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PERCEPÇÃO, PAISAGEM E EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA INVESTIGAÇÃO NA REGIÃO LITORÂNEA DE LAGUNA-SC, BRASIL

PERCEPTION, LANDSCAPE AND ENVIRONMENTAL EDUCATION: AN INVESTIGATION IN THE COASTAL REGION OF LAGUNA/SC/BRASIL

RESUMO:

Este trabalho visa compreender a percepção ambiental dos pescadores tradicionais da região litorânea do município de Laguna, Santa Catarina, sobre os elementos da paisagem natural e antrópica em suas dimensões de conflito e estética. Metodologicamente pautado na pesquisa qualitativa, de cunho fenomenológico, traz narrativas dos pescadores, vivências e observações de campo. Integramos à interpretação a análise textual discursiva/qualitativa, contemplando as dimensões observadas. Entre os resultados, destacamos a percepção de paisagem como natureza e lugar onde se vive; como principal alteração da paisagem, apontamos particularidades para as comunidades estudadas, com destaque para o processo de adensamento humano gerado pelo turismo e as alterações nas áreas de lagoas. A incorporação do conhecimento da percepção ambiental dos sujeitos acerca da paisagem pode favorecer ações de Educação Ambiental mais efetivas e comprometidas com a formação/reconstrução de valores, mudanças atitudinais, construção de saberes e com a formação de cidadãos.

Palavras-chave:
Educação Ambiental; Percepção Ambiental; Fenomenologia.

ABSTRACT:

This work aims to comprehend the environmental perception of traditional fishermen in the coastal region of the city Laguna (Santa Catarina state, Brazil) about the landscape's natural and anthropic elements, in their dimensions of conflict and aesthetic. The research is based on qualitative research of phenomenological nature, and brings fishermen's narratives, their experiences and field observations. Discursive and qualitative textual analysis was integrated to the interpretation, contemplating the observed dimensions. Among the findings, it is highlighted the perception of the landscape as nature and also the place where they live; as the main landscape changes, particularities for the communities studied are pointed, detaching the human density generated by tourism and changes on the lagoon's areas. To incorporate environmental perception knowledge about the landscape can help that Environmental Education actions become more effective and committed to values' formation/reconstruction, changing actions, building knowledge and forming citizens.

Keywords:
Environmental Education; Environmental Perception; Phenomenology.

Introdução

As constantes transformações, naturais e antrópicas, que vêm sendo geradas em nosso planeta, desencadeiam um novo olhar sobre seu presente e seu futuro. Isso nos leva a romper com a clássica visão puramente catastrofista e incita a crer que a perturbação e o caos podem ceder espaço à construção do que poderíamos chamar a "Terra Sustentável".

Para tanto, faz-se necessário incorporar o perceber e o sentir como bases da essência humana. Damásio (2004DAMÁSIO, A. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 98) acredita que os sentimentos são percepções e que a diferença, no caso dos sentimentos, é que os objetos e situações que constituem as origens de sua essência estão dispostos no interior do corpo e não fora dele.

Merleau-Ponty (2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 280), salienta que "todo saber se instala nos horizontes abertos pela percepção", e que não podemos descrever a percepção como "um dos fatos que se produzem no mundo", uma vez que a percepção é a "falha deste grande diamante". Adentrando na fenomenologia da percepção do autor, é possível compreender os mecanismos que favorecem ou explicam o modo humano de conceber o lugar e o mundo percebidos.

Contudo, transitar nessa direção é desafiador, visto que implica a interpretação e a compreensão dos vários fenômenos que se interpõem e que não são, nem estão, claramente discerníveis. Envolve a construção do conhecimento e a compreensão dos fenômenos em dimensões complexas do ser humano. Merleau-Ponty (2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 467) explica que a análise da percepção deve resolver paradoxos de um pensamento que reside no exterior e que, "comparados à minha consciência, ao meu pensamento, já são anônimos e sem sujeito". Essa complexidade ainda pressupõe o que esse autor considera como as duas faces de um mesmo ato, "a percepção exterior" e a "percepção do corpo próprio", e que variam e se explicitam conjuntamente (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 276). Para ele, o movimento e o sentir são elementos-chaves da percepção.

