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A PESQUISA EM EDUCAÇÃO E A QUALIDADE DA ESCOLA BÁSICA: DESAFIOS PARA A PÓS-GRADUAÇÃO

RESEARCH IN EDUCATION AND BASIC SCHOOL'S QUALITY: CHALLENGES FOR POST-GRADUATION

Às Profas. Eliane Marta e Magda Soares, pela disponibilidade de interpelar o mundo!

Aos colegas do Pensar a Educação, pela vontade de reinventar o mundo!

Acostumados a falar de um presente do qual já sabem o futuro, os historiadores têm dificuldade de falar de um presente que ainda não é passado. Talvez por isso, lembrando Michel De Certeau, os historiadores tenham essa estranha mania de chamar os mortos para mediarem as suas conversas com os vivos!

Das coisas que vou dizer aqui muitos, se não todos, já sabem, ou sentem, ou já ouviram falar!1 1 Conferência de Abertura proferida no 11º Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. São João Del Rei, 12 de outubro de 2014. Num certo sentido, o que vou fazer é repetir, reverberar falas outras, passadas, ampliando ou redesenhando os discursos com os quais e por meios dos quais nos falamos, dizemos de nós mesmos e dos outros.

Mas, qual o sentido de abertura de um discurso que não é se quer original e, muito menos, inaugural? Qual é o lugar desse discurso na "ordem dos discursos" sobre e da educação e, sobretudo, qual a sua legitimidade? Minha expectativa é que aqui também se possa realizar a ideia de que em todo discurso que se repete há uma ressonância inesperada, alguma entrância inexplorada, alguma possibilidade de deslocamento.

Se cá estamos nesse auditório é porque alguma disponibilidade há para a escuta, nem que seja para confirmar a rarefação das ideias deste que vos fala! Sendo essa uma possibilidade real, outra é também aquela de que a própria rarefação do discurso permite a elaboração do não dito, do "mal dito" e, no limite, do "inter-dito".

Outrora, nos ensinou José Américo Motta Pessanha2 2 Cf. PESSANHA, José Américo Motta. Filosofia e modernidade: racionalidade, imaginação e ética. Cadernos ANPEd, Porto Alegre, n. 4, p. 7-36, 1993. que o pensamento dos humanos cientistas, na busca do deciframento do mundo, ganha mais em precisão3 3 Lembremo-nos de que "navegar é preciso; viver não é preciso", como precisava Fernando Pessoa. se mantido permanentemente mais próximo dos "porquês" do que dos "portantos". Do mesmo modo, aprendi com o Neidson Rodrigues que a consciência do desideratum humano - ou seja, a consciência de que nosso destino está relacionado ao nosso desejo e de que, portanto, ele não está inscrito ou escrito nas estrelas ou nas entranhas dos animais - nos coloca a responsabilidade de fabricar a nossa história, mesmo que no interior das circunstâncias que herdamos e daquelas que por ato, ou omissão, ajudamos a produzir. Por isso, penso que, talvez, essa conferência possa funcionar como espaço-tempo não apenas de reiteração, mas também de criação de sentidos. Isso porque me imagino aqui assumindo a responsabilidade de manter vivos os nossos porquês e, assim, ajudar a vislumbrar novas possibilidades de relações entre a pós-graduação e a Educação Básica no Brasil.

Mas, contraditoriamente, começo pelos "portantos"! Nos inúmeros debates que ora se travam sobre a qualidade da Educação Básica no país, é muito comum ouvirmos, mesmo de colegas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a indagação de como é possível termos uma pós-graduação e pesquisas de excelência na área e, ao mesmo tempo, uma escola básica de qualidade muito discutível. O argumento por detrás dessa indagação quase sempre é que a pesquisa na área, apesar de abundante e qualificada, não impacta a qualidade da escola pública brasileira.

De fato, a comunidade de pesquisa em educação é a maior comunidade científica do país, segundo os dados do diretório dos grupos de pesquisa do CNPq para 2014: ela reúne mais de 22 mil pesquisadores em programas de pós-graduação das áreas de educação e ensino de ciências e matemática e alguns milhares de alunos de mestrado e doutorado.

