Acessibilidade / Reportar erro

ENEM: FERRAMENTA DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/2003 - COMPETÊNCIAS PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL?

RESUMO:

Neste artigo busca-se analisar como as questões do ENEM abordam os conteúdos da Lei 10.639/2003. Adotamos a análise de conteúdos para avaliar as provas do ENEM. Foram analisadas 1.098 questões (provas entre os anos de 2003 a 2012), sendo que ao todo houve 69 questões abordando a temática e destas: 14 questões apresentam conteúdo que reproduz estereótipos sobre a África e/ou os negros/as; 4 apresentam conteúdo baseado na ideia de democracia racial; 20 apresentam conteúdo que valoriza explicitamente a cultura africana ou afro-brasileira, a África e/ou os negros/as; 8 questões apresentam visões positivas e negativas sobre a África e/ou os negros/as, oferecendo elementos que permitem a contraposição entre elas e a reflexão a seu respeito; 23 colocam conteúdos que não apresentam juízos de valor explícitos sobre a África e/ou os negros/as.

Palavras-chave:
Brasil; Lei 10.639/2003; ENEM; Educação.

ABSTRACT:

This article seeks to analyze how ENEM questions address the Law 10.639/2003's content. We adopted content analysis to evaluate National High School Exam's tests. 1.098 questions were analyzed (tests from years 2003 to 2012). We concluded that there were 69 questions addressing the content from Law 10.639/2003: 14 questions have content that reproduce stereotypes about Africa and/or black people; 4 show content based on the idea of racial democracy; 20 show content that explicitly values. African or African-Brazilian culture, Africa and/or black people; 8 questions have positive and negative views on Africa and/or black people, offering elements that allow the contrast between them and reflection about race; 23 of the test's questions have no explicit value judgment on Africa and/or black people.

Keywords:
Brazil; Law 10.639/2003; ESMS; Education.

Introdução

Um dos principais campos de luta pela Educação no Brasil tem sido o da elaboração de leis. Textos legais são frutos de processos, e embates e disputas, por vezes realizados no decorrer de longos períodos, por diversos grupos organizados da sociedade, em torno de múltiplos interesses. Sua aprovação, portanto, significa ao mesmo tempo o ápice de um processo de luta pelo estabelecimento de determinadas ideias, já que declarar algo como direito é reconhecê-lo politicamente, e a indispensável continuidade do percurso de busca por sua plena realização no cotidiano das instituições e das relações humanas, incluindo sua problematização e revisão1 1 Neste artigo o debate será em torno da lei 10.639/2013; dos Relatórios da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. (BRASIL, 2005) e do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana (BRASIL, 2009). Sobre cada uma das políticas públicas e seu histórico e processo de implementação no Brasil, consultar Sanchez (2014). .

Nesse contexto, a pesquisa teve como objetivo identificar, mapear e analisar as questões do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) na perspectiva do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), modificado pela Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas públicas e privadas dos Ensinos Fundamental e Médio do país (BRASIL, 2003BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Lex: Diário Oficial da União, Câmara dos Deputados, Brasília/DF, Seção 1, p. 1, 10 janeiro 2003.). O artigo 26-A da LDB (modificado pela Lei 10.639/2003 e posteriormente pela Lei 11.645/08), a Resolução do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno (CNE/CP) 1/2004, que aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana . Brasília, DF: SECAD/MEC, 2009.), e o Parecer CNE/CP 03/2004, que fundamenta as diretrizes curriculares, segundo a Apresentação do Dossiê "Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas2" (SILVA; GOMES; ARAÚJO, 2013SILVA, P. V. B; GOMES, N. L.; ARAUJO, Débora C. Apresentação. Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas. Educar em Revista , Curitiba/PR n. 47, p. 35-50 2013.),

compõem um conjunto de dispositivos legais considerados como indutores de uma política educacional voltada para a afirmação da diversidade cultural e da concretização de uma Educação das Relações Étnico-Raciais nas escolas, desencadeada a partir dos anos 2000. Tanto a legislação quanto seus dispositivos carreiam o imperativo de uma mudança estrutural e simbólica, abrangendo a adoção de princípios afirmativos pelas instituições educacionais, tais como o reconhecimento da diversidade cultural e da desigual distribuição de oportunidades sociais entre diversos segmentos e grupos da população, a disposição positiva para a convivência democrática entre grupos e culturas e a efetivação da paridade de direitos sociais (SILVA; GOMES; ARAÚJO, 2013SILVA, P. V. B; GOMES, N. L.; ARAUJO, Débora C. Apresentação. Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas. Educar em Revista , Curitiba/PR n. 47, p. 35-50 2013., p. 15).

A aprovação e a implementação dessa legislação, fruto das pressões sociais e proposições do movimento negro brasileiro, apontam avanços na efetivação de direitos sociais educacionais e implica o reconhecimento da necessidade de superação de imaginários, representações sociais, discursos e práticas racistas na educação escolar.

Implica, também, uma postura estatal de intervenção e construção de uma política educacional que leve em consideração a diversidade e que se contrapõe à presença do racismo e de seus efeitos, seja na política educacional mais ampla, na organização e funcionamento da educação escolar, nos currículos da formação inicial e continuada de professores, nas práticas pedagógicas e nas relações sociais na escola (GOMES; JESUS, 2013GOMES, Nilma G.; JESUS, Rodrigo E. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa. Dossiê "Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas". Educar em Revista , Curitiba/PR, n. 47, p. 19-33 2013., p. 22).

O presente artigo busca compreender como as questões do ENEM abordam as relações étnico-raciais a partir dos dispositivos legais da política educacional voltada para a afirmação da diversidade cultural e da educação das relações étnico-raciais.