A análise de como o ser humano se inter-relaciona com o lugar habitado remete ao que Bachelard (1974BACHELARD, G. A poética do espaço São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores, v. 38).) denominou "topofilia", termo também empregado por Tuan em 1980TUAN, Y. F. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.. Os traços topofílicos são construídos a partir da história de vida e da interação da pessoa com o lugar. Nesse sentido, os indícios de alteração da paisagem local são de fundamental importância, já que, além de novas configurações físicas, representam a perda de "referenciais sócio-históricos, substratos onde se ancora o universo de significações atribuído ao lugar" (MARIN; OLIVEIRA; COMAR, 2004MARIN, A. A.; OLIVEIRA, H. T.; COMAR, V. Reconstituição histórica como instrumento de resgate cultural e de educação ambiental. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient, Rio Grande, v. 13, p. 101-114, 2004. , p. 102). O espaço percebido não pode ser aquele abandonado pelos sentidos, mas deve ser essencialmente vivido. É na vivência que a imaginação encontra o limite do mundo (BACHELARD, 1974BACHELARD, G. A poética do espaço São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores, v. 38)., p.17).

A percepção requer um olhar apurado sobre as características paisagísticas de um lugar, pois pode revelar a forma do seu povo de "ver e representar o mundo" (MARIN; OLIVEIRA; COMAR, 2004MARIN, A. A.; OLIVEIRA, H. T.; COMAR, V. Reconstituição histórica como instrumento de resgate cultural e de educação ambiental. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient, Rio Grande, v. 13, p. 101-114, 2004. , p. 109). Percebemos o que faz parte do meio ambiente e este engloba "tudo aquilo cuja existência ou inexistência, cuja natureza ou alteração conta para mim, praticamente" (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 430).

Conhecer e compreender os múltiplos significados e expressões da percepção implica uma investigação apurada das relações humanas no ambiente e, desse modo, pode contribuir para avaliar e incorporar práticas sustentáveis. A interpretação do saber local, de acordo com Geertz (2004GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. ), favorece a compreensão de como os indivíduos percebem as alterações naturais e antrópicas efetuadas na paisagem e de como elas podem ser incorporadas, assimiladas e modificadas em direção à sustentabilidade regional. Estudar a percepção requer que não isolemos as visões e que investiguemos em profundidade a história, na busca por um núcleo único de significação existencial para cada perspectiva que se apresentar (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos).). Além disso, em função de o ser humano conceber o mundo a partir de sua cultura, ele tende a julgar seu modo de vida o mais correto; logo, homens de culturas diferentes possuem visões distintas das coisas (LARAIA, 2009LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 24. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 67), o que gera, por sua vez, percepções diferenciadas.

Em relação, pois, a uma dimensão particular - a percepção ambiental (DEL RIO; OLIVEIRA, 1999DEL RIO, V.; OLIVEIRA, L. Apresentação. In: DEL RIO, V.; OLIVEIRA, L. (Org.). Percepção ambiental: a experiência brasileira. 2. ed. São Paulo: Nobel, 1999. p. ix-xvii.), Marin, Oliveira e Comar (2004MARIN, A. A.; OLIVEIRA, H. T.; COMAR, V. Reconstituição histórica como instrumento de resgate cultural e de educação ambiental. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient, Rio Grande, v. 13, p. 101-114, 2004. , p. 101-102) a consideram um fenômeno complexo que se dilui e se funde com vários elementos da existência humana em suas múltiplas dimensões, entre elas, o espiritual, o imaginário e a história das pessoas. A compreensão da percepção ambiental permite reconhecer as experiências dos indivíduos no ambiente, os sentimentos e significados associados às situações vivenciadas, e envolve mais do que os sentidos da visão ou da audição (WHYTE, 1977WHYTE, A. V. T. La perception des I'environment: lignes directrices méthodologiques pour les études sur le terrain. Paris: UNESCO, 1977. (Notes techniques du MAB, 5). ).