Mas, é preciso perguntar: seria correta (e justa) a ideia de que a pesquisa que fazemos não impacta a qualidade da escola pública? Parece-me que não. Talvez, para efeitos de comparação, poderíamos perguntar também: a pesquisa na área médica não impacta a saúde pública no Brasil? E aquelas pesquisas nas áreas das engenharias, não têm impacto na qualidade das estradas ou do trânsito no país? Como se vê, se tomarmos esses rumos argumentativos, muitas seriam as áreas cujas pesquisas ficariam em suspeição a respeito de sua contribuição à melhoria dos serviços públicos que lhes são afetos. Mas não me parece que o caminho seja esse.

Em primeiro lugar, um olhar mais apurado nos permitiria ver que muitas das melhores políticas de educação desenvolvidas nos diversos níveis da administração pública - da Educação Infantil ao Ensino Superior - têm por base os conhecimentos produzidos e acumulados nas últimas décadas nos programas de pós-graduação em educação e de ensino de ciências e matemática. Entre os inúmeros exemplos que poderíamos citar está, com certeza, a política nacional do livro didático destinado às séries iniciais. Quem não reconhecer, hoje, o salto de qualidade que se atingiu nessa política pública de educação, que atinge milhões de alunos, é porque não se deu ao trabalho de comparar a qualidade dos livros didáticos brasileiros atuais com aqueles de algumas décadas anteriores. A esse respeito, está em elaboração um livro que mapeia as contribuições da pesquisa em educação relacionando-as à elevação da qualidade da escola pública no Brasil, demonstrando, inclusive, os fatores que facilitam e, na maioria das vezes, dificultam que tais contribuições sejam generalizadas para as diversas redes de ensino.

Em segundo lugar, analisando a história do Brasil, nossa cultura política e as políticas educacionais que aqui se desenvolvem desde, pelo menos, o nascimento do Império, no século XIX, não deveria surpreender-nos o fato de termos uma ótima pós-graduação (para poucos) e uma escola pública básica cuja qualidade todos criticamos (para muitos). Ou seja, essa situação refletiria, de maneira transparente, o que é o Brasil! Ou não?

Parece-me mais correto e honesto nos perguntarmos sobre os fatores que impedem que os conhecimentos produzidos pelas pesquisas na área de educação, e as boas experiências conduzidas em parceria entre pesquisadores e escolas, tenham um maior impacto nas escolas básicas de todo o Brasil. Boa parte das razões que dificultam as pesquisas a impactar mais fortemente a qualidade da escola básica está, como se evidencia continuamente, no âmbito das políticas públicas para a área. É aí, nesse terreno em que os pesquisadores têm muito pouca ingerência ou capacidade de intervenção, que se decide a sorte da escola pública brasileira. Nesse terreno, também são bem conhecidos os grandes problemas enfrentados pelas escolas e não cabe aqui repeti-los.

Ou seja: definitivamente não é por falta de conhecimento que a nossa escola pública não é de melhor qualidade. O que já sabemos, hoje, sobre a escola, os processos de ensino e aprendizagem, a gestão e as demais dimensões que compõem e estruturam essa complexa instituição que é ela, é muito mais do que suficiente para darmos um salto de qualidade em nossas escolas públicas. Nesse sentido, uma contribuição fundamental dos pesquisadores da educação, em parceria com os professores da escola básica e ativistas sociais, foi, justamente, tornar esse conhecimento em um senso comum crítico sobre a escola brasileira.

A educação escolar é um assunto complexo e é uma irresponsabilidade pública achar que ela pode ser conduzida por amadores e/ou por quem não conhece minimante as teorias básicas que dão suporte à intervenção pedagógica e que pela ação docente são continuamente reinventadas. Tal posição significa que é preciso tratar a pesquisa e os pesquisadores da área de educação com mais respeito e consideração, reconhecendo a complexidade dos temas que abordam e a sua expressiva contribuição para a produção do conhecimento sobre os fenômenos educativos. Passar da pesquisa e da produção do conhecimento à política é uma tarefa que, como sabemos, quase nunca depende do pesquisador e da qualidade do conhecimento que ele possui. Por isso, responsabilizar o pesquisador em educação pela qualidade da escola pública é ingenuidade ou, pior ainda, má fé que esconde interesses inconfessáveis.