O ENEM foi criado em 1998 "{...} com o objetivo de auto avaliação, de ser referência nacional para os egressos do Ensino Médio e de fornecer subsídios para o acesso à educação superior e a cursos profissionalizantes pós-médio" (ROTHEN; BARREYRO, 2011ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B. Avaliação da educação. In: ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B.(Org.). Avaliação da educação: diferentes abordagens críticas. São Paulo: Xamã, 2011., p. 12). O exame foi, aos poucos, adquirindo novos significados sociais. Cerri (2004CERRI, Luis Fernando. Saberes históricos diante da avaliação do ensino: notas sobre os conteúdos de história nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM. Revista Brasileira de História , São Paulo, n. 48, p. 213-231, 2004.) o aponta como fator de organização do currículo do Ensino Médio. Isso se dá porque ele se tornou uma referência para processos seletivos para ingresso em cursos superiores e para vagas de emprego, substituindo-os ou complementando-os (SOUSA, 2011SOUSA, J. V. de. Políticas de acesso à educação superior no Brasil: o Enem no centro do debate. In: ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B. (Org.). Avaliação da educação: diferentes abordagens críticas. São Paulo: Xamã, 2011. p. 30-42). No ano de 2005, com a institucionalização, pelo Governo Federal, do Programa Universidade para Todos, a seleção para bolsas de estudos parciais ou integrais em instituições privadas de Ensino Superior mediada pelo referido programa passou a utilizar os resultados do ENEM como critério de seleção. Em 2008, o ENEM também foi adotado como forma de seleção para o ingresso em universidades federais (SOUSA, 2011SOUSA, J. V. de. Políticas de acesso à educação superior no Brasil: o Enem no centro do debate. In: ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B. (Org.). Avaliação da educação: diferentes abordagens críticas. São Paulo: Xamã, 2011. p. 30-42).

Até o ano de 2008, o ENEM era composto por uma redação e sessenta e três questões objetivas, as quais não eram separadas por área de conhecimento. Em 2009 foi implantado o chamado Novo Enem, que manteve a redação e passou a contemplar cento e oitenta questões divididas uniformemente entre quatro áreas do conhecimento: Linguagens, códigos e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas e suas tecnologias. O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, de 2009 (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana . Brasília, DF: SECAD/MEC, 2009.), prevê, entre as ações voltadas para o Ensino Médio, a inclusão da temática de História e Cultura Africana, Afrobrasileira e Indígena entre os conteúdos avaliados pelo ENEM.

Esses conteúdos da avaliação estão pautados nas habilidades instrumentais e competências cognitivas instituídas, por meio de itens da Portaria Ministerial n. 318 de 22/02/2001 (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n. 318, de 22 de fevereiro de 2001. Dispõe sobre o Exame Nacional do Ensino Médio. Diário Oficial da União , Brasília, 23 fev. 2001. Seção XX, p. xx.) como matriz de referência para o ENEM. Esses itens não abordam a História e Cultura Africana e Afro-brasileira, mas referem-se de forma direta a conteúdos relacionados à Educação das Relações Étnico-raciais em três momentos: quando estipulam que se considere a diversidade cultural na elaboração de propostas de intervenção na realidade e nas soluções a problemas apresentados; no artigo 2º, parágrafo 1º, item V, e parágrafo 3º, item V; e quando determinam a aferição da seguinte habilidade (artigo 2º, parágrafo 2º, item XVIII): "Valorizar a diversidade dos patrimônios etnoculturais e artísticos, identificando-a em suas manifestações e representações em diversas sociedades, épocas e lugares" (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n. 318, de 22 de fevereiro de 2001. Dispõe sobre o Exame Nacional do Ensino Médio. Diário Oficial da União , Brasília, 23 fev. 2001. Seção XX, p. xx.).

Além disso, é possível identificar diversos itens em que a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira poderão ser contempladas, embora essa referência não seja explícita. Apenas para ilustrar essa informação, citamos o artigo 2º, parágrafo 2º, item VI, que, entre outras questões, preconiza a habilidade de "identificar marcas de variantes linguísticas de natureza sociocultural {...}" (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n. 318, de 22 de fevereiro de 2001. Dispõe sobre o Exame Nacional do Ensino Médio. Diário Oficial da União , Brasília, 23 fev. 2001. Seção XX, p. xx.).

Ao avaliarmos esse documento, supomos que o ENEM proporcione um espaço para a abordagem das temáticas inseridas no currículo escolar oficial pela Lei 10.639/2003, pela abrangência das competências e habilidades elencadas para essa avaliação, pela presença de conteúdos que não se limitam às áreas de Língua Portuguesa e Matemática, como ocorre em inúmeras avaliações em larga escala realizadas no Brasil, e por contemplar a elaboração de uma redação. Acreditamos que o que tem determinado a presença ou a ausência de tais conteúdos e a forma de sua abordagem são as concepções e vontades políticas que movem seus organizadores e articuladores (SANCHEZ, 2014SANCHEZ, L. P. O ENEM como ferramenta de implementação da Lei 10.639/2003 - competências e habilidades para a transformação social? 2014. 167 f. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação Política) - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2014.).

Por meio desse olhar, pretendemos compreender em que intensidade e de que maneira a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Lex: Diário Oficial da União, Câmara dos Deputados, Brasília/DF, Seção 1, p. 1, 10 janeiro 2003.) está vinculada à política de avaliação da Educação Básica no Brasil, influenciando-se mutuamente, tendo em vista que identificamos a coesão entre as diversas políticas públicas como fator que pode trazer consequências positivas à qualidade da implementação de determinada política e evidenciar seu efetivo grau de integração ao sistema educacional.

A Lei 10.639/2003 é representativa como conquista democrática por ser fruto de uma longa história de lutas das populações negras pela igualdade de direitos e representar o reconhecimento - ao menos do ponto de vista legal - da contribuição da população africana e afrodescendente para a formação do Brasil.

