cinema, bem como as estratégias empregadas para que estes veículos tivessem emprego exclusivamente educacional. Especialmente, este artigo discute as principais frentes de legitimação para a crescente interferência do Estado nos setores da radiodifusão, do cinema e da educação.

Radiofonia; Cinematografia; Ensino; Brasil; Pioneiros.


This article has as its theme the processes of introduction of radio and cinematography in Brazil during the decades of 1920 and 1930, seen as the result of an intellectual ferment that saw in these media the possibility of freeing our people, dispersed over the immensity of the national territory, from the legendary explanations and from ignorance. In this sense, the text presents an analysis of the pioneering role played by these intellectuals, the discussion they led about the purpose of radio and cinema as well as the strategies employed so that these means would have an exclusively educational application. In particular, this article discusses the main fronts of legitimation for the growing interference of the State in the fields of broadcasting, cinema and education.

Radio; Cinematography; Teaching; Brazil; Pioneers.


Sob a crença de que a divulgação do espírito científico traria progresso ao país, intelectuais de várias origens atuaram na interface da ciência com a educação no Brasil. Bastante estudados no campo educacional, os médicos talvez tenham mesmo sido os primeiros que se utilizaram, ainda no século XIX, do discurso da ciência para legitimarem práticas educativas. Pesquisas como as de Gondra (2004GONDRA, José Gonçalves. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004.), Coelho (1999COELHO, Edmundo Campos. Profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.) ou Costa (1979COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.) sugerem-no, da mesma forma com que Carvalho (1998CARVALHO, Marta Chagas de. Molde nacional e fôrma cívica: higiene, moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). Bragança Paulista, EDUSF, 1998.) e Nunes (1993, 1996NUNES, Clarice. A escola redescobre a cidade: reinterpretação da modernidade pedagógica no espaço urbano carioca (1910-1935).Tese de Concurso para ProfessorTitular em História da Educação do Departamento de Fundamentos Pedagógicos da ESSE/UFF. Niterói, 1993.) mostram uma importante presença de médicos no movimento de renovação educacional dos anos de 1920 e 1930. Nesse período, no entanto, outro grupo de intelectuais também foi protagonista dessa associação, abrindo novas perspectivas de difusão educativa com o desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil. Marcadas por uma geração de intelectuais nascidos nos anos de 1880 e 1890, da qual faziam parte Ferdinando Labouriau (1893-1928), Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), Jonathas Serrano (1885-1944), Francisco Venâncio Filho (1894-1946), Miguel Ozório de Almeida (1890-1953), a radiofonia e a cinematografia no Brasil foram vistas como meio para superar a ausência do sentimento de identidade nacional e promover o desenvolvimento da nação.

Em seus estudos, Abreu (2010ABREU, Regina. Colecionando o outro: o olhar antropológico nos primeiros anos da República do Brasil. In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (org.). Ciência, Civilização e República nos Trópicos: 1889-1930. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2010.) destaca que o início da República fora marcado pelo desafio da construção de um pensamento social que transformasse a visão, tão presente no período monárquico, da maldição racial, da condenação ao atraso e da existência de doenças que degeneraram o povo. A partir do contato de intelectuais com os sertões, em expedições com as mais variadas finalidades, tais como abrir estradas, mapear o território e introduzir telégrafos, edificou-se um novo olhar para as populações do interior, que passaram a ser vistas como elementos que necessitavam do processo educacional, para se integrarem à nação. Quanto a isso, os estudos de Euclides da Cunha1 1 Os estudos de Euclides da Cunha publicados em Os sertões (1902) inspiraram a geração de intelectuais nascida nas duas últimas décadas do século XIX, como Edgard RoquettePinto e Carlos Delgado de Carvalho, pioneiros da radiofonia em nosso país, que realizaram expedições ao interior brasileiro com o intuito de compreender melhor sua população e eram uma inspiração para novas pesquisas.

Os meios de comunicação, em especial a radiofonia e a cinematografia, despertaram o interesse imediato destes estudiosos, uma vez que perceberam a importância destes veículos para vencer o isolamento e disponibilizar conhecimento e informação ao alcance de todos, integrando e preparando a nação em torno do propósito científico. Desejavam divulgar aos lugares mais distantes e isolados do país, informações sobre a ciência, a geografia e a história, por meio de irradiações e imagens. Era fundamental apresentar o Brasil aos brasileiros, conscientizá-los das causas de suas mazelas. Ao olhar do próprio Roquette-Pinto (1939, s/p): "Minha geração começou a contar as estrelas. E foi ver se era verdade que em nossos bosques havia mais vida. E começou a falar claro aos concidadãos. Com minha geração, o Brasil deixou de ser tema do lirismo".

Em 1910, Edgard Roquette-Pinto organizou a primeira filmoteca no Museu Nacional (SCHVARZMAN, 2008SCHVARZMAN, Sheila. Mauro Alice: um operário do filme. Imprensa Oficial, 2008.). Com o intuito de "tirar a ciência do domínio exclusivista dos sábios para entregá-la ao povo", (ROQUETTE-PINTO apud MOREIRA; MASSARANI;

ARANHA, 2008, p. 54) esse intelectual selecionou exemplares das coleções científicas da Pathé e, posteriormente, fitas com as gravações do Major Reis para a Comissão Rondon. Miguel Ozório de Almeida revela seu deslumbramento por esse recurso técnico:

A photographia instantânea dos corpos vivos em movimento revelou atitudes absurdas, á primeira vista incompatíveis com o bom senso. A cinematografia mostrou porem serem essas atitudes perfeitamente harmoniosas e necessárias; ella as ligou ás attitudes que precedem e as seguem. A arte de escrever ainda não chegou á perfeição da cinematographia, fundindo em series coherentes os elementos destacados do pensamento (ALMEIDA, 1925, p. 8).

Em 1918, a Sociedade Brasileira de Ciências2 2 Em1921, a Sociedade Brasileira de Ciências passou a ser chamada de Academia Brasileira de Ciências, atendendo a uma convenção internacional da época. , entidade fundada com o propósito de promover debates e divulgar trabalhos de pesquisa desinteressada, organizou uma série de palestras sobre a radiotelegrafia ultrapotente, estudada desde o início do século XX por cientistas brasileiros, com o objetivo de vulgarizar o assunto. Os anais da instituição registram a presença de Henrique Morize, Edgar Roquette-Pinto, Manoel Amoroso Costa, Álvaro Ozorio de Almeida, dentre outros associados, o que demonstra não apenas que o rádio era alvo de investimentos de suas pesquisas, como também que havia um acompanhamento sobre os avanços dessa nova modalidade de comunicações à distância, assim como a promoção de amplas discussões sobre o tema.