Algo próximo a isso se poderia dizer a respeito da ideia de que a pós-graduação não forma professores para a escola básica. Não é preciso se alongar nessa direção para demonstrar o quão falacioso é esse argumento, que ao invés de se perguntar pelas razões que levam mestres e doutores a abandonar a escola básica, prefere depositar a responsabilidade nos programas de pós-graduação que formam tais pesquisadores, quando não nos próprios pesquisadores!

Mas, dizer isso não equivale a dizer que não há problemas. Há quase 30 anos, quando participei pela primeira vez de uma reunião da Região Sudeste da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), ocorrida em Vitória em 19874 4 Numa sessão em que estivemos apenas o Lúcio Kreutz e eu, que éramos os apresentadores, e ninguém mais! Talvez por isso mesmo, solidários desde a primeira hora nesse infortúnio comum, tenhamos desenvolvido uma grande parceria e amizade que dura toda uma vida! , havia um entendimento corrente de que se queria fazer algo diferente, criativo, dever-se-ia dirigir-se à pós-graduação. Já naquela época os departamentos davam claro sinal de que não conseguiam abrigar e organizar a pesquisa nas universidades.

Por isso, sobretudo na área de educação, muitos dos programas de pós-graduação foram organizados à revelia dos departamentos. Isso significou, também, a constituição de uma organização e de uma cultura institucional pouco integrada aos departamentos que ainda hoje representam um grande obstáculo à plena incorporação dos programas pelas faculdades de educação em que estão abrigados.

Ao longo das últimas quatro ou cinco décadas se, por um lado, a pós-graduação possibilitou a profissionalização, a estabilização e a continuidade da pesquisa acadêmica em educação, por outro lado, significou também, como não poderia deixar de ser, o submetimento da pesquisa e dos pesquisadores aos modos de organização e consagração, próprios do campo acadêmico. Mas não apenas isso. Houve, sem dúvida, a exacerbação do controle dos programas e uma crescente homogeneização do entendimento dos modos de produzir, expor e divulgar o conhecimento.

Assim, numa clara situação em que a criatura volta-se contra o criador, as formas de exposição e de divulgação de nossas pesquisas acabam por se voltar, hoje, contra a própria dinâmica da pesquisa, impondo ritmos a ela e constrangimento às formas de exposição que têm sido pouco aprofundadas por nós. A drástica diminuição da publicação de ensaios, os questionamentos ao livro e a consagração do artigo como modo por excelência de exposição e divulgação das pesquisas são apenas parte de um fenômeno mais amplo que é a própria institucionalização da pesquisa na forma da pós-graduação no país.

O que observamos, hoje, é que a pós-graduação se petrificou e dá claros sinais de esgotamento e, devido a sua força institucional e porque não financeira, ameaça levar consigo a própria universidade brasileira. Não são poucos os dirigentes da CAPES e demais órgãos de regulação e fomento do sistema nacional de pesquisa e de pós-graduação que vêm a público, continuamente, a elogiar o sucesso de nossa pós-graduação. De fato, não é pouco o que se fez nas últimas cinco décadas nesse terreno. Somos hoje dezenas de milhares de pesquisadores - alunos e professores - que se dedicam à pesquisa. Ocupamos, hoje, a 13ª posição no ranking internacional de produção científica qualificada. Temos uma consolidada infraestrutura de pesquisa. Somos, atualmente, o único sistema do mundo que é continuamente irrigado com bolsas, do ensino fundamental ao pós-doutorado, custeadas com recursos públicos, sem nenhum tipo de compromisso de retorno da pesquisa e do egresso para a população.

Mas, não custa nada dizer que temos, também, um país em que a pesquisa é profundamente dependente do que se faz na pós-graduação. Tal dependência tem tanto um caráter histórico e conceitual quanto organizativo e operacional. Do ponto de vista histórico, nunca é demais lembrar que a institucionalização de fato da pesquisa no Brasil, diferentemente de outros países, ocorre na forma da pós-graduação. Antes disso, as pesquisas eram esparsas, descontínuas, pouco profissionalizadas e dependiam, fundamentalmente, do gênio pessoal de cada pesquisador. Tal fato produziu, também, uma dependência conceitual da pesquisa em relação à pós-graduação. Enquanto em outros países do mundo, inclusive os da América Latina, a universidade de pesquisa antecede muito a pós-graduação, aqui no Brasil passamos a pensar a pesquisa nos estreitos marcos de sua organização. Como desdobramento disso, e como resultado da grande liberdade institucional reconhecida à pós-graduação, todo aparato organizativo e operacional dos programas à agência de regulação e fomento foi montado para incentivar a pesquisa aí realizada.