Essa legislação questiona um dos campos de maior disputa político-ideológica na área educacional - o currículo oficial (CERRI, 2006CERRI, Luis Fernando. Usos públicos da história no Brasil contemporâneo: demandas sociais e políticas de Estado. Araucaria: Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades , Sevilla/Espanha, n. 15, p. 3-19, 2006.; GONSALVES, 2008GONSALVES, L. R. D. Currículo multicultural e educação étnico-racial: proposta de narrativa racial. In: PAULA, B. X. de; PERON, C.M. R. de. Educação, história e cultura da África e Afro-brasileira: teorias e experiências. Uberlândia, MG: Proex UFU, 2008.). Vemos o currículo como âmbito de construção política de representações oficialmente aceitas de mundo, de sociedade, de pessoas, de conteúdos os quais se entende que todo cidadão brasileiro deva apropriar-se. Dessa forma, entendemos que a legislação aqui estudada representa um movimento de tensionamento rumo à democratização do currículo e da própria escola, pois possibilita que populações menos visíveis e valorizadas nessa instituição e em suas práticas sociais sejam reconhecidas com suas histórias, tomem voz, participem ativamente das constantes construção e reconstrução do cotidiano escolar.

Adotamos a técnica de análise de conteúdos, por meio da qual analisamos as provas aplicadas pelo ENEM durante os dez primeiros anos de vigência da Lei 10.639/2003. As categorias delimitadas para essa análise foram: presença, relevância e abrangência dos conteúdos, superação da ideia de democracia racial e dos estereótipos sobre a população negra, discussão interdisciplinar dos conteúdos. A análise de tais categorias foi realizada tanto nas questões objetivas quanto nas questões dissertativas das avaliações.

Análise de conteúdo - técnica para coleta e análise de dados

Para olhar para as provas do ENEM, sob a perspectiva da Lei 10.639/2003 e de suas regulamentações posteriores, optamos por utilizar a técnica da análise de conteúdo, pois esta permite selecionar e interpretar dados de nosso interesse de modo que nos auxiliem na compreensão das questões suscitadas tanto pelo estudo prévio da temática quanto pela própria observação da estrutura e dos conteúdos do texto analisado.

Seguimos as etapas definidas por Bardin (2009BARDIN, L. Análise de conteúdo . Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.). Descrevemos a seguir o percurso trilhado nessa análise, que, na realidade, não foi tão linear, pois ao longo de seu desenvolvimento a execução de diferentes etapas foi se mesclando, permitindo retomadas e aperfeiçoamentos. Apenas o ordenamos de forma a permitir compreender escolhas realizadas no processo de análise, as suas motivações e implicações na maneira como os dados foram interpretados. Outros inúmeros olhares poderiam ter sido adotados, evidenciando diferentes perspectivas de análise.

Inicialmente, definimos nossas questões, aquilo que pretendíamos discutir e porventura responder por meio da análise das avaliações. São elas: As provas tratam a respeito das temáticas introduzidas pela lei? Se sim, qual a relevância desse tratamento em relação à ênfase dada aos demais conteúdos? De que forma as temáticas relativas à Educação das Relações Étnico-raciais são abordadas? Essas abordagens conseguem superar as ideias de democracia racial e os estereótipos sobre a população negra? A que disciplinas estão relacionadas? É feita uma discussão desses conteúdos de forma interdisciplinar, sem limitar-se às áreas de Literatura, História e Artes?

Em seguida, selecionamos os textos que seriam objetos de nossa análise. Conforme já apontado, procuramos as avaliações em larga escala da Educação Básica no Brasil. Optamos pelo ENEM, por ser a mais ampla e abrangente avaliação desse tipo, contemplando todos os ciclos da Educação Básica por realizar-se em sua etapa final. O ENEM é promovido em âmbito federal, em todo o território nacional, mantendo o padrão adotado ao longo desta pesquisa na delimitação de escopos para a investigação. O período adotado foi entre os anos 2003 e 2012.

Nossa amostra inicial era composta por dezesseis avaliações do ENEM, sendo que seis delas, referentes aos anos de 2003BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2003 . Brasília,DF: INEP, Fundação CESGRANRIO, 2003. a 2008, continham sessenta e três questões cada, sem divisões por área de conhecimento, numa proposta interdisciplinar. Outras dez provas do ENEM, quatro relativas ao ano de 2010, e duas provas relacionadas a cada um dos anos de 2009, 2011 e 2012BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Conteúdo das provas . Brasília/DF: INEP, {20---}.s.d, completavam o quadro3 3 A existência de um número maior de avaliações em 2010 é explicada pela reaplicação das provas que ocorreu nessa ocasião, devido a falhas operacionais na execução do exame que acabaram acarretando o vazamento de respostas às questões e sua consequente invalidação. Optamos por analisar, nesse caso, apenas as provas utilizadas na segunda aplicação, dado que os resultados destas é que foram adotados oficialmente para todos os fins. Cabe apontar ainda que a existência de duas provas em cada um dos anos de 2009 a 2012 deve-se ao aumento do número de questões e à consequente necessidade de dividir a execução da avaliação em dois dias. Para efeitos desta pesquisa, unificamos as duas provas, que representam uma avaliação por ano, portanto. Elas são compostas por 180 questões, sendo 45 de cada uma das seguintes áreas de conhecimento: Linguagens, códigos e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas e suas tecnologias. .

Dessa forma, a amostra final de textos resultou em dez avaliações do ENEM, tendo sido analisadas 1.098 questões.

Na definição da unidade de contexto, em que se delimita o contexto do qual a mensagem veiculada faz parte, analisamos o histórico das provas e suas características. Enfatizamos aqui que nossas principais preocupações nesse sentido foram que o universo contemplado em nossa análise estivesse inserido no contexto de vigência da Lei 10.639/2003 e que ele fosse abrangente e representativo, tanto no que diz respeito a contemplar toda a Educação Básica, quanto relativamente ao universo de estudantes por ele atingidos.

Na fase de pré-análise do material já assim delimitado, fizemos algumas leituras em busca de selecionar seus trechos significativos, ou seja, as questões objetivas e propostas de redação que dissessem respeito a conteúdos de Cultura e História Africana e Afro-brasileira e de relações étnico-raciais especificamente relacionadas à população negra.

De acordo com as perguntas de pesquisa e com o escopo de questões selecionado, estabelecemos alguns critérios para direcionar nossa análise e, a partir deles, definimos categorias nas quais pudéssemos agrupar os elementos com características comuns ou relacionadas entre si. Esses critérios e categorias são apresentados no Quadro 1, juntamente com as numerações e siglas criadas para facilitar, posteriormente, o seu registro.