Steil e Carvalho (2012STEIL, C. A.; CARVALHO, I. C. M. Diferentes aportes no âmbito da antropologia fenomenológica: diálogos com Tim Ingold. In: STEIL, C. A.; CARVALHO, I. C. M. (Org.). Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. p. 31-47.), Pereira (2010PEREIRA, E. O. A Geografia fenomenológica: um olhar sobre a percepção ambiental dos povos ribeirinhos do rio Formate a partir da sua história oral e dos seus mapas mentais. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS. Anais... Porto Alegre-RS, 2010. ), Marin e Lima (2009MARIN, A. A.; LIMA, A. P. Individualização, percepção, ambiente: Merleau-Ponty e Gilbert Simondon. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 3, p. 1-8, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 >. Acesso em: 04 abr. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), Ribeiro, Lobato e Liberato (2009RIBEIRO, W. C.; LOBATO, W.; LIBERATO, R. C. Notas sobre fenomenologia, percepção e educação ambiental. Sinapse Ambiental, Betim - MG: PUC, v. 6, p. 42-65, set. 2009. ), entre outros, também vêm estudando a percepção sob uma abordagem fenomenológica. Vimos o reconhecimento da percepção dos sujeitos como elemento para subsidiar processos sensibilizadores em Educação Ambiental. Acreditamos que tal abordagem oportuniza uma maior compreensão do fenômeno perceptivo, contribuindo, desse modo, para investigações e ações na área da EA.

A interação com o ambiente reflete sobre o comportamento das pessoas e seu modo de vida. O entendimento dos processos perceptivos desencadeados nos e entre os diferentes grupos sociais favorece, também, a compreensão dos indivíduos e possibilita a indicação de aspectos a serem incorporados nos processos formativos desses cidadãos. Logo, "perceber não é experimentar um sem-número de impressões que trariam consigo recordações capazes de completá-las, é ver jorrar de uma constelação de dados um sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível" (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 47).

Embora a escola deva constituir-se no espaço educativo capaz de integrar o indivíduo ao meio ambiente, é preciso estar atento aos outros múltiplos espaços/lugares que têm participação na vida dos sujeitos e em sua formação. Nesse contexto, os momentos formativos que se delineiam entre os grupos e dentro dos grupos, nos diferentes contextos e espaços, também devem ser considerados. A vivência dos sujeitos, seus saberes, fazeres, seu modo de perceber o mundo, representam contribuições relevantes a serem incorporadas pela educação, quando se almeja uma h favorecendo a formação de cidadãos.

Na região de Laguna, as alterações desencadeadas na paisagem pela exploração imobiliária, pelo aporte turístico durante o período de verão, pela pesca industrial, desafiam a pesca tradicional e geram pressão sobre as características da paisagem local e sobre o modo de vida dos pescadores. Questões como essas afetam as características da população local e da paisagem.

O presente trabalho busca compreender a percepção ambiental sobre os elementos da paisagem natural e antrópica apresentada pelos pescadores tradicionais da região litorânea do município de Laguna, Santa Catarina, em suas dimensões de conflito e estética, com vistas a identificar processos que contribuam com a sensibilização ambiental e com a formação de sujeitos em e para a Educação Ambiental.

Vislumbramos o descortinar de elementos que viabilizem a interpretação da percepção da paisagem e favoreçam um leque de possibilidades sensibilizadoras à questão ambiental, permitindo a "incorporação" do lugar como parte do sujeito.

O percurso metodológico

A área compreendida na pesquisa abrange a faixa litorânea que vai da praia do Cardoso até a área sul da praia de Itapirubá, no município de Laguna, Santa Catarina (Figura 1). O município de Laguna situa-se na latitude: 28°28'57", longitude: 48°46'51", e possui como base econômica a pesca executada no sistema de lagoas e na costa atlântica, com elevada produção de camarão e siri, assim como o turismo no período de verão (SANTA CATARINA, 2012SANTA CATARINA. Laguna. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.sc.gov.br/portalturismo/Default.asp?CodMunicipio=68&Pag=1 >. Acesso em: 02 abr. 2012.
http://www.sc.gov.br/portalturismo/Defau...
).

Figura 1
Área de estudo compreendendo as praias do município de Laguna/SC, desde a Praia do Cardoso, ao sul, até a Praia de Itapirubá, ao nordeste da figura.

Os sujeitos da pesquisa são pescadores artesanais tradicionais mais antigos e/ou que atuaram ao longo de sua vida na atividade de pesca, que ainda exercem tal atividade ou algo a ela relacionada. Estabelecemos, pelo menos, dois pescadores para cada uma das cinco principais comunidades e áreas pesqueiras da faixa litorânea do município de Laguna e suas áreas de cobertura de pesca (Figura 1): Farol de Santa Marta, Ponta da Barra, Praia da Tereza, Praia da Galheta e Itapirubá Sul, integrando, quando existentes, suas respectivas áreas de lagoas, totalizando 10 entrevistados ao longo do ano de 2012. Cabe ressaltar que os atores entrevistados estão denominados por letras do alfabeto (A - J), pois preferiram manter seu anonimato. Foram respeitados todos os preceitos éticos exigidos para pesquisa na área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, sendo que os respectivos termos de anuência, assinados pelos sujeitos da pesquisa, encontram-se sob a guarda da pesquisadora.