Ora, se tais dependências são minimamente verdadeiras, não é de se estranhar que a universidade passou a andar a reboque da pós-graduação. Nessa perspectiva, o submetimento das outras dimensões e da estrutura da vida universitária aos ritmos e cânones da pós-graduação não é uma desordem do modelo, mas sua plena realização.

No entanto, não era inexorável que tal fato acontecesse e não é inexorável que assim continue. Na verdade, a excessiva regulação do sistema e a exacerbação dos modos de consagração acadêmicos stricto sensu estão dando, hoje, claros sinais de esgotamento. E não se trata mais apenas da pouca valorização do ensino, da extensão e da administração universitária, mas também, e, sobretudo, do empobrecimento paulatino da produção em si do conhecimento, dos processos de formação dos novos pesquisadores e do descolamento da comunidade científica dos grandes problemas nacionais.

Se a avaliação da política se tornou, de fato, a única política, é preciso se situar logicamente antes dessa avaliação para propor alternativas. Nessa direção, parece-me que uma saída seria pensarmos uma política de pesquisa em educação que incorporasse e desse sentido à política de pós-graduação na área.

Como é sabido, ao longo de muitos anos a pesquisa em nossas áreas, mesmo na pós-graduação, esteve muito atrelada à ideia de genialidade pessoal do pesquisador, e o próprio sistema de fomento atuou nessa direção. Nas últimas décadas, apesar do incentivo à organização de grupos e linhas de pesquisa, o fomento e boa parte da avaliação, mesmo dos programas, se assenta nessa ideia - a da ação individual de cada pesquisador. Em outra direção temos, na última década, uma demanda cada vez maior do Estado, em seus diversos níveis de governos, pela produção de um conhecimento interessado, ou aplicado, no entendimento de dimensões específicas do complexo sistema escolar brasileiro. Essa demanda, dirigida à universidade, tem pautado nossas pesquisas e significado aporte de recursos para nossas pesquisas e para a complementação salarial de um substantivo número de pesquisadores e técnicos.

Um problema desse último modelo é que não raras vezes ele vem acompanhado não apenas da realização de pesquisa, mas também, e, sobretudo, da responsabilidade de operacionalização das políticas de Estado ou de governo. A esse respeito, penso ser necessário termos consciência de que nossa atuação vinculada ao desenvolvimento de política públicas traz vários inconvenientes, como:

  • • as políticas públicas nos pautam de fora, pois raramente são acordadas conosco;

  • intensifica nosso trabalho, pois várias vezes ocorrem paralelamente às nossas atividades na universidade;

  • diminui o tempo dedicado às finalidades da universidade;

  • evita que o Estado crie uma "estrutura de Estado" para operacionalizar as políticas públicas;

  • dificulta a formação de uma burocracia especializada para operacionalizar ações de Estado na área da educação;

  • coloca à frente de políticas públicas pessoas que não necessariamente são competentes na operacionalização das mesmas;

  • inibe a avaliação externa e especializada das políticas públicas uma vez que aqueles que seriam capazes de avaliá-las são os mesmos que as operam;

  • leva à descontinuidade das políticas, pois os assessores e os grupos de pesquisa mobilizados mudam com as mudanças de governo.

Por outro lado, pois sempre há mais de um lado, o trabalho desenvolvido pelos(as) colegas na prestação de serviços e na operacionalização de políticas públicas é um importante meio de complementação salarial e, no plano institucional, mantém boa parte da estrutura que todos utilizamos cotidianamente na universidade. Ou seja, a prestação de serviços é, definitivamente, uma questão que implica, pessoal e institucionalmente, individual e coletivamente, toda a universidade.