Utilizamos o Quadro 1 como base para categorizar cada questão relativa às temáticas da Lei 10.639/2003. Tal categorização, somada à apresentação de informações quantitativas a respeito dessas questões, foi registrada e organizada por meio do Quadro 2, para facilitar sua visualização e posterior interpretação.

Quadro 1
Critérios e categorias - questões relacionadas à Cultura e História Africana e Afro-brasileira e às relações étnico-raciais - população negra - ENEM 2003 a 2012

Quadro 2
Categorização - questões relacionadas à Cultura e História Africana e Afro-brasileira e às relações étnico-raciais - população negra - ENEM 2003 a 2012

Quadro 2
(Continuação) Categorização - questões relacionadas à Cultura e História Africana e Afro-brasileira e às relações étnico-raciais - população negra - ENEM 2003 a

A seguir apresentamos e interpretamos os resultados dessa análise, procurando responder, ou ao menos discutir, as questões inicialmente propostas. Os dados foram tratados, portanto, de forma a subsidiar tal debate.

Resultados e discussão

Das 69 questões que possuem alguma relação com a temática: 14 questões apresentam conteúdo que reproduz estereótipos sobre a África e/ou os/as negros/as; 4 apresentam conteúdo baseado na ideia de democracia racial; 20 apresentam conteúdo que valoriza explicitamente a cultura africana ou afro-brasileira, a África e/ou os/as negros/as; 8 questões apresentam visões positivas e negativas sobre a África e/ou os/as negros/as, oferecendo elementos que permitem a contraposição entre elas e a reflexão a seu respeito; 23 não apresentam juízos de valor explícitos sobre a África e/ou os/as negros/as. A partir desse universo, escolhemos as questões que mais nos impactaram sobre o conteúdo em análise, para posteriores análises e discussões sobre a abordagem adotada4.

O ENEM introduziu temáticas relacionadas à cultura e história negra em suas provas, aperfeiçoando lentamente a qualidade dessa inserção. Observamos que as imagens - desenhos, fotos, ilustrações, pinturas, esculturas, etc., retratam, sobretudo, figuras brancas, e que aquelas que se referem a pessoas negras trazem recorrentemente a temática do trabalho escravo.

Entendemos que a escravidão seja de fato uma temática importante da história brasileira, pela sua longa duração e por todas as implicações que tem em nossa realidade social até os dias atuais. Falar sobre ela possibilita, inclusive, expor a realidade de exploração e desrespeito aos seres humanos que a ela foram submetidos, evidenciando as desigualdades sociais como efeitos dessa violência centenária, com implicações raciais, e, assim, possibilitando a compreensão da necessidade de reparação de tais injustiças. No entanto, cremos que a violência e o racismo que marcaram as relações escravistas, bem como a resistência da população escravizada a eles, não estejam sendo devidamente explorados pelas provas. Entendemos, ainda, que outras imagens e referências a pessoas negras devam ser introduzidas nas avaliações.

A seguir apresentamos excertos de duas questões do ENEM que ilustram nossas colocações.

A primeira delas trata-se de um quadro de autoria do pintor francês Jean-Baptiste Debret retratando a escravidão. O conteúdo da questão não traz qualquer problematização a respeito da imagem ou da temática.

Figura 1
Pintura de Jean-Baptiste Debret

O segundo excerto foi retirado da Questão 48 da avaliação do ano de 2003. Novamente trata-se da escravidão, trazendo citações do filósofo francês Montesquieu que a retrata como mera consequência de necessidades econômicas, atribuindo a degradação do escravocrata às más influências dos escravizados, incapazes de realizar progressos morais.

Nem a questão aqui retratada, nem as demais questões da avaliação desse ano oferecem qualquer contraponto a essa visão.

Assim apresenta-se o trecho selecionado:

A escravidão não é boa por natureza; não é útil nem ao senhor, nem ao escravo: a este porque nada pode fazer por virtude; àquele, porque contrai com seus escravos toda sorte de maus hábitos e se acostuma insensivelmente a faltar contra todas as virtudes morais: torna-se orgulhoso, brusco, duro, colérico, voluptuoso, cruel.

Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de tornar escravos os negros, eis o que eu diria: tendo os povos da Europa exterminado os da América, tiveram que escravizar os da África para utilizá-los para abrir tantas terras. O açúcar seria muito caro se não fizéssemos que escravos cultivassem a planta que o produz (BRASIL, 2003, p. 16).

Assim, julgamos que as provas pecam, por contemplarem de forma precária "{...} saberes que levam os alunos a tomarem conhecimento da sua condição na sociedade e a perceberem a possibilidade de desconstruir as desigualdades raciais historicamente construídas" (OLIVEIRA, 2003OLIVEIRA, I. de. A prática pedagógica de especialistas em relações raciais e educação. In: OLIVEIRA, I. de (Org.). Relações raciais e educação: novos desafios. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 54-68, p. 113).

Identificamos que essa característica começa a ser modificada a partir da avaliação realizada no ano de 2009. Nesta e nas provas subsequentes, verificamos o incremento do tratamento positivo à história e à cultura negras, à sua produção cultural e intelectual, da aparição de algumas vozes negras, da possibilidade de problematização de temas como a escravidão, a democracia racial, o racismo. E, por fim, verificamos a importante presença - antes negligenciada - de questões fazendo referências às lutas e movimentos de resistência negra no Brasil e no mundo.

Data do mesmo ano a promulgação do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que estipula a inclusão da temática de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nos conteúdos avaliados pelo ENEM. Acreditamos que esse acontecimento também tenha influenciado a maior atenção dos elaboradores das provas para tais questões.

Outro fator que chamou nossa atenção foi a presença de temáticas relacionadas às relações étnico-raciais e cultura negra em todas as provas de Inglês, disciplina que começou a ser contemplada pelo ENEM no ano de 2010 e que contém, a cada ano, apenas cinco questões.