Para esse grupo de intelectuais, a reformulação de nosso sistema educacional era fundamental ao desenvolvimento do país. Com esse propósito, em 1924, participaram do movimento fundador da Associação Brasileira de Educação (ABE), cujas diferentes seções passaram a ocupar, de acordo com a tendência do pensamento de cada grupo. A Seção de Ensino Técnico e Superior é, sem dúvida, um espaço interessante a ser estudado, pois concentrava a maior parte dos intelectuais que, além de partilharem dos princípios da ciência pura e da importância da educação para o crescimento da nação, viam o rádio e o cinema como instrumentos que muito os auxiliaria na realização de seus projetos. Defendiam não só o emprego deste aparelhamento como recursos didáticos nas escolas, mas que esses meios, quando exposto ao grande público, tivessem apenas fins educativos e culturais, sendo qualquer tipo de utilização comercial evitado. Anúncios e propagandas só deveriam existir para financiar a realização de programas radiofônicos e filmes educacionais. À frente da campanha de regulamentação destes veículos, estes intelectuais proferiram palestras e organizaram campanhas, veiculadas em jornais e revistas, sobre os benefícios que esses recursos trariam ao campo educacional e o perigo de sua utilização para fins exclusivamente recreativos ou comerciais.

A ABE foi palco de vários debates e campanhas sobre a utilização do rádio e do cinema nas escolas. Nesse sentido, foram elaborados manuais dirigidos aos professores. Entre 1928 e 1935, tanto a utilização do cinema na escola quanto o uso educativo do rádio passaram pelas iniciativas da Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal.

Dadas tais informações, o objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão sobre o papel destes intelectuais no processo de desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil. Nesse âmbito, procura-se expor uma análise sobre a forma como estes homens se apropriaram da radiofonia e da cinematografia para que servissem como meios para a educação popular nos anos 1920 e 1930.

É preciso destacar as dificuldades encontradas por qualquer pesquisador que se proponha estudar a história do rádio e do cinema no Brasil nas décadas de 1920 e 1930. Pouco sobrou deste mundo: filmes e registros orais são difíceis de ser encontrados, seja pela limitação financeira, que levava à reutilização dos acetatos e das películas, apagando gravações anteriores, seja pela dificuldade técnica em conservar o material ou pela falta de interesse em se preservar a memória destas mídias. Neste aspecto, este artigo propõe um exercício de memória, no qual se procura iluminar determinados sujeitos que, mesmo tendo grande importância para o desenvolvimento da radiofonia e da cinematografia, pouca memória edificaram.

O texto se vale da análise de notícias e artigos da imprensa, de correspondências de ouvintes então publicadas e da produção de alguns dos intelectuais que protagonizaram as iniciativas de implantação da rádio-escola e do cinema educativo no Brasil e está estruturado em três partes. Em um primeiro momento, discutemse as ações que contribuíram para o desenvolvimento do cinema e do rádio no Brasil e como articularam ciência e educação. Mais que a biografia e a produção intelectual desses primeiros artífices do audiovisual, a análise focou as questões de concepção em jogo no debate acerca da organização da radiodifusão e do cinema educativo. A seguir, apresenta-se um estudo da Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal, órgão responsável pela viabilização do uso escolar do cinema e da radiodifusão educativos. Propõe-se que ela teha funcionado como meio de articulação entre intelectuais, produtores e o poder público. Por fim, abordamos as relações que os educadores estabeleceram com o circuito comercial de realização de filmes e programas. Apresentamos um estudo de algumas das instâncias da disputa em torno da regulamentação desses veículos de comunicação no Brasil: que tipo de conteúdo deveria ser autorizado à transmissão, o que era considerado educativo, que tipo de linguagem deveria ser empregado. Tendo em vista discutir o modelo sob o qual se assentava a produção educativa no setor do audiovisual, exploramos a dubiedade de uma relação que foi tanto de divergência de concepção quanto de complementaridade técnica.

OS PRIMEIROS TEMPOS DO RÁDIO E DO CINEMA NO BRASIL

As primeiras experiências de radiofonia no Brasil ocorreram durante a Exposição de 19223 3 A Exposição Internacional Comemorativa do 1º Centenário da Independência ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. A abertura oficial deste evento aconteceu em 7 de setembro de 1922, com a participação de 13 países e todos os estados da federação, que expuseram os seus símbolos de modernidade. . Nessa ocasião, o governo, em colaboração com as companhias americanas Western e Westinghouse, instalou duas pequenas estações transmissoras de 500 w - a saber: a primeira na Praia Vermelha e a segunda no alto do Corcovado -, aparatos estes que, em parceria com a Light e a Cia. Telefônica Brasileira, tornaram possíveis as primeiras emissões. Contudo, essas comunicações públicas não podem ser consideradas como radiodifusão, tendo em vista a sua característica de recepção em espaço aberto por meio de alto-falantes, e, ainda, o número insignificante de aparelhos individuais, como nos lembra Federico (1982FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. História da comunicação. Rádio e TV no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1982.). Em 1923, o governo adquiriu apenas uma das emissoras, a da Praia Vermelha, para o serviço telegráfico.

Em 1923, os membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC) interessados em utilizar a estação da Praia Vermelha, adquirida pelo governo para radiotelegrafia, apresentaram ao ministro um projeto de radiodifusão, que incluía o pedido de liberação da aquisição de receptores, os quais eram proibidos em residências, de modo que esses fossem popularizados. A campanha acabou fracassando e os intelectuais fundaram a Radio Sociedade do Rio de Janeiro (PRA2)4 4 Prefixo concedido pelo Ministério da Viação e Obras Públicas a cada emissora que autorizava o seu funcionamento. nos salões da ABC, justamente com o objetivo de potencializar, por meio da emissora, a utilização da radiofonia em seus ideais de criação de uma nação amparada no viés científico.

Assim, entre os sócios denominados efetivos da Rádio Sociedade, por terem participado, do seu movimento fundador, estavam os membros da ABC: Roquette-Pinto, Henrique Morize, Demócrito Lartigau Seabra, Mário de Souza, Carlos Guinle, Álvaro Ozorio de Almeida, Manoel Amoroso Costa, Dulcídio Peireira e Ferdinando Labouriau. Como tinham como objetivo a vulgarização da radiofonia, abriram inscrições para associados, que, por sua vez, eram incentivados a dar todo tipo de colaboração intelectual, financeira, logística, técnica, enfim, tudo que pudesse auxiliar nas irradiações.

Os acadêmicos concebiam a Rádio Sociedade como um grande laboratório. No ambiente da emissora, esses estudiosos compartilhavam suas experiências, vulgarizavam o conhecimento científico por meio de palestras e debatiam suas ideias, sendo aquele o espaço físico planejado para tais atividades. Havia biblioteca, laboratório e sala para cursos e conferências. As questões da radiofonia eram tratadas como assuntos de ciência. Com pouco conhecimento sobre a prática de transmissão, os cientistas recorriam a livros importados, ou às próprias pesquisas nos campos da física e da eletricidade para resolver problemas de ordem prática.