A abordagem metodológica pauta-se na pesquisa qualitativa, de cunho fenomenológico (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos).; FERRAZ, 2009FERRAZ, M. S. A. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. Campinas, SP: Papirus, 2009.; MOREIRA, 2004MOREIRA, D. A. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2004. ; CHAUÍ, 2003CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: ABDR, 2003.; PASSOS; SATO, 2002PASSOS, L. A.; SATO, M. Educação ambiental: o currículo nas sendas da Fenomenologia Merleau-Pontyana. In: SAUVÉ, L.; ORRELANA, I. SATO, M. (Dir.). Sujets choisis en éducation relative à l' environnement : d' une Amerique à l' autre. Montrèal: ERE-UQAM, 2002. Tome I. p. 129-135. ) e delineia-se nas vertentes da fenomenologia da percepção (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos).). Foram reconhecidos diversos olhares, percepções, saberes, leituras e interpretações acerca da alteração da paisagem. A pesquisa traz registros das narrativas dos pescadores, vivências e observações de campo. A narrativa "é a análise dos modos pelos quais os seres humanos experimentam o mundo" (HART, 2005HART, P. Narrativa, conhecimento e metodologias emergentes na pesquisa em Educação Ambiental: questões de qualidade. In: GALIAZZI, M. C.; FREITAS, J. V. (Org.). Metodologias emergentes de pesquisa em Educação Ambiental. Ijuí: UNIJUÍ, 2005. p. 15-61., p. 16). Ela também considera aspectos levantados por Esteban (2010ESTEBAN, M. P. S. Pesquisa qualitativa em educação: fundamentos e tradições. Porto Alegre: AMGH, 2010.), Oliveira (2008OLIVEIRA, I. B. Estudos do cotidiano da pesquisa em Educação: interfaces com as narrativas autobiográficas na compreensão do potencial emancipatório das práticas educativas cotidianas. In: SOUZA, E. C.; PASSEGGI, M. C. (Org.). Pesquisa (auto)biográfica: cotidiano, imaginário e memória. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulius, 2008. p. 163-198. (Coleção Pesquisa (Auto) Biográfica - Educação).) e Hart (2005HART, P. Narrativa, conhecimento e metodologias emergentes na pesquisa em Educação Ambiental: questões de qualidade. In: GALIAZZI, M. C.; FREITAS, J. V. (Org.). Metodologias emergentes de pesquisa em Educação Ambiental. Ijuí: UNIJUÍ, 2005. p. 15-61.). Tais narrativas foram gravadas, transcritas e incitaram desdobramentos diversos, respeitando o jeito de ser de cada entrevistado, seu próprio tempo e limite. Na transcrição e nos excertos apresentados ao longo deste artigo, foram mantidas as características próprias da oralidade dos atores estudados. Durante a realização dos registros de voz, efetuamos, também, o registro da observação de campo, indicando o estado e condições do entrevistado por ocasião da pesquisa. Adaptamos à interpretação da percepção a análise textual discursiva/qualitativa (MORAES, 2003MORAES, R. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela análise textual discursiva. Ciência & Educação, Bauru, v. 9, n. 2, p. 191-211, 2003, 2005MORAES, R. Mergulhos discursivos: análise textual qualitativa entendida como processo integrado de aprender, comunicar e interferir em discursos. In: GALIAZZI, M. C.; FREITAS, J. V. (Org.). Metodologias emergentes de pesquisa em Educação Ambiental. Ijuí: UNIJUÍ, 2005. p. 85-114.; MORAES; GALIAZZI, 2006MORAES, R; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva: processo reconstrutivo de múltiplas faces. Ciência & Educação, Bauru, v. 12, n. 1, p. 117-128, 2006.), embora evitando a "unitarização" rígida, mas contemplando as dimensões observadas ao longo das narrativas.