Em 2010, uma questão abordou o Hip Hop em sua origem norte-americana, contemplando também sua abordagem no Brasil5 5 Prova de 2010, Questão 93 - Inglês (BRASIL, 2010). . Em 2011 e 2012, foi retratada a problemática do racismo, sendo que no primeiro ano foi usada uma letra de música de Bob Marley, artista jamaicano, relacionando a existência das guerras às práticas racistas e, no segundo, um poema de autoria de Langston Hughes, poeta negro dos Estados Unidos6 6 Prova de 2011, Questão 94 - Inglês; Prova de 2012, Questão 94 - inglês. (BRASIL, 2011, 2012)

Há, portanto, uma proporção muito maior de questões relacionadas às temáticas implantadas no currículo pela Lei 10.639/2003 no âmbito da avaliação de Inglês do que em qualquer outra disciplina. As três questões citadas trazem visões positivas e críticas a respeito do negro e da África, e em todas elas a temática racial é central e/ou sua compreensão é necessária para a resolução da questão.

Consideradas no contexto geral das avaliações, entendemos que essas questões podem significar um reforço à ideia de que existe democracia racial no Brasil. Isto porque elas demonstram claramente a realidade de racismo e dos conflitos raciais em outros países, sobretudo nos Estados Unidos, e também apontam a mobilização das populações negras dessas nações em torno da crítica e do combate a tais posicionamentos. Essa explicitação não ocorre com tamanha frequência e ênfase quando se trata da constatação do racismo e da existência da luta contra ele no contexto brasileiro. Questões que se referem a essas lutas chegam a aparecer nas avaliações sem apontar as implicações raciais que delas fizeram ou das quais fazem parte. São exemplos disso a Questão 24, da prova de 2010, que trata a respeito da Conjuração Baiana, ou Revolta dos Alfaiates, cujas reivindicações incluíam uma proposta de abolição da escravidão e a participação das camadas populares, não citadas no ENEM, e a Questão 18 da prova de 2012, que explora o Movimento das quebradeiras de coco-babaçu sem mencionar o caráter racial de suas lutas.

Como se pode inferir a partir dos comentários já tecidos acima, as provas do ENEM tratam, portanto, a respeito das temáticas introduzidas pela Lei 10.639/2003. Não compreendemos, no entanto, que esse tratamento englobe, no conjunto das provas, todas as nuances das temáticas, já apresentadas na própria Lei, em sua profundidade e abrangência - o estudo da História da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira, do negro na formação da sociedade nacional, com o resgate da sua contribuição nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

Apenas 35 questões (das 69) abordaram conteúdos das temáticas da Lei 10.639/2003 de maneira que eles fossem centrais na questão e/ou necessários para a sua resolução. Exemplo: a Questão 31 de 2010 traz como texto-base a letra da música "O mestre-sala dos mares", de João Bosco, que retrata a Revolta da Chibata e, de forma positiva, a liderança do marinheiro negro João Cândido nesse movimento revolucionário. Nessa questão, pergunta-se qual o conteúdo de tal movimento, sendo a alternativa correta: "D. a rebelião dos marinheiros, negros e mulatos, em 1910, contra os castigos e as condições de trabalho na Marinha de Guerra" (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2010 . Segunda aplicação. Brasília/DF: INEP, 2010., p. 9).

As outras 34 questões apresentam informações sobre a Cultura, História e relações étnico-raciais negras de maneira apenas ilustrativa. Quatro questões desse tipo referem-se, por exemplo, a recursos energéticos, sobretudo o petróleo, citando suas origens africanas. São elas: a Questão 56, de 2003, a Questão 63, de 2004, a Questão 40, de 2005 e a Questão 83, de 2009. Suas resoluções implicam conhecimentos extrínsecos aos conteúdos de Cultura e História Africana e Afro-brasileira e das relações étnico-raciais relativas à população negra, envolvendo basicamente habilidades de interpretação de gráficos, tabelas e textos.

O Quadro 3 a seguir mostra de forma detalhada quais temáticas foram incluídas em cada uma das categorias analisada. Assim, o quadro permite uma visão geral do conteúdo das avaliações no que se refere à Lei 10.639/2003.

Quadro 3
Temáticas, segundo suas categorias - questões relacionadas a Cultura e História Africana e Afro-brasileira e às relações étnico-raciais - população negra - ENEM 2003 a 2012

A seguir apresentamos como essas temáticas se distribuem entre questões que abordam os conteúdos previstos para o currículo pela Lei 10.639/2003 como temas centrais e/ou necessários à sua resolução e aquelas em que tais conteúdos são secundários.

Quando se trata da África e do Brasil e o negro no ENEM, a escravidão nunca é tema secundário, mas é a segunda temática mais recorrente das provas. No total de ocorrências, a categoria mais presente é a dos aspectos culturais, com treze questões.

Verifica-se que oito questões não apresentam qualquer tipo de valorização, positiva ou negativa, a respeito da África e dos negros/as. Essa ausência é mais fortemente percebida, contudo, nas questões que trazem a temática pertinente à Lei 10.639/2003 apenas de forma secundária, sendo que apenas uma delas foge a essa regra. Trata-se da questão número 120 da prova do ano 2010. Essa questão aborda as escolas de samba, que fazem parte do repertório da cultura negra no Brasil. Em dezoito questões identificamos julgamento apenas negativo a respeito da cultura, história e relações étnico-raciais negras, sendo que quatro delas trazem, de forma subjacente, o ideário da democracia racial, e outras catorze apresentam algum estereótipo relacionado à população negra.

No que diz respeito à aparição da noção de democracia racial, embora existam poucas ocorrências, as consideramos significativas, visto que se trata de um ideário que tem trazido incompreensões a respeito de nossos conflitos e desigualdades raciais e, consequentemente, diversos prejuízos à população negra brasileira, além de ser uma tarefa publicamente definida para a Educação a de desconstruir tal ideário, e não enfatizá-lo ainda mais, sobretudo após a promulgação de legislações como a Lei 10.639/2003 e suas regulamentações. Agrava esse quadro o fato de duas delas estarem presentes em avaliação recente, do ano de 2011. As outras duas questões que contêm esse teor encontram-se nas avaliações de 2003 e 2004. Por sua importância, as descreveremos individualmente, a seguir.