Nos anúncios de programação publicados em periódicos, observa-se a opção por programas literários, conferências científicas e aulas de diversas disciplinas - português por José Oiticica; física por Francisco Venâncio Filho; história do Brasil por João Ribeiro; e radiotelefonia e radiotelegrafia por Victoriano Borges. As matérias, em formato de cursos, eram ministradas por diversos professores que haviam aderido à causa do rádio como transmissor de informação e cultura e que, imbuídos dessa convicção, se dispunham a cooperar. Os mestres convidados a dar sua colaboração à cultura popular eram escolhidos por serem autoridades reconhecidas no tema. No final do curso, a revista Electron, que funcionava como apoio aos ouvintes, dispondo os resumos das aulas e a programação em detalhes, publicava uma nota de agradecimento, em que os critérios de seleção para os colaboradores da PRA2 são evidenciados:

Prof. João Ribeiro

Encarregou-se do curso de História do Brasil organisado pela Radio Sociedade do Rio de Janeiro, o illustre Prof João Ribeiro, glória das nossas letras e um dos mais autorisados conhecedores do nosso passado. As encantadoras palestras de João Ribeiro começaram a ser irradiadas na terça-feira, 19 de janeiro p.p. O concurso do notável humanista representa mais um brilhante serviço da Rádio Sociedade á nossa cultura popular (ELECTRON, 1/2/1926, p. 6).

A concepção de radiofonia idealizada pelos intelectuais da Rádio Sociedade envolvia os campos da cultura, da educação e da instrução, mas era principalmente na transmissão da cultura que se traduzia a meta maior da PRA2. Nesse aspecto, a perspectiva não só de vulgarização como de transmissão do conhecimento desenvolvida por estudiosos ganhou destaque; apenas o acesso ao conhecimento seria capaz de libertar nosso povo, disperso pela imensidão do território nacional, das explicações lendárias e da ignorância. Apesar disso, a rádio-cultura não teria a capacidade de substituir o sistema educacional, algo muito mais complexo.

O cinema também fazia parte deste projeto de integração nacional por meio da cultura. Na década de 1920, vários estudiosos que foram pioneiros da radiofonia também atuaram ativamente em experiências com a cinematografia. Sobretudo nesse âmbito, insistiram para que o cinema, uma vez popularizado, tivesse uso exclusivamente educacional.

O Omniographo projetou as primeiras imagens no Rio de Janeiro, em 1896. Em seus primeiros tempos, imigrantes italianos, como Paschoal Segretto e Afonso Segretto, foram responsáveis por pequenas produções, que eram exibidas em salas nas grandes cidades ou em feiras. Já no início do século XX, como nos lembra Campos (2004), a disponibilidade de eletricidade sem quedas bruscas de energia ou cortes, possibilitou a abertura de dezenas salas de cinema, o que levou ao aumento de importação de fitas e de produções nacionais. Os gêneros dramático, policial, matuto, histórico, patriótico, religioso, musical e cômico foram apresentados ao público com sucesso. As pessoas logo perceberam o quanto as projeções eram capazes de diverti-las.

Edgard Roquette-Pinto organizou, em 1910, o primeiro acervo de filmes, instalado no Museu Nacional, a partir das coleções científicas da Pathé. As películas tinham como tema a ciência, como evidenciam alguns títulos: Borboletas e mariposas, Abelhas e aranhas, A terra dos pássaros. Em 1912, filmou Os Nhambiquaras durante suas atividades na Comissão Rondon.

Essas películas com conteúdo científico eram classificadas como documentários, e se diferiam do cinema chamado de recreativo, que, nos anos de 1920, já era exibido nas quase 700 salas de cinema brasileiras. Na perspectiva de Joaquim Canuto Mendes5 5 Autor de roteiros para cinema na década de 1920 e autor de Cinema contra cinema: bases gerais para um esboço do cinema educativo no Brasil. (MENDES, 1931) , no cinema dramático, considerado recreativo pelos educadores, havia modificações, interferências de caráter subjetivo ao material gravado pelas câmeras. Já o cinema tipo documentário era objetivo, estava preso à meta de ser o mais fiel possível ao congelamento de um determinado momento, representando a realidade.

No formato de documentário, o cinema se inseria no ideário maior de transmissão de uma cultura, que perpassava principalmente pelos campos da ciência, da geografia e da história. Assim, poderia auxiliar na integração da nação, uma vez que possibilitaria aos brasileiros conhecimento de regiões distantes de sua moradia. Por outro lado, os intelectuais diziam que a película recreativa pouco contribuía para a educação, prejudicando aqueles que não tinham capacidade de discernir o que seria bom para a sua formação. Em relação a isso, Venâncio Filho (1941) e Canuto Mendes (1931MENDES, Joaquim Canuto. Cinema contra cinema: bases gerais para um esboço de organização do educativo no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1931.) divulgaram informações de inquérito realizado pelo Instituto de Pedagogia de Bruxelas. Nessa pesquisa, os estudiosos alertavam para os efeitos negativos das sessões de cinema recreativo:

Os milheiros de imagens como que bombardeiam a membrana retiniana, são como golpes de boxeurs. Atingidos por estes golpes repetidos no nervo ótico, o cérebro se crispa em espécie de convulsão interior. Após uma sessão de duas horas interrompidas apenas por dez pausas de 1 minuto, verificou-se que a força física diminuíra de um quinto. (VENÂNCIO FILHO, 1941, p. 47).

Para intelectuais como Jonathas Serrano, Venâncio Filho, Roquette-Pinto, Lourenço Filho o cinema deveria ser apenas educativo e, para tal, deveria ter uma produção específica. Eles prescreviam orientações para que cineastas e educadores, juntos, produzissem filmes educacionais. Sob essa perspectiva, o filme deveria ser curto, deveria ser retirado tudo que não tivesse relação com o ensino ou que não pudesse ser mostrado ao natural.

Ao olhar desses intelectuais, o conteúdo cinematográfico inadequado poderia causar imagens distorcidas da realidade, uma vez que

evita o esforço da inteligência, oblitera a percepção pela fascinação que exerce, é espetáculo para iletrados, torna a realidade dispersa e fraca pela concentração que obtém, falseando a noção de tempo, enfraquece a capacidade de abstração, abaixando o nível intelectual (VENÂNCIO FILHO, 1941, p. 58).