Pensar uma política de pesquisa para a nossa área poderia ajudar a produzir uma melhor integração entre os grupos de pesquisas e os próprios pesquisadores, mas também poderia contribuir para mais respeito às especificidades e à autonomia entre os diversos atores que participam desse jogo em que o aumento da qualidade da escola pública, sobretudo a escola básica, é o objetivo que têm em comum.

Tal política, a meu ver, teria que integrar os diversos atores e as diversas instituições em torno da construção de um pacto sobre as necessidades de conhecimento do sistema, bem como na escolha dos melhores arranjos institucionais para atendê-las. Talvez uma boa inspiração pudesse vir do Programa de Pesquisa para o SUS (PP-SUS), operado conjuntamente pelos responsáveis pelos serviços, sobretudo pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais de Saúde, pelas agências de fomento, sobretudo pelo CNPq, CAPES e Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs), e pelos pesquisadores da área. A grande vantagem de tal modelo é atender às necessidades de conhecimento do sistema e, ao mesmo tempo, integrar os diversos atores à discussão, desde o estabelecimento daquilo que é necessário conhecer até a definição dos produtos que precisam ser entregues ao final do processo.

Do mesmo modo, penso que tal política poderia incentivar e significar uma maior aproximação dos pesquisadores da área da educação com as necessidades de conhecimento e de formação da educação básica. Dizer isso, não significa desconhecer a relação muito próxima que muitos programas e/ou pesquisadores mantêm com a escola básica. Mas significa, sim, dizer que essa relação pode ganhar em organicidade e institucionalidade se baseada numa política.

Um exemplo de relação mais institucional com a escola básica e seus professores poderia estar na divulgação das pesquisas realizadas pelos alunos e pesquisadores. Hoje, apesar do grande número de pesquisadores e da existência de várias instituições de pesquisa que os congregam, não temos uma revista de grande circulação e reconhecimento que dialogue diretamente com os docentes da educação básica. Mantemos centenas de revistas acadêmicas e, ainda, escrevemos para as muitas revistas de divulgação hoje, quase todas publicadas e vendidas por empresas privadas.

Finalmente, mas não menos importante, uma política de pesquisa e de formação poderia dar uma atenção sistêmica à questão da formação de professores pós-graduados para trabalhar na escola básica. Dizer, como já se disse acima, que o abandono da escola básica pelos mestres e doutores formados em nossos programas não pode ser debitada em nossa responsabilidade, não quer dizer que não haja, aqui também, problemas a ser enfrentados. Se, como sempre nos lembra o nosso colega Eduardo Mortimer, "quem pode mais pode menos", é preciso lembrar também que, contradizendo o dito quase popular, nem sempre saber é poder.

É preciso que reconheçamos que nem sempre nossos cursos de mestrado e doutorado, tal como funcionam, são os melhores lugares para a formação docente (nem da educação básica, nem do ensino superior, diga-se de passagem). Do mesmo modo, poderíamos nos perguntar se nossa relutância em aceitar os mestrados profissionais não se assenta, ela também, na peculiar forma de interditar a colaboração mais igualitária com nossos colegas da escola básica.

Assim como não é possível reduzir a experiência docente àquilo que nossas pesquisas e nossos discursos (e todos os discursos!) dizem dela, é preciso também reconhecer que as necessidades de formação dos professores (e gestores) da escola básica ultrapassam, em muito, aquilo que podemos oferecer em nossos mestrados e doutorados acadêmicos. E isso não é por defeito de nossos programas, mas sim por compreender a natureza distinta das experiências e das práticas epistêmicas por meio das quais a elaboração da pesquisa e o que fazer da sala de aula se articulam, ou, dizendo de outra forma, os repertórios dos pesquisadores e dos professores nem sempre são equivalentes e/ou intercambiáveis.

Reconhecer e levar em conta também essa distância é fundamental para não reduzirmos o ensino àquilo que nossas pesquisas dizem que ele é e para não reforçarmos a ideia de que somente bons pesquisadores podem ser bons professores, o que é uma grande falácia. Em ambos os casos estaríamos sob a égide das pesquisas e, do meu ponto de vista, prestando um péssimo serviço à escola básica e aos nossos colegas professores que nela trabalham.