A Questão 63, da prova de 2003, traz um arsenal de elementos que levam o estudante a diluir a questão racial na questão de classes, ao abordar a problemática da exploração da força de trabalho no contexto capitalista. As diferenças raciais estariam relacionadas apenas a um traço identitário, sendo todos iguais como força de trabalho. Conflitos raciais que permeiam as relações trabalhistas, potencializando a exploração de trabalhadores negros em relação aos demais, são negligenciados. O texto de Nádia Gotlib, comentando o quadro Operários, de Tarsila do Amaral, em que pessoas negras aparecem misturadas às de outras etnias em cenário fabril, afirma: "Desiguais na fisionomia, na cor e na raça, o que lhes assegura identidade peculiar, são iguais enquanto frente de trabalho" (BRASIL, 2003BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2003 . Brasília,DF: INEP, Fundação CESGRANRIO, 2003., p. 23). Essa ideia é reafirmada no trecho do poema de João Cabral de Melo Neto que compõe a alternativa correta a ser assinalada: "Somos muitos severinos/iguais em tudo e na sina" (BRASIL, 2003BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2003 . Brasília,DF: INEP, Fundação CESGRANRIO, 2003., p. 23).

No ano seguinte, a Questão 21 aborda a formação étnica do Brasil. Trata-se de uma atividade de interpretação de texto em que a alternativa correta aponta a polifonia dos grupos formados por poeta, colonizador, índio e negro, os quais teriam conseguido, apesar de certa confusão advinda do estranhamento entre elementos diferentes (e não do conflito e das relações de poder entre eles), criar, juntos, o Brasil, resultando algo harmônico. O texto, porém, ao caracterizar de forma estereotipada os elementos que abarca, apresenta traços negativos apenas para um deles, o negro.

Já em 2011, a figura seguinte apresenta o negro liberto como portador de elementos representativos de status social na cultura europeia:

FIGURA 2
Negros libertos no Brasil em 1879

O que nos leva a vincular tal questão ao ideário de democracia racial é que a ascensão social do/da negro/a é apresentada como uma consequência da liberdade cedida pelo senhor e como aquisição de elementos próprios da cultura desse mesmo senhor. Adicionalmente, não há a explicitação de que, mesmo em situação favorável em relação àqueles que ainda eram escravizados, os libertos continuavam vítimas de racismo e ficavam subalternizados na sociedade, não detendo os mesmos direitos que os demais cidadãos e sendo estigmatizados por sua vinculação étnica. Assim, deixa a impressão da possibilidade de que o negro alcançasse níveis econômicos e sociais mais altos e igualdade com relação aos brancos sem a existência de conflitos, como consequência natural do fim da escravidão - as mazelas seriam próprias apenas do sistema de trabalho e não do racismo que é parte ideológica, fundamental, dele.

A questão de número 118, do mesmo ano, trata da composição da Língua Portuguesa a partir da interação pacífica entre índios, negros e portugueses no uso da língua portuguesa e da língua tupi. Além de apontar uma suposta pacificidade que não ocorreu na apropriação, pelos colonizadores, das formas de comunicação oral dos povos colonizados, o texto simplesmente negligencia a presença de línguas de origem africana participando da composição da Língua Portuguesa. Além disso, afirma que "no que se refere à cultura, a contribuição do Português foi de longe a mais notada" (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2011 . Brasília, DF: INEP, 2011., p. 13), propondo, assim, que a harmonia na contribuição de todas as etnias para a cultura brasileira foi quebrada não pela existência de violência e de ideais eurocêntricos, mas pela superioridade da cultura portuguesa em relação às demais.

Há outras questões na prova de 2011 que trazem visões a respeito das questões raciais no Brasil que contrapõem a ideia de democracia racial, quais sejam: a Questão 32, que explicita o conteúdo da Lei 10.639/2003, e a Questão 35, que cita movimentos de populações não brancas pela igualdade social, mostrando o caráter racial dessas lutas.

Consideramos como estereótipos os conteúdos que vinculam a África e/ou o negro a um dos elementos apresentados na Figura 3, sem apresentar contraposições:

FIGURA 3
Estereótipos7 associados à África e/ou ao negro/a - questões relacionadas à Cultura e História Africana e Afro-brasileira e às relações étnico-raciais - população negra - ENEM 2003 a 2012

Aproximadamente 43% dos estereótipos relacionados à África e/ou ao/à negro/a e aproximadamente 13% do total de questões relacionadas à Lei 10.639/2003 no ENEM os associam à escravidão, sem oferecer contraposições a essa ideia, ou seja, sem mostrar outros papéis desempenhados por essas populações e países e sem contextualizar a escravidão como fenômeno social, político e econômico. Isso nos parece uma contribuição para a naturalização da imagem do negro, do africano, como subalternos, inferiores, sobretudo se associarmos esse dado à constatação de que cerca de 29% das ocorrências relacionadas a estereótipos colocam a África e/ou o/a negro/a em posição de passividade. Um exemplo disso seria "o negro zonzo saído da fornalha", que nega suas crenças religiosas para aceitar as do colonizador branco, não por coerção, mas pela superioridade de seus ideais, de acordo com a Questão 21 da prova de 2004, cuja temática é a formação étnica do Brasil.

Assim, tais questões representam uma negação do papel educativo de explicitar o conflito entre diferentes ideias para que o estudante possa desenvolver a capacidade crítica de construir e desconstruir sua própria visão de mundo com base em uma ampla gama de conhecimentos a respeito da realidade, problematizando-os, questionando-os (SANCHEZ, 2014SANCHEZ, L. P. O ENEM como ferramenta de implementação da Lei 10.639/2003 - competências e habilidades para a transformação social? 2014. 167 f. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação Política) - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2014.).