O CINEMA E O RÁDIO NAS REFORMAS DA EDUCAÇÃO PÚBLICA

A ressonância que a discussão das vantagens pedagógicas do cinema e da radiodifusão teve nos meios e nas instituições intelectuais alcançou a escola pública, com atividades em torno do uso educacional dos seus recursos. No mapeamento que a historiografia consolidou para o período, a implantação do cinema educativo é bem conhecida. Em São Paulo, as ações de Lourenço Filho na Diretoria de Ensino foram principalmente estudadas por Antonacci (1993ANTONACCI, Maria Antonieta. Trabalho, cultura, educação: escola nova e cinema educativo nos anos 1920/1930. Projeto História, São Paulo, nº 10, dez. 1993.), Hanna Mate (2002)HANNA MATE, Cecília. Tempos modernos na escola: os anos 30 e a racionalização da educação brasileira. Bauru: EDUSC, 2002. e Ana Nicolaça Monteiro (2006MONTEIRO, Ana Nicolaça. Cinema educativo como inovação pedagógica na escola primária paulista (1933-1944). Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.). Essas pesquisas informam-nos acerca das suas estratégias para disciplinar e controlar o contato com as imagens em movimento e de avançar na adaptação educacional dos recursos técnicos da cinematografia. Igualmente, as iniciativas organizadas, primeiro, por Fernando de Azevedo e, depois, por Anísio Teixeira na Diretoria de Instrução do Distrito Federal foram objeto de estudos que sublinham o lugar do cinema educativo na estrutura administrativa da instrução pública durante os anos de 1920 e 1930 e o seu uso nas escolas como marca de uma renovação dos métodos e dos procedimentos de educação da capital do país (VIDAL, 1994VENÂNCIO FILHO, Francisco. A educação e o seu aparelhamento moderno. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941.; PAULILO, 2002PAULILO, André Luiz. A leitura, o cinema e os processos educativos na obra de Jonathas Serrano: problemas metodológicos e precauções morais da pedagogia nos anos 1910-1930. História da Educação, Pelotas, vol. 11, p. 169-192, 2002.). Entretanto, conforme notou Anita Simis (1996SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996., p. 33), não apenas o Distrito Federal e São Paulo aparelharam escolas para a projeção de filmes educativos. O exemplo foi seguido por outros Estados, como é possível perceber no quadro trazido pela própria autora (SIMIS,1996SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996., p. 301):

TABELA 1
Brasil 1932-37

No âmbito federal, o Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) foi especialmente estudado como instância de indução da produção nacional de filmes educativos (PEREIRA, 1973PEREIRA, Geraldo Santos. Plano geral do cinema brasileiro: história, cultura, economia e legislação. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973.; JOHNSON, 1987JOHNSON, Randal.The film industry in Brazil - culture and the state.Pittsburgh: Universityof Pittsburgh Press, 1987.). De fato, como indica Carlos Roberto de Souza (1990SOUZA, Carlos Roberto de. Catálogo de filmes produzios pelo INCE. Rio de Janeiro: Fundação do Cinema Brasileiro, 1990.), o órgão cuidava de todo o processo de produção dos seus filmes: revelação, montagem, gravação de som, copiagem e filmagem em estúdio. A bibliografia sobre o INCE informa tanto que ele chegou a realizar projeções em mais de mil escolas e institutos de cultura, organizou uma filmoteca e elaborou filmes documentais quanto que sua produção dividiu-se em filmes escolares de 16 mm, silenciosos e sonoros, e filmes populares de 35 mm, encaminhados para o circuito das casas de exibição pública de todo o país (cf. SIMIS, 1996SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996., p. 35; FRANCO, 1987FRANCO, Marília da Silva. Escola audiovisual. Tese (Doutorado em Comunicação). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987., p. 36). Em seus esforços para analisar a construção histórica das conexões entre educação, cinema e Estado, Antonacci (1993ANTONACCI, Maria Antonieta. Trabalho, cultura, educação: escola nova e cinema educativo nos anos 1920/1930. Projeto História, São Paulo, nº 10, dez. 1993.) e Souza (1991)VENÂNCIO FILHO, Francisco. A educação e o seu aparelhamento moderno. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941. sugerem que a criação do INCE foi desencadeada pela comissão encarregada de estudar um anteprojeto de lei para normatizar a censura e cujas diretrizes vieram a se converter no decreto nº 21.240, de 1932, constituída por, entre outros, Teixeira de Freitas, Lourenço Filho, Jonathas Serrano, Venâncio Filho, Mario Behring, Ademar Gonzaga e Ademar Leite Ribeiro e presidida por Roquette-Pinto; esse grupo definiu as bases do relacionamento do poder público com o cinema. Nesse sentido, quando foi concretizado pela lei nº 378, de janeiro de 1937, o INCE destinou-se a promover e orientar a utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação popular (ANTONACCI, 1993ANTONACCI, Maria Antonieta. Trabalho, cultura, educação: escola nova e cinema educativo nos anos 1920/1930. Projeto História, São Paulo, nº 10, dez. 1993.; SIMIS, 1996SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996.).

De muitos modos, essa orientação repercutia a orientação constituída na Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal durante as reformas de 1927 a 1935. Quando, em 1929, a Subdiretoria Técnica da Instrução organizou a Exposição de Cinematographia Educativa, Jonathas Serrano (CORREIO DA MANHÃ, 22 ago. 1929), seu principal responsável, lembrou que a iniciativa era parte do programa de reforma de Fernando de Azevedo. Já sublinhava, então, a conveniência de um órgão administrativo central documentar, exemplificar e apontar diretrizes para "retirar do cinema o recurso educativo que esta[va] revolucionando os métodos de ensino" (CORREIO DA MANHÃ, 22 ago. 1929, p.6). Noticiada como um "movimento preparatório, de propaganda e experiência" para tornar conhecidos os diversos aspectos do cinema educativo, a exposição atendia às indicações de uso do cinema como instrumento de ensino e educação popular.

O regulamento da reforma do ensino de 1928 não previa apenas a utilização do cinema como meio auxiliar de educação. Para a radiodifusão foi prevista a criação de uma Rádio-Escola no Distrito Federal. Segundo o decreto de 1928, tratar-se-ia de uma estação transmissora destinada à irradiação diária, para as escolas e para o público, de hinos e canções escolares, da hora oficial, do boletim de atos e instruções da Diretoria Geral, de todos os assuntos de interesse do ensino, de conferências, lições e sessões artísticas de caráter educativo (DISTRITO FEDERAL, 1929DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 2.940/1928. In.: DISTRITO FEDERAL. Lei e regulamento do ensino. Rio de Janeiro: Escola Álvaro Baptista, 1929., p. 310). Mas diferentemente do que ocorreu com o cinema educativo, não ocorreu nenhum movimento preparatório ou de propaganda para a implantação de qualquer serviço de radiodifusão até 1930. Apenas em 1934, a Rádio-Escola foi criada, como instituição do sistema educativo organizado no Distrito Federal. Embora bem diferente do disposto no regulamento de 1928, seu programa conservava a ideia de que a finalidade do rádio escolar era auxiliar o ensino. Conforme esclarece Roquette-Pinto, chefe da Seção de Museus e Radiodifusão, a Rádio-Escola (PRD-5) transmitia programas diários, divididos em três partes: "a) Hora Infantil, para três turnos, às 9h, às 13h30 e às 15h; b) Jornal do Professores às 18h; c) Suplemento Musical (discoteca municipal)". (ROQUETTE-PINTO, 1935ROQUETTE-PINTO, Edgard. Radio-diffusão. In.: TEIXEIRA, Anísio. Educação pública: administração e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Deptº. de Educação, 1935, p. 243-245., p. 244)