A interpretação do termo "paisagem" foi efetuada a partir da percepção que os sujeitos possuem dela. Considerando que os entrevistados tecem conceitos de paisagem de modo similar ao que consideram como meio ambiente e natureza, partimos do pressuposto de que se assim o fazem, seria apropriado adaptarmos à paisagem os estudos de Sauvé (2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., 2005bSAUVÉ, L. Uma cartografia das correntes em educação ambiental. In: SATO, M.; CARVALHO, I. C. M. (Org.). Educação ambiental: pesquisa e desafios. Porto Alegre: Artmed, 2005b. p. 17-44) acerca da noção de meio ambiente, já que, como propõe Sato (2003SATO, M. Educação Ambiental. São Carlos: RiMA, 2003.), o modo como o sujeito conceitua o meio ambiente, também, reflete a maneira como age sobre ele e com ele. No presente contexto, a paisagem percebida é reflexo, inclusive, do modo humano de concebê-la e atuar sobre ela. Além disso, partilhamos do pensar, sob a ótica da paisagem, de aspectos pontuados por Sauvé (2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., p. 317) quando considera que "a trama do meio ambiente é a trama da própria vida, ali onde se encontram natureza e cultura; o meio ambiente é o cadinho em que se forjam nossa identidade, nossas relações com os outros, nosso 'ser-no-mundo'". A paisagem pode ser esse "cadinho" destacado pela autora acima. Outro aspecto relevante mencionado por ela, que cotejamos em relação à paisagem, diz respeito à Educação Ambiental: "{...} a Educação ambiental leva-nos também a explorar os estreitos vínculos existentes entre identidade, cultura e natureza, e a tomar consciência de que, por meio da natureza, reencontramos parte de nossa própria identidade humana, de nossa identidade de ser vivo {...}" (SAUVÉ, 2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., p. 317).

Foram reconhecidos, ainda, os landmarks (MAROTI; SANTOS; PIRES, 2000MAROTI, P.S; SANTOS, J. E; PIRES, J. S. R. Percepção ambiental de uma unidade de conservação por docentes do ensino fundamental. In: SANTOS, J. E.; PIRES, J. S. R. (Ed.). Estação ecológica de Jataí. São Carlos: RiMa, 2000. v. 1. p. 207-217.) existentes na paisagem que mais afetam os sujeitos e, por isso, foram salientados por eles, bem como outros aspectos pertinentes à percepção.

Nessa direção, a paisagem pode ser considerada como uma entidade espacial e funcional de espaços vivos, onde se interconectam as dimensões natural, física e biológica, agregando aspectos socioeconômicos interligados com o uso da terra (NAVEH, 1988NAVEH, Z. Some remarks on recent developments in landscape ecology as a transdisciplinary ecological science. Landscape Ecology, New York, v. 1, n. 3, p. 153-162, 1988. ), que se somam às mudanças estruturais que ocorrem na paisagem, também suas alterações funcionais (FORMAN; GODRON, 1986FORMAN, R. T. T.; GODRON, M. Landscape ecology. New York: John Wiley, 1986. ) e que refletem sobre a heterogeneidade horizontal e vertical dentro da paisagem (ZONNEVELD, 1990ZONNEVELD, I. S. Scope and concepts of Landscape Ecology as an emerging science. In: ZONNEVELD, I. S.; FORMAN, R. T. T. (Ed.). Changing Landscapesan ecological perspective. New York: Springer, 1990. p. 3-20.).

Observamos a existência de três dimensões que se intercalaram e se mesclaram na interpretação narrativa da percepção da paisagem e que têm reflexo sobre ela: as dimensões social, econômica e ambiental, embora reconheçamos que vários outros espectros dimensionais possam daí derivar, a depender da interpretação (Figura 2).

Figura 2
Dimensões principais observadas na interpretação da percepção da paisagem da área estudada. Outras dimensões, não pontuadas aqui, podem estar imersas na paisagem.

Para o presente texto, daremos ênfase à dimensão ambiental, ainda que admitamos a estreita inter-relação existente entre elas (Figura 3).

Figura 3
As inter-relações observadas na dimensão ambiental na interpretação da percepção da paisagem da área estudada.

Resultados e discussão: adentrando e interpretando o universo da percepção na dimensão ambiental e na educação

A percepção integra nossa rotina de modo, aparentemente, simples. Não parece haver complexidade nesse processo perceptivo. Estamos tão impregnados dela que nos é difícil reconhecer o momento em que percebemos o mundo, tudo parece representar um estado contínuo. Para Merleau-Ponty (2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos).), como não são necessários instrumentos nem cálculos complexos para adentrar a percepção, há uma ilusão de que esta seja relativamente simples. Ele alerta, porém, para o engano dessa análise, já que considera necessários tempo, esforços e cultura para desnudar o mundo da percepção.