Vinte das questões a respeito da Cultura e da História Africana e Afro-brasileira e das relações étnico-raciais relativas à população negra presentes no ENEM trazem visões positivas sobre a África e/ou o negro/a, e outras oito questões apresentam tanto opiniões positivas quanto negativas. Elas permitem compreender a perversidade e a violência da escravidão e do racismo e que estes nunca foram fenômenos naturais ou necessários à vida em sociedade, mas ocorrências sociais com fundamentação econômica, política, ligadas ao exercício do poder e da dominação. Permitem compreender, ainda, que africanos e povos negros presentes no mundo e no Brasil resistiram e lutaram contra essas formas de violência, como timidamente começam a demonstrar as questões presentes nas provas de 2009 em diante.

É esse o caso da Questão 9 do ano de 2012, que trata da cultura afro-brasileira, explicitando que os protagonistas na formação dessa cultura foram os próprios africanos, e não os europeus que a apropriaram de forma violenta, destruidora e voltada à manutenção das relações de controle e poder, e que explicita que esses povos foram "trazidos como escravos" (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.. Exame Nacional do Ensino Médio 2012 . Brasília, DF: INEP, 2012., p. 4), ou seja, feitos escravos, desnaturalizando, assim, essa condição.

O mesmo pode ser percebido na Questão 131 da prova de 2009, em que se explora a composição da Língua Portuguesa, sendo que um dos textos associa as línguas faladas na África e na Guiné ao barbarismo e, o outro explicita o conflito ocorrido no contato entre as línguas, em que algumas foram inferiorizadas por meio do exercício do poder e da violência.

No que toca às questões que portam visões explicitamente positivas sobre o negro e a África, importa indicar que duas delas estão presentes nas provas anteriores a 2008, e as outras dezoito aparecem a partir de 2009, o que vem reforçar nossa constatação da melhora na abordagem das temáticas introduzidas pela Lei 10.639/2003 pelo ENEM depois desse ano.

Consideramos importante, ainda, explicitar quais aspectos foram explorados de forma positiva nas avaliações analisadas, o que está indicado no quadro a seguir.

Quadro 4
- Julgamento positivo - questões relacionadas à Cultura e História Africana e Afro-brasileira e às relações étnico-raciais - população negra - ENEM 2003 a 2012

Acreditamos que seja necessário problematizar, ainda, a prevalência da ocorrência de aspectos positivos relacionados à Cultura e História da África e Afro-brasileira e das relações étnico-raciais relativas à população negra dentro da temática cultural, com sete ocorrências, sem a contrapartida proporcional de índices de valorização de tais elementos em outros setores como a economia, a política, a ciência. Isso porque se pode incorrer no equívoco de folclorizar o negro e a África, aparentando a inclusão de conhecimentos a seu respeito em nossos conteúdos escolares sem, no entanto, valorizar efetivamente sua participação ativa na construção histórica e cultural com contribuições tão importantes quanto as dos demais.

Neste estudo incluímos uma questão dissertativa, a Redação da avaliação do ENEM de 2007, a qual propunha a temática "O desafio de se conviver com a diferença", trazendo textos e imagens que exploravam as relações entre igualdade, diferença e diversidade: fotos que mostravam pessoas de algumas etnias, todas elas representadas de forma positiva, um trecho da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, e duas letras de músicas, sendo que em uma delas encontramos a única menção explícita à questão racial: "Tanto faz a cor que se herda {...} Todos os homens são iguais" (BRASIL, 2007, p. 1). Essa visão de igualdade é contraposta pelos outros textos, que sinalizam a valorização das diferenças e o respeito à diversidade.

Entendemos que essa presença da temática das relações étnico-raciais, ainda que implícita, na proposta de Redação, seja relevante, pois vemos a questão dissertativa como portadora de uma visibilidade adicional, sua escolha como resultado de disputas por colocar em evidência determinado tema, e seu desenvolvimento como espaço mais amplo de possibilidades de argumentação, criticidade e exploração de uma gama maior de conteúdos do que nas demais questões.

Considerações finais

Consideramos que a implementação da Lei 10.639/2003 pressupõe a integração de seu ideário a toda a política educacional. A coesão, ideológica e instrumental, entre as diversas políticas públicas voltadas para a educação favorece a efetividade de todas e a produção de uma práxis educativa mais coerente.

Identificamos a política de avaliação em larga escala da Educação Básica como espaço privilegiado para essa construção, dado que ela tem sido uma das prioridades da atuação do Poder Público no Brasil, revelando o que este considera como conteúdos essenciais para a formação escolar de um cidadão ou cidadã brasileiros, além de possuir o potencial de influenciar aquilo que efetivamente está sendo ensinado nas escolas.

Analisando as provas do ENEM de acordo com aquilo que delimitamos, verificamos que a temática ainda é incipiente. Afirmamos isso comparando com a temática Meio Ambiente/recursos hídricos no mesmo período: temos 116 questões versus 69 referentes às questões étnico-raciais (SANCHEZ, 2014SANCHEZ, L. P. O ENEM como ferramenta de implementação da Lei 10.639/2003 - competências e habilidades para a transformação social? 2014. 167 f. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação Política) - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2014.).

Entendemos que o ENEM precisa integrar-se mais e com maior qualidade aos pressupostos da Lei 10.639/2003 para que atue como contribuição significativa à sua implementação, o que é possível, uma vez que seus conteúdos têm o potencial de dar visibilidade aos temas que abrangem e de influenciar aquilo que efetivamente se ensina em sala de aula, diversificando e problematizando o currículo no tocante às temáticas da Cultura e da História Africana e Afro-brasileira e das relações étnico-raciais relacionadas à população negra.

Essa capacidade é limitada, assim como a da própria escola, pela inserção da avaliação no aparato institucional do Estado, mas pode contribuir para o tensionamento e a desconstrução dessas bases ideológicas a partir de suas próprias contradições internas, produzindo um contradiscurso.