Nesse período, a reforma do Departamento de Ensino promovida por Anísio Teixeira criou a Filmoteca Central, como secção da Biblioteca Central de Educação. Pensada como núcleo central de todas as atividades do cinema escolar, foi constituída aproveitando-se alguns aparelhos de projeção animada e filmes adquiridos em 1929. Em 1934, a Filmoteca Central já reunia aparelhos de tomada de vista, de projeção fixa e cinematógrafos, rolos de filmes e diapositivos para servir ao aparelhamento das escolas. Assim, partes integrantes das instituições auxiliares de ensino no regulamento de ensino de 19286 6 Na legislação do ensino que reformou a instrução pública do Distrito Federal em 1928, junto com o cinema educativo e a radiodifusão, eram consideradas instituições auxiliares de ensino o Boletim de Educação Pública, a literatura pedagógica, as bibliotecas e os museus escolares, o escotismo e os intercâmbios interestadual e internacional escolar. , o cinema educativo e a rádio-escola tornaram-se núcleos de serviços distintos no período seguinte, durante a reforma dirigida por Anísio Teixeira. Por um lado, na Divisão de Bibliotecas e Cinema Educativo do Departamento de Educação, a filmoteca consubstanciava a ideia de organização de um acervo e lidava com o trabalho de censura e seleção de filmes educativos na Biblioteca Central de Educação. Por outro lado, a seção de Museus e Radiodifusão do Instituto de Pesquisas Educacionais foi confiada a Roquette-Pinto que não só atuou na organização da PRD-5, como também chefiou o desenvolvimento do seu programa.

As decisões que, entre 1927 e 1935, implicaram a criação dos serviços de cinema educativo e da rádio-escola como instituições do sistema escolar organizado na capital federal, sobretudo, interessam ao estudo da proteção oficial para a utilização desses meios. Com a Exposição de Cinematografia Educativa em 1929 e a criação da filmoteca, em 1933, ficaram delineadas as principais formas de institucionalização e de controle da exibição de imagens nas escolas à época. Já o funcionamento da PRD-5 promoveu uma experiência de produção que pôs à prova o modelo de radiodifusão então pensado como instrumento de educação popular e de auxílio ao ensino. Em ambas as frentes de atuação, as designações e as comissões de trabalho serviram tanto à conversão do prestígio intelectual em autoridade pública quanto ao treinamento técnico dos quadros de pessoal.

À comissão presidida por Jonathas Serrano, que viabilizou a Exposição de Cinematografia Educativa, pertenceram Everardo Backheuser, Francisco Venâncio Filho, Sérgio de Almeida Magalhães, Manoel Marinho, Nereu Sampaio, Paulo Maranhão, Loreto Machado e Elora Possolo. No recinto da exposição, foi organizada uma série de palestras que envolveram docentes e autoridades reputadas no magistério da capital federal. Além do próprio Jonathas Serrano, de Francisco Venâncio Filho, Everardo Backheuser, Loreto Machado e Elora Possolo, da própria comissão, apresentaram-se a inspetora escolar Maria Reis Campos, a professora Cecília Meirelles e os professores Edgard Sussekind de Mendonça, Raja Gabaglia, Carlos Werneck, Delgado de Carvalho e Dulcídio Pereira. No Boletim de Educação Pública, órgão oficial da Diretoria Geral de Instrução, tanto Jonathas Serrano quanto Francisco Venâncio Filho escreveram artigos acerca do cinema educativo, tendo publicado juntos, em 1930, o livro Cinema e Educação pela editora Melhoramentos, na coleção Bibliotheca de Educação, organizada por Lourenço Filho.

Junto com Roquette-Pinto, na PRD-5 trabalharam como auxiliares Vitorino Borges e Labre Júnior. Marina de Pádua, Augusta Queirós de Oliveira, Ilka Labarthe, Genolino Amado e Ariosto Espinheira conduziram programas na rádio, produzindo roteiros ou apresentando-os como speakers (COSTA, 2012COSTA, Patrícia Coelho da. Educadores do radio: concepção, realização e recepção de programas educacionais radiofônicos (1935-1950). 2012. Tese (Doutorado em Educação) -Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.). Em 1934, Ariosto Espinheira também publicou na coleção Bibliotheca de Educação o livro Rádio e Educação que informa a respeito do papel do broadcasting como suscitador do interesse, a organização dos programas, os tipos de lições e os modos de verificar os resultados da aprendizagem por esse meio. Como haviam feito Jonathas Serrano e Venâncio Filho (1930SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1930.), Ariosto Espinheira (1934) distinguiu o instrumento do programa, compreendendo que o meio de comunicação deve estar ligado aos propósitos educacionais e, principalmente, estar ao seu serviço.

A aparelhagem e os seus procedimentos de uso e produção também foram dificuldades para a radiodifusão. Da mesma maneira que para o cinema, obter, instalar e operar equipamentos adequados às finalidades educativas fomentadas pela Diretoria de Instrução envolveu a rádio-escola com a preparação de técnicos e de programas. A PRD-5 recrutou redatores, locutores e técnicos capazes de seguir as orientações educacionais do empreendimento. Nesse sentido, as experiências proporcionadas na PRD-5 foram decisivas não só para a elaboração de novas concepções sobre rádio-educação, mas, sobretudo, de quadros, como os de Espinheira, Labarthe e Amado, que partilhavam e divulgavam "a perspectiva de que era possível divertir e, ao mesmo tempo, educar pela radiofonia" (cf. COSTA, 2012COSTA, Patrícia Coelho da. Educadores do radio: concepção, realização e recepção de programas educacionais radiofônicos (1935-1950). 2012. Tese (Doutorado em Educação) -Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., p. 104).

OS EDUCADORES NA BUROCRACIA PÚBLICA E O CONTROLE DA IMAGEM E DO SOM

Na década de 1920, ao lado do livro, o rádio e o cinema passaram a ser tema de discursos pedagógicos. A esse respeito, os estudos de Magaldi (2007MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Melo. Um compromisso de honra: reflexões sobre a participação de duas manifestantes de 1932 no movimento de renovação educacional. In: MAGALDI, Ana Maria; GONDRA, José (orgs). A reorganização do campo educacional no Brasil: manifestações, manifestos e manifetantes. Rio de Janeiro, 7Letras, 2007.) sobre os discursos pedagógicos destinados à família no Brasil destacam atuações de Armanda Álvaro Alberto e Cecília Meireles. Entre as questões abordadas por estas educadoras, estão as recomendações do que era adequado à família, em consonância com uma concepção segundo a qual o processo educacional não terminava na escola, já que o seio familiar e o meio também atuavam de maneira decisiva na formação da criança. Vale frisar que, o trabalho desenvolvido por Armanda Álvaro Alberto à frente da Secção de Cooperação da Família da ABE constitui uma importante fonte para a compreensão das posições desses educadores e do processo de construção dos seus discursos. Nas reuniões quinzenais da seção, eram organizadas palestras e cursos sobre puericultura, educação higiênica e moral. Esses intelectuais também se incumbiam de elaborar listas com livros e filmes adequados à infância:

Uma comissão composta por D. Maria Amália Castro e Silva e professores Mrs Andrews e Edgard Sussekind de Mendonça está promovendo sessões infantis em vários cinemas desta capital, havendo a Associação dirigida aos exhibidores uma circular em que se offerece a examinar o valor educativo dos filmes destinados a taes sessões, podendo declarar a sua aprovação e contar com sua propaganda junto aos directores dos colégios para a garantia de assistência. Pretende também a Commissão fazer um recenseamento dos filmes apropriados que se encontrem em stock e possam ser re-exhibidos systematicamente (BOLETIM DA ABE, 09/1925, p.7).