Como já se disse, a comunidade de pesquisa em educação reúne mais de 22 mil pesquisadores, isso sem contar os alunos de graduação e pós-graduação, segundo os dados do CNPq, constituindo-se na maior área acadêmica de todo o sistema de pesquisa e pós-graduação do país e uma das maiores do mundo. Em nossa área são defendidas milhares de teses e dissertações todo ano, as quais se somam as investigações dos próprios orientadores e demais professores que nelas atuam.

Tais investigações, somadas àquelas já realizadas ao longo das últimas décadas, permitem-nos o conhecimento aprofundado e pormenorizado dos mais variados aspectos da educação brasileira. Por meio de uma complexa rede de divulgação, acadêmica ou não, tais conhecimentos têm sido disseminados para o conjunto do sistema educativo, contribuindo para a melhoria das políticas e das práticas educacionais em todo o país. Do mesmo modo, tais conhecimentos têm constituído suporte fundamental para a formação de professores, gestores e demais participantes da comunicação escolar brasileira.

Se a nossa interlocução com os professores da educação básica, sobretudo por meio das mais variadas práticas de formação, e com a comunidade acadêmica da educação, por intermédio de uma extensa rede de periódicos, está bem estabelecida, ainda é pequena nossa intervenção no espaço público de disputa pelos sentidos da educação.

Observamos que nossas pesquisas demonstram que o espaço público é o lugar de produção e divulgação de representações concorrentes sobre as mais diversas dimensões do fenômeno educativo escolar. Sabemos, também, que tais representações estruturam políticas e justificam ações dos sujeitos que aí atuam. Apesar disso, nossa participação na divulgação do conhecimento produzido por nossas pesquisas e, mesmo, de nossas opiniões sobre a escola para o público mais amplo do que aquele que atua na graduação e pós-graduação é muito pequena.

Outro grande desafio posto pela nossa relação com os nossos colegas da escola básica é de ordem ética. Essa é uma questão que não é nova e que já vem sendo considerada esporadicamente em nossas discussões. Não quero, aqui, chamar a atenção especificamente para a dimensão ética da pesquisa com (ou entre) seres humanos. Essa discussão tem sido enfrentada por todos nós na prática da pesquisa e pelos nossos representantes no interior do questionamento organizado de que é alvo a regulação da Comissão Nacional de Ética na Pesquisa, abrigada no Ministério da Saúde.

Minha questão é outra, trata-se de um convite para nos debruçarmos sobre duas dimensões menos explicitadas em nossas relações de pesquisa com os nossos colegas docentes da educação básica: a questão da autoria e a relação entre o conhecimento acadêmico e as políticas públicas.

No primeiro caso, apesar de considerarmos, entre nós professores (ou pesquisadores) universitários (ou acadêmicos), que a autoria, tal como esta foi produzida e reconhecida em diversos campos nos dois últimos séculos, é uma forma singular de reconhecimento, ainda hoje pouco nos mobilizamos para discutir (e reconhecer) a dimensão de autoria que nossos colegas da escola básica têm em nossos trabalhos. Ao fazermos isso, estamos nos negando também a discutir e a instituir práticas de autoria desses colegas, as quais são, sempre, como sabemos, práticas de reconhecimento social e, logo, de empoderamento político. Esse é, penso, um desafio para nossa área, inclusive porque temos dificuldades até para discutir as práticas de coautoria que ocorrem seja entre nós, colegas professores universitários, seja com nossos alunos.

Mas a questão é mais complexa. Se a autoria é uma forma por excelência de reconhecimento, qual poderia ser o nosso papel, como pesquisadores, para incentivar e reconhecer as práticas de autoria autonomamente desenvolvidas pelos nossos colegas da escola básica? Não estaria aí uma estratégia importante de reconhecimento e empoderamento dos professores da escola básica? Não seria essa uma estratégia importante de reestabelecimento de uma relação de novo tipo com o conhecimento e com o conhecer por parte desses nossos colegas? Não estaria aí, também, uma boa oportunidade para o reconhecimento da relatividade dos nossos conhecimentos e dos nossos modos de conhecer universitários ou acadêmicos?

Esse último questionamento me leva à relação entre os conhecimentos acadêmicos por nós produzidos e manejados e as políticas públicas para a educação.