Por fim, há alguns tópicos que julgamos merecedores de maior aprofundamento, no que diz respeito ao universo abarcado pela presente pesquisa, e que gostaríamos de indicar aqui. São eles: o monitoramento da evolução do ENEM em sua abordagem a respeito da Cultura e História Africana e Afro-brasileira e das relações étnico-raciais relacionadas à população negra nos próximos anos; a exploração mais detalhada sobre quem elaborou as provas e em que contexto social, político e econômico mais amplos elas foram realizadas, bem como a atuação do Movimento Negro nesses processos; a investigação das redações elaboradas pelos estudantes no ano de 2007, em que se propôs uma temática relacionada às questões raciais, para verificação e problematização das abordagens adotadas por eles no tratamento do tema.

REFERÊNCIAS

  • BARDIN, L. Análise de conteúdo . Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n. 318, de 22 de fevereiro de 2001. Dispõe sobre o Exame Nacional do Ensino Médio. Diário Oficial da União , Brasília, 23 fev. 2001. Seção XX, p. xx.
  • BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Lex: Diário Oficial da União, Câmara dos Deputados, Brasília/DF, Seção 1, p. 1, 10 janeiro 2003.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2003 . Brasília,DF: INEP, Fundação CESGRANRIO, 2003.
  • BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Relatório da IConferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial Brasília, 2005.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2007 . Brasília/DF: INEP, 2012.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana . Brasília, DF: SECAD/MEC, 2009.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2010 . Segunda aplicação. Brasília/DF: INEP, 2010.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2011 . Brasília, DF: INEP, 2011.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.. Exame Nacional do Ensino Médio 2012 . Brasília, DF: INEP, 2012.
  • BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Conteúdo das provas . Brasília/DF: INEP, {20---}.s.d
  • CERRI, Luis Fernando. Saberes históricos diante da avaliação do ensino: notas sobre os conteúdos de história nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM. Revista Brasileira de História , São Paulo, n. 48, p. 213-231, 2004.
  • CERRI, Luis Fernando. Usos públicos da história no Brasil contemporâneo: demandas sociais e políticas de Estado. Araucaria: Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades , Sevilla/Espanha, n. 15, p. 3-19, 2006.
  • GOMES, Nilma G.; JESUS, Rodrigo E. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa. Dossiê "Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas". Educar em Revista , Curitiba/PR, n. 47, p. 19-33 2013.
  • GONSALVES, L. R. D. Currículo multicultural e educação étnico-racial: proposta de narrativa racial. In: PAULA, B. X. de; PERON, C.M. R. de. Educação, história e cultura da África e Afro-brasileira: teorias e experiências. Uberlândia, MG: Proex UFU, 2008.
  • OLIVEIRA, I. de. A prática pedagógica de especialistas em relações raciais e educação. In: OLIVEIRA, I. de (Org.). Relações raciais e educação: novos desafios. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 54-68
  • ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B. Avaliação da educação. In: ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B.(Org.). Avaliação da educação: diferentes abordagens críticas. São Paulo: Xamã, 2011.
  • SANCHEZ, L. P. O ENEM como ferramenta de implementação da Lei 10.639/2003 - competências e habilidades para a transformação social? 2014. 167 f. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação Política) - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2014.
  • SILVA, P. V. B; GOMES, N. L.; ARAUJO, Débora C. Apresentação. Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas. Educar em Revista , Curitiba/PR n. 47, p. 35-50 2013.
  • SOUSA, J. V. de. Políticas de acesso à educação superior no Brasil: o Enem no centro do debate. In: ROTHEN, J. C.; BARREYRO, G. B. (Org.). Avaliação da educação: diferentes abordagens críticas. São Paulo: Xamã, 2011. p. 30-42
  • 1
    Neste artigo o debate será em torno da lei 10.639/2013; dos Relatórios da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. (BRASIL, 2005BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Relatório da IConferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Brasília, 2005.) e do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana (BRASIL, 2009). Sobre cada uma das políticas públicas e seu histórico e processo de implementação no Brasil, consultar Sanchez (2014).
  • 2
    Este dossiê do periódico Educar em Revista , n.47 de 2013, apresenta resultados da pesquisa nacional "Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei 10.639/2003".
  • 3
    A existência de um número maior de avaliações em 2010 é explicada pela reaplicação das provas que ocorreu nessa ocasião, devido a falhas operacionais na execução do exame que acabaram acarretando o vazamento de respostas às questões e sua consequente invalidação. Optamos por analisar, nesse caso, apenas as provas utilizadas na segunda aplicação, dado que os resultados destas é que foram adotados oficialmente para todos os fins. Cabe apontar ainda que a existência de duas provas em cada um dos anos de 2009 a 2012 deve-se ao aumento do número de questões e à consequente necessidade de dividir a execução da avaliação em dois dias. Para efeitos desta pesquisa, unificamos as duas provas, que representam uma avaliação por ano, portanto. Elas são compostas por 180 questões, sendo 45 de cada uma das seguintes áreas de conhecimento: Linguagens, códigos e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas e suas tecnologias.
  • 4
    A partir do Quadro 2 o leitor poderá consultar a questão completa no site do INEP: <http://portal.inep.gov.br/web/enem/conteudo-das-provas>. Acesso em: 22 de Janeiro de 2016.
  • 5
    Prova de 2010, Questão 93 - Inglês (BRASIL, 2010).
  • 6
    Prova de 2011, Questão 94 - Inglês; Prova de 2012, Questão 94 - inglês. (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2011 . Brasília, DF: INEP, 2011., 2012BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio 2007 . Brasília/DF: INEP, 2012.)
  • 7
    Verifica-se um número superior de ocorrências de estereótipos do que o número de questões em que eles aparecem porque algumas questões apresentam mais de um tipo de estereótipo a respeito da África e/ou do negro/a em seu conteúdo.
  • *
    Professor Doutor. Professor Livre-Docente. Professor Associado da Universidade de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política. E-mail: marcobettine@usp.br
  • **
    Mestre em Ciências. Programa Mudança Social e Participação Política. E-mail: livia.pizauro@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2014
  • Aceito
    22 Maio 2015
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antonio Carlos, 6627., 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil, Tel./Fax: (55 31) 3409-5371 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revista@fae.ufmg.br