O discurso sobre o material adequado para ser veiculado abrangia todas as formas de comunicação, como rádio, livros, jornais, revistas e o cinema. Cecília Meireles, por exemplo, em sua coluna no Diário de Notícias, publicava prescrições sobre o assunto. Nesse sentido, notava-se a significativa atenção com a escolha da linguagem; a tida como apropriada deveria corresponder à forma culta, excluindo gírias e outras adaptações. No caso do rádio, os valores disseminados pelas músicas eram alvo de debates. As críticas de ouvintes dirigidas a determinados programas infantis, considerados educacionais por suas emissoras eram constantes, acirrando as discussões sobre o que seria pedagógico e adequado à educação infantil: Musica para creanças O nosso meio radiofônico offerece vários problemas a resolver, e um dos que mais carecem de rápida solução e o dos programmas infantis.

A maioria das emissoras já os adoptaram. O que se observa é, porém lamentável! Creanças a contar as maiores impropriedades que os versejadores dos morros tão bom compõem.

Ligando-se o radio para um dos taesprogrammas, ouvir-se-á, invariavelmente uma garota de 7 a 8 anos cantar:

Eu conheço uma rua,

Que tem uma esquina,

Que nem mesmo a lua De noite illumina.

E a Cavallaria

Lá nunca se vê,

É lá que eu querece encontrar com você.

Vera Martins - Avenida Pedro II, 149 casa 46 São Cristovão (MÚSICA PARA CREANÇAS, 21/3/1936, p. 44).

A carta da ouvinte traz à tona um ponto mais específico da discussão em torno do que seria adequado aos programas: a defesa dos conteúdos eruditos e folclóricos, rechaçando-se o popular urbano, por ser considerado imoral. Analisado sob o ângulo do que era mais adequado para veiculação, se o popular ou o erudito, o debate apontava para um processo mais amplo, a saber, a construção de um discurso sobre a identidade nacional, no qual os intelectuais exerciam o papel de mediação analisado por Ortiz (2006ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, Brasiliense, 2006.). Os mediadores se incumbiam da elaboração de uma interpretação sobre o país, a partir da seleção de determinadas manifestações culturais, que eram deslocadas de sua esfera particular, para serem articuladas a uma totalidade que as transcendesse. O processo que concretizava o que deveria ser veiculado como cultura autorizada não era simples, sendo cercado de controvérsias. O intelectual, no papel de mediador, tinha sua voz autorizada pelo Estado, mas não calava a voz dos que haviam sido excluídos, por terem suas formas de expressão condenadas. Por sua vez, os mediadores criavam argumentos para justificar suas escolhas, e, talvez, o maior deles dissesse respeito à proteção de que necessita o povo, por ser facilmente manipulável.

A maneira como o poder público lidou com a preocupação desses intelectuais sobre os filmes projetados nas salas de aula e de cinema tem muito a ver com a presença que parte deles teve na administração de instituições do Estado. A discussão que se deu nos anos de 1920-1930 nesse sentido é bem conhecida pela historiografia. Há, nos estudos sobre o Código de Menores de 1927 (CÂMARA, 2006CÂMARA, Sônia. Sob a guarda da República. A infância menorizada no Rio de Janeiro da década de 1920. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.; SILVA, 2007SILVA, Wesleÿ. Por uma história sóciocultural do abandono e da delinquência de menores em Belo Horizonte (1921-1941). Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.), nas publicações a respeito do cinema e do cinema educativo (ANTONACCI, 1993ANTONACCI, Maria Antonieta. Trabalho, cultura, educação: escola nova e cinema educativo nos anos 1920/1930. Projeto História, São Paulo, nº 10, dez. 1993.; VIDAL, 1994VENÂNCIO FILHO, Francisco. A educação e o seu aparelhamento moderno. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941.; PAULILO, 2002PAULILO, André Luiz. A leitura, o cinema e os processos educativos na obra de Jonathas Serrano: problemas metodológicos e precauções morais da pedagogia nos anos 1910-1930. História da Educação, Pelotas, vol. 11, p. 169-192, 2002.) e sobre a organização do serviço de censura no Ministério da Educação e Saúde (SOUZA, 1991SOUZA, José Inácio de Melo. Ação e imaginário de uma ditadura: controle, coerção e propaganda política nos meios de comunicação durante o Estado Novo. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.; SIMIS, 1996SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996.), um mapeamento bastante confiável do que de principal foi feito para se manter o controle sobre a produção e a distribuição de películas. Principalmente, as análises convergem para a abordagem das estratégias de censura desenvolvidas nessas diferentes iniciativas, que foram legislar, discutir e institucionalizar práticas. De fato, para a compreensão das manobras por meio das quais se procurou efetivar uma percepção útil à ordem pública do cinema no período, o estudo das práticas de censura parece mesmo central.

No Código de Menores, decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, o artigo nº 128 trazia oito parágrafos que regulamentavam a frequência dos menores de 18 anos nas salas de cinema. Interditava a entrada nas salas de cinema por menores de 14 anos desacompanhados dos seus pais ou tutores e proibia a frequência de crianças com menos de 5 anos em qualquer situação. Menores de 18 anos não podiam assistir a apresentações que pudessem lhes prejudicar "o desenvolvimento moral, intelectual ou físico" ou "excitar-lhes perigosamente a fantasia, despertar instintos maus ou doentios, corromper pela força de suas sugestões" (BRASIL, 1928BRASIL. Decreto nº. 17943-A/1927. In. BRASIL. Collecção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de 1927. Vol. II. Actos do Poder Executivo (jan.- dez.). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928, p. 476-523., p. 495-496). Segundo Jonathas Serrano e Francisco Venâncio Filho (1930SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1930., p. 136), os meios objetivos para censurar filmes assim julgados prejudiciais eram a abstenção de qualquer auxílio oficial, a crítica rigorosa e a reprovação enérgica de quaisquer tentativas desvirtuadoras do caráter artístico e educativo do cinema. De fato, no período posterior, em 1933, as instruções regulando a seleção de filmes educativos na Seção de Filmoteca da Biblioteca Central previam uma comissão de censura. Antes disso, em 1931, Jonathas Serrano e Venâncio Filho voltaram a se encontrar numa comissão de trabalho sobre filmes cinematográficos para discutir a censura no Ministério da Educação e Saúde. Conforme indicado anteriormente, haviam trabalhado, sob a presidência de Roquette-Pinto, com Teixeira de Freitas, Lourenço Filho, Mario Behring, Ademar Gonzaga e Ademar Leite Ribeiro no anteprojeto do que viria a ser o decreto 21.240/32, que nacionalizou o serviço de censura aos filmes (ANTONACCI, 1993ANTONACCI, Maria Antonieta. Trabalho, cultura, educação: escola nova e cinema educativo nos anos 1920/1930. Projeto História, São Paulo, nº 10, dez. 1993.; SIMIS, 1996SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996.).