No início de minha exposição eu fiz um elogio à nossa sapiência no terreno da educação. Muito sabemos, mas, infelizmente, as políticas pouco incorporam aquilo que foi e é produzido. Elas fazem, e de forma exagerada, um elogio à ignorância!

Mas, por outro lado, poderíamos perguntar também: foram, são e serão boas as políticas práticas baseadas em nossos conhecimentos e em nossos modos de conhecer? Eu não tenho dúvida do compromisso de nossos pesquisadores e alunos com a escola básica, com seu melhor funcionamento e com sua qualidade. Mas não tenho dúvida, também, de que há variáveis importantes que condicionam os nossos modos de conhecer e, portanto, nossos conhecimentos, que interpõem barreiras importantes na sua utilização para dar suporte às práticas e às políticas educacionais.

Uma delas é, por exemplo, a distância que separa os professores e pesquisadores universitários, suas condições de vida e trabalho, daqueles que se dedicam à educação básica, sobretudo na rede pública. Tal distância, produzida historicamente, é continuamente atualizada, inclusive pelo investimento de muitos colegas, nas desigualdades quanto ao reconhecimento, ao salário, à formação, às condições de trabalho, entre outros aspectos. Tais aspectos, muitas vezes, levam, inclusive, a enormes dificuldades de reconhecimento do nosso destino comum: não por acaso, não são poucas vezes que temos dificuldades de considerar os professores da educação básica como "nossos colegas".

Ora, o problema é que tal distância não é, e não pode ser, abolida pelo conhecimento. Daí, também, a falta de reconhecimento dos nossos pares sobre o conhecimento que produzimos sobre eles, suas práticas e suas escolas. Daí, talvez, a reiteração do discurso acerca da distância entre a universidade e a escola básica.

Um outro aspecto que eu gostaria de salientar trata-se do distanciamento dos professores e pesquisadores universitários em relação à escola básica como um direito, ou, dito de outra forma, de nossa recusa em sermos usuários da escola básica. Como sabemos, um dos grandes problemas que enfrentamos contemporaneamente no Brasil em relação à qualidade da escola básica pública é que as camadas sociais médias abriram mão do direito à educação pública no país, como, de resto, fizemos com a saúde e transporte públicos também.

Tal circunstância, no que se refere ao aspecto específico que quero aqui salientar, faz com que, em boa parte, sempre que falamos em mudar a escola pública estamos nos referindo a reformar a escola dos filhos dos outros, pois nossos filhos e filhas estão frequentando as escolas privadas. Pergunto-me, a esse respeito, se ficaríamos tão à vontade em aplicar nas escolas de nossos filhos aquilo que defendemos, a partir de nossos conhecimentos e opiniões, que deva ser aplicado à escola pública.

Finalmente, eu gostaria de chamar a atenção para outra dimensão dos efeitos nem sempre desejáveis dos conhecimentos e das práticas acadêmicas sobre as políticas educacionais e práticas docentes. Se, de um lado, é preciso pensar que os professores, nossos colegas, da escola básica são produtores de conhecimentos e sujeitos ativos na apropriação das discussões e conhecimentos propostos pelo mundo acadêmico, de outro, não podemos deixar de considerar o peso da universidade como lugar de enunciação.

Pergunto-me, por exemplo, se não temos levado para a escola certas questões, certas discussões, certos conflitos que são ótimos para movimentar a pesquisa, mas que são também desestabilizadores e desorganizadores da escola, quando não desmotivadores, quando incorporados como política educacional.

Se essa suspeita é minimamente fundada, há aqui uma dimensão ética fundamental sobre a qual deveríamos nos debruçar mais. Evidentemente que não se trata de questionamento in totum da possibilidade de que nossos conhecimentos, produzidos a partir de modos peculiares de conhecer, possam contribuir com a elevação da qualidade da escola básica pública. Definitivamente não é isso! Trata-se, isso sim, de nos questionarmos sobre os limites de nossos conhecimentos e, como diz o meu amigo Marcos Cezar Freitas, nos perguntarmos pelos grandes problemas trazidos, às vezes, pelas boas soluções que propomos. Assim como raramente aceitamos, por razões éticas inclusive, submeter nossos filhos e filhas a experiências de formação que consideramos negativas para eles, mesmo que isso vá contra as nossas convicções políticas (e por isso, por exemplo, nós os colocamos nas mais tradicionais instituições de ensino), estou convidando-os a pensar sobre a possibilidade de que nossos conhecimentos e convicções acerca da escola nem sempre são as melhores saídas para a escola pública.