Entretanto, há bons indicativos de que essa relação com a produção cinematográfica era bem mais matizada. Conforme Souza (1991SOUZA, José Inácio de Melo. Ação e imaginário de uma ditadura: controle, coerção e propaganda política nos meios de comunicação durante o Estado Novo. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991., p. 82), por exemplo, a nomeação dessa Comissão de estudo respondia aos apelos da Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros por uma censura uniforme e federalizada. No caso da exibição de filmes para crianças, ainda em 1927, o representante da Fox Film no Brasil, Albert Rosenwald (1927ROSENWALD, Albert. O cinema e a infância. Cinearte, ano II, nº 62, Rio de Janeiro, 4 maio 1927, p. 1., p. 01), contemporizou, nas páginas da revista Cinearte com a comissão, que lhe questionou sobre a propriedade dos filmes da sua produtora em exibição:

tornou-se-nos logo simpática a comissão que nos visitou, pedindo também que disséssemos a nossa opinião sobre a propriedade dos filmes da nossa produção a serem exibidos nos cinemas desta capital, a fim de serem os mesmos recomendados ou enviados para as crianças nas escolas (ROSENWALD, 1927, p. 1).

No ano seguinte, Rosenwald foi oficialmente encarregado pela prefeitura da capital de estudar nos Estados Unidos o problema do cinema educativo. Jonathas Serrano e Venâncio Filho reconheceram em várias ocasiões que a escolha e a aquisição de equipamentos e filmes eram dificuldades para cuja solução não permitia prescindir da colaboração da indústria cinematográfica. Por ocasião da Exposição de Cinematografia Educativa, Venâncio Filho (1929)VENÂNCIO FILHO, Francisco. Pictus orbis. A Ordem, Rio de Janeiro, 25 set. 1929, p. 2. publicou um artigo, intitulado Pictus Orbis, tratando disso a partir de dois aspectos: o do aparelho e o do filme. Sob o ponto de vista escolar, os desafios da cinematografia educativa pareciam-lhe resolvidos uma vez que, considerava que entre outras fabricantes, a Zeiss Icon de Dresden já disponibilizava um aparelho que, pelas condições de preço, facilidade de manejo e transportabilidade, era um tipo excelente para as escolas. O problema do filme apresentava dificuldades mais sérias, pois, sobre as coleções da Devry School Films Inco e do Museu Comercial que a Diretoria Geral de Instrução havia ajustado ao seu programa, foi dito o seguinte: "falta qualquer coisa para dizer que correspondem definitivamente a sua finalidade" (VENÂNCIO FILHO, 1929UMA novidade em nossos methodos educativos. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1929, p. 2., p. 2). Em 1930, no Boletim de Educação Pública, Jonathas Serrano (1930SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1930., p. 53) também reconheceu o papel da indústria nas questões de fornecimento e distribuição. Assim, diante do custo dos filmes, lembrava que havia bons fornecedores de filmes de medida mínima (Pathé-Baby) ou média (Kodak) relativamente baratos e acessíveis. Sobretudo, entendiam que nessa área havia um conjunto de mecanismos, instrumentos e procedimentos cujo uso e cujo manuseio eram constantemente desenvolvidos pela ciência e pela indústria e que delas dependiam.

Como a discussão que envolveu os educadores ligados ao cinema educativo no serviço de censura e controle da produção, também a Comissão Rádio Educativa da Confederação Brasileira de Radiodifusão (CBR) se incumbiu de atuar sobre os programas irradiados por suas filiadas, exercendo papel de controle e cerceamento. Criada em 1933, essa comissão reunia alguns participantes das reformas do ensino carioca: Lourenço Filho, Frota Pessoa, Teixeira de Freitas, Francisco Venâncio Filho e Ariosto Espinheira. A CBR produziu um discurso sobre a linguagem adequada para ser veiculada e os valores a serem disseminados na programação como parte do esforço para garantir uma reserva de mercado para a radiodifusão educativa.

Ao assumir o poder em 1930, Getúlio Vargas estabeleceu uma política inovadora em várias áreas, com a criação de ministérios como o do Trabalho, o da Educação e Saúde, e o da Indústria e Comércio. A comunicação também foi incluída nesse processo, com a adoção de medidas que visavam à sua regulamentação. A urgência com que foi tratado o assunto, a decisão de publicar o primeiro decreto destinado a regulamentar as atividades de radiofonia ainda no primeiro ano do Governo Provisório, e, ainda, a quantidade de normas promulgadas sobre a matéria - entre 1931 e 1936, foram elaborados dois decretos e quatro portarias - indicam a importância que essa questão assumiu no novo contexto político.

Os decretos 21.111, de 1º. de março de 1932, e nº 21.240, de 4 de abril de 1932, são, respectivamente, um marco na história do rádio e do cinema em nosso país, pois regulamentavam tais atividades de forma detalhada. Por meio desses instrumentos legais, foi estabelecido um padrão para uma série de aspectos, como, por exemplo, a função do speaker, a potência de transmissão, as formas de concessão de estações e a propaganda, os critérios de censura e a classificação dos filmes.

O decreto nº 21.111/32, porém, representou uma vitória apenas parcial para os defensores da radiocultura. Por um lado, fazia estabelecer a finalidade educacional da radiofonia, um avanço em relação as tentativas anteriores de disciplinar o setor. Mas, apesar disso, a regulamentação era falha, pois não definia os parâmetros que caracterizariam uma programação como educativa. Oficialmente, estipulou-se apenas que o Ministério da Educação e da Saúde conduziria a normatização do assunto e daria orientação às emissoras. Por outro lado, a legislação impôs um prazo de dois anos para que as estações remodelassem sua aparelhagem a fim de que se tornassem mais potentes. As sociedades de rádio tinham um orçamento deficitário e dificilmente disporiam de recursos financeiros para cumprir essas exigências. Frente à ameaça de cassação dos direitos de transmissão das emissoras que não se adequassem aos novos padrões técnicos previstos em lei, os educadores não só insistiram na defesa da rádio escola. Também voltaram seus esforços para a criação de parâmetros de classificação para os programas educacionais.

No caso do cinema, não foi diferente. O decreto nº 21.240/32 previa a diminuição dos impostos sobre o filme virgem, o que poderia contribuir para a importação e a produção de películas comerciais de todos os gêneros. Ao mesmo tempo, determinou a exibição de filmes educativos antes de longas-metragens e estabeleceu a censura cultural. A análise e a classificação dos filmes ficariam a cargo de uma comissão composta por um professor do Ministério da Educação e Saúde, um educador da ABE e pelo diretor do Museu Nacional, o que demonstra a força dos defensores do cinema exclusivamente educacional neste processo. Na carta escrita para justificar o seu pedido de dispensa do cargo de censor, em 10 de novembro de 1934, Andrade Pacheco questionou os critérios aplicados no processo de análise das películas e confessou que considerava os resultados dos julgamentos dos filmes imprevisíveis:

Com essa disposição de espírito iniciei ao meu exame de um filme da Columbia "Noite de horrores" si não falha a memória.

Não me deixei influenciar pelo título da película. Analisei sinceramente o caso e, em conclusão não achei motivos bastantes para condenar o filme. Limitei-me, por isso a considera-lo impróprio para menores com o que entendi cumpridas as disposições regulamentares do decreto 21.240.

Os meus colegas, porém, entenderam votar pela interdição do filme.

Conformei-me silenciosamente com esse veredictum porque acreditava na sinceridade e na imutabilidade dos que o ditaram.

Dias após, porém verifiquei, precisamente, o contrário outros filmes de horrores, assassinatos, etc. conseguiram passar incólumes pelo crivo da censura, certo já modificado no seu rigoroso critério anterior.

(Arquivo Roquette-Pinto/ Academia Brasileira de Letras)

Também foi criada a taxa cinematográfica, que definia o recolhimento de um percentual sobre as exibições de cinema que seria repassado ao Museu Nacional, o qual centralizaria a produção de filmes educativos.

A forma autoritária como foram elaboradas as leis sobre a radiofonia e a cinematografia no Brasil e seu sentido interventor não geraram um clima de protestos. É interessante destacar que, nesse período, Getúlio Vargas desfrutava do apoio de grande parte da intelectualidade. Bomeny (2001BOMENY, Helena. Infidelidades eletivas: intelectuais e política. In: BOMENY, Helena (org.). Constelação Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.) lembra que o Estado advindo da Revolução de 1930, chegou com propostas políticas para áreas até então pouco amparadas, como educação, saúde e cultura. Desta maneira, conseguiu envolver estes sujeitos, sendo possível afirmar que estes atenderam ao chamado de Vargas para colaborar com o regime. Também no caso do cinema, as estratégias de controle sobre a produção da linguagem e do seu conteúdo passaram pela ocupação de cargos nas instituições de governo. A participação de Jonathas Serrano, Venâncio Filho e Lourenço Filho no grupo de estudos organizado por Francisco

Campos no Ministério da Educação e Saúde, a atuação de Roquette-Pinto no INCE e mesmo a criação de uma comissão de censura na Filmoteca Central do Departamento de Educação do Distrito Federal mostram-no em alguma medida. A presença desses intelectuais nas principais instâncias de elaboração das políticas de governo para a radiodifusão e cinema permite compreender parte dos compromissos então construídos para legitimar o controle dos novos meios de difusão cultural por parte do Estado varguista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo, foi possível perceber que, por meio do que uma vez Sérgio Miceli (2001, p. 213) identificou como tarefas subalternas das instituições de difusão cultural e propaganda, consolidaram-se frentes de legitimação para a crescente interferência do Estado nos setores da radiodifusão e do cinema. Sobretudo, a participação de intelectuais que atuaram na educação em órgãos públicos ligados a essas áreas contribuiu para modelar os meios de diversão dos quais a população, já nos anos de 1930, não prescindia e para difundir uma linguagem apropriada: culta e educativa. Em contrapartida, o trabalho das comissões de censura acentuou as precauções morais dos serviços educativos quanto à modernização dos meios empregados, refletindo também nas escolas as estratégias de seu controle na cidade.

Outra face dessa discussão envolveu a indústria. Os artifícios da legislação para o controle da produção de programas e filmes e da própria difusão da radiofonia e da cinematografia entrelaçavam interesses políticos e comerciais. As políticas de concessão, taxação e censura compensavam o setor com políticas de indução por meio das quais se asseguravam contratos de produção, compras de equipamentos e mercado consumidor. Em um momento em que todo um trabalho de construção institucional configurou o Ministério da Educação e Saúde e sua rede de autarquias, conselhos, departamentos e comissões ou o próprio Departamento de Educação do Distrito Federal como parte do agenciamento político de intelectuais pelo Estado, o emprego da radiodifusão e do cinema na educação não ocorreu somente como corolário de um projeto singular de educação popular.

Tanto quanto um projeto intelectual associado à extensão das oportunidades de escolarização, a atuação de cientistas do porte de Roquette-Pinto, de professores como Jonathas Serrano, Venâncio Filho e Genolino Amado ou de práticos do tipo de Ariosto Espinheira, Ilka Labarthe e Humberto Mauro no campo da radiofonia e da cinematografia definiu formas de produção, critérios de aquisição, condições de apresentação e âmbitos de circulação de filmes, programas e equipamentos. Nesse sentido, além do controle da linguagem e dos conteúdos das produções, havia a preocupação com as finalidades da radiodifusão e do cinema e com suas condições de funcionamento.

Assim, tão importante quanto a regulamentação e a censura parecem ter sido as políticas de indução e a formação de quadros. Principalmente quanto a esta perspectiva, a atuação desses intelectuais definiu seu pioneirismo em um espaço emergente de negociação entre o Estado e os interesses econômicos da indústria cultural e de seus fornecedores.

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  • 1
    Os estudos de Euclides da Cunha publicados em Os sertões (1902) inspiraram a geração de intelectuais nascida nas duas últimas décadas do século XIX, como Edgard RoquettePinto e Carlos Delgado de Carvalho, pioneiros da radiofonia em nosso país, que realizaram expedições ao interior brasileiro com o intuito de compreender melhor sua população e
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    Em1921, a Sociedade Brasileira de Ciências passou a ser chamada de Academia Brasileira de Ciências, atendendo a uma convenção internacional da época.
  • 3
    A Exposição Internacional Comemorativa do 1º Centenário da Independência ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. A abertura oficial deste evento aconteceu em 7 de setembro de 1922, com a participação de 13 países e todos os estados da federação, que expuseram os seus símbolos de modernidade.
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    Prefixo concedido pelo Ministério da Viação e Obras Públicas a cada emissora que autorizava o seu funcionamento.
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    Autor de roteiros para cinema na década de 1920 e autor de Cinema contra cinema: bases gerais para um esboço do cinema educativo no Brasil. (MENDES, 1931)
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    Na legislação do ensino que reformou a instrução pública do Distrito Federal em 1928, junto com o cinema educativo e a radiodifusão, eram consideradas instituições auxiliares de ensino o Boletim de Educação Pública, a literatura pedagógica, as bibliotecas e os museus escolares, o escotismo e os intercâmbios interestadual e internacional escolar.
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    Patrícia Coelho da Costa - Doutora em Educação, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. Professora Assistente, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: pacoel@bol.com.br
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    André Luiz Paulilo - Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenador do Centro de Memória da Educação da UNICAMP. E-mail: andre.paulilo@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2014
  • Aceito
    23 Set 2014
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