Para terminar, gostaria de reiterar uma observação que fiz há poucos dias. Ela diz respeito à disputa pública pelo sentido da educação. Dentre os discursos que saturam o espaço público neste momento de eleições, o que remete à educação escolar é, sem dúvida, um dos mais eloquentes e onipresentes. Na disputa pelas mais diversas posições, e vindos de todos os recantos do país, os políticos falam da educação, defendem a educação, promovem a educação. Se a educação é a causa e o remédio de todos os nossos males, o que é mesmo a educação?

Importa lembrar, inicialmente, que esse "entusiasmo pela educação", para usar a consagrada expressão de Jorge Nagle, não é novo. Ele participou da fundação da nossa República e reverbera ao longo de nossa história. Sempre que se quer justificar as nossas imensas desigualdades socioeconômicas, por exemplo, há alguém para lembrar que ela se assenta na falta de educação dos nossos trabalhadores e que, por isso mesmo, a educação é nossa única saída.

Nessa defesa entusiasmada da importância da educação, os discursos não são, evidentemente, os mesmos. O que se observa é que há uma disputa pelos sentidos da educação no espaço público. Por debaixo da aparente homogeneidade, os discursos são instáveis, os sentidos são diversos e as racionalidades estão em conflito. Por isso, não são discursos vazios. A retórica, só aparentemente vazia desses discursos, produz representações que justificam e sustentam intervenções em curso ou que, como sempre, estão por ser feitas na educação.

É claro que seria querer demais que nossos políticos profissionais lessem o Jorge Nagle! No entanto, talvez os milhares de pesquisadores da área de educação pudessem contribuir para tornar o debate político sobre a educação mais esclarecedor. Se, infelizmente, as campanhas dos candidatos, capturadas pelas estratégias de marketing, não podem dizer coisas muito inteligentes e, muito menos, complexas sobre o tema, resta-nos aumentar o diálogo com a população.

Disputar os sentidos da educação no espaço público é uma tarefa que se impõe a todos aqueles que se interessam pelo futuro da democracia, pela constituição de um estado laico e pela contribuição da escola aos projetos de um país mais diverso, mais igualitário, mais desenvolvido e mais democrático. Nessa disputa, está em jogo não apenas o reconhecimento das potências da educação escolar, mas também, em alguns casos, da sua impotência.

Subverter o discurso de que a educação escolar é a causa e a solução de todos os nossos males, demonstrando sua falácia e sua retórica interessada, é uma tarefa que se impõe a todas as pessoas honestas de nosso tempo. Mas, aos pesquisadores e profissionais da educação ela se impõe também para além destes tempos de tensionamento democrático do espaço público. A eles ela se impõe o tempo todo, inclusive como forma de liberar a educação escolar e, por conseguinte, seus profissionais de uma responsabilidade que eles nunca poderão cumprir. Resta saber se, como queria W. Benjamin, teremos coragem e disposição para escovar a história a contrapelo.

  • 1
    Conferência de Abertura proferida no 11º Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. São João Del Rei, 12 de outubro de 2014.
  • 2
    Cf. PESSANHA, José Américo Motta. Filosofia e modernidade: racionalidade, imaginação e ética. Cadernos ANPEd, Porto Alegre, n. 4, p. 7-36, 1993.
  • 3
    Lembremo-nos de que "navegar é preciso; viver não é preciso", como precisava Fernando Pessoa.
  • 4
    Numa sessão em que estivemos apenas o Lúcio Kreutz e eu, que éramos os apresentadores, e ninguém mais! Talvez por isso mesmo, solidários desde a primeira hora nesse infortúnio comum, tenhamos desenvolvido uma grande parceria e amizade que dura toda uma vida!
  • *
    Formado em Pedagogia, é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Diretor do Centro de Pesquisa, Memória e Documentação da FAE/UFMG. Coordenador do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil - 1822/2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2015
  • Aceito
    25 Jun 2015
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