O mundo não é somente o que pensamos de modo trivial em nosso cotidiano, mas também o irrefletido (MARIN; LIMA, 2009MARIN, A. A.; LIMA, A. P. Individualização, percepção, ambiente: Merleau-Ponty e Gilbert Simondon. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 3, p. 1-8, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 >. Acesso em: 04 abr. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). O mundo, na concepção de Merleau-Ponty (2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 3), "{...} não são essas luzes, essas cores, esse espetáculo sensorial que meus olhos me fornecem, o mundo são as ondas e os corpúsculos dos quais a ciência me fala e que ela encontra por trás dessas fantasias sensíveis". Ou seja, há sempre um processo de decodificação do que é percebido e perceptível, podendo ser interpretado e compreendido por manifestações diversas. "O mundo é aquilo que vemos" (MERLEAU-PONTY, 2009MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, v. 40)., p. 15), contudo, é preciso aprender a vê-lo, o que pode gerar dificuldades e contradições.

A essência da vida remete sempre a querer esclarecer o que parece indecifrável. Chauí (2003CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: ABDR, 2003., p. 135) considera a percepção uma relação do sujeito com o mundo exterior, dependente das coisas e do corpo, do mundo e dos sentidos, do exterior e do interior. A percepção é uma conduta vital, uma comunicação corporal com o mundo, uma interpretação das coisas e uma valoração delas. A percepção modifica a relação do objeto com o sujeito e a estrutura de ambos.

Assim, relacionamo-nos no e com o mundo. Interagimos nele e com ele, somos parte dele e ele, de nós. Ao percebermos, lançamos luzes novas sobre nossa impressão primeira e sobre o que é percebido. Por isso, o objeto e as coisas percebidas podem adquirir significados e valores distintos para os diferentes sujeitos.

Definindo o termo paisagem: com base na adaptação, para a paisagem, da classificação de Sauvé (2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., 2005bSAUVÉ, L. Uma cartografia das correntes em educação ambiental. In: SATO, M.; CARVALHO, I. C. M. (Org.). Educação ambiental: pesquisa e desafios. Porto Alegre: Artmed, 2005b. p. 17-44), observamos que, exceto os entrevistados A, E e I, todos os demais consideram a paisagem como natureza. O entrevistado E não a define, e o I a considera a flora e a fauna. Convém acentuar que, para o presente estudo, acatamos a solicitação dos sujeitos de preservar seus nomes, distinguindo-os somente por meio de códigos.

Para o entrevistado A, a paisagem corresponde ao lugar onde eles moram, o que pode, adaptando-se para a classificação de Sauvé (2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., 2005b), "ser visto como lugar em que se vive" (SAUVÉ, 2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., p. 318, grifo do autor). A tece o seguinte comentário: "Ah, sobre o lugar? {...} Nosso lugar, aqui é positivo! É bom! Muito bonito! Nosso lugar aqui, muito bonito!" (Entrevistado A). Percebemos que ele estabelece uma relação de identidade e pertencimento ao lugar, visto que enfatiza o nosso lugar.

Essa relação de identidade com o lugar é também defendida por Castrogiovanni et al. (1999CASTROGIOVANNI, A. C. et al. A Geografia em sala de aula: práticas e reflexões. Porto Alegre: UFRGS/AGB, 1999., p. 15), que reforçam que, sendo o lugar formado por uma identidade, seu estudo deve contemplar "{...} a compreensão das estruturas, das ideias, dos sentimentos, das paisagens que ali existem {...}". Guimarães (2006GUIMARÃES, M. Educação Ambiental: da forma à ação. Campinas: Papirus, 2006. ) e Sauvé (2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a.), entre outros, enfatizam a importância desse sentido/sentimento de pertencimento.

Quando aquele pescador se reporta à paisagem como "nosso" lugar, destacando a qualidade de ser "bom" e sua beleza, manifesta impressões sobre a paisagem sem, contudo, explicar o termo. De certo modo, a dificuldade de tentar elucidar o que seja paisagem é compreensível, pois implica uma percepção de totalidade, aspecto este nem sempre claro aos diferentes sujeitos. Nessa direção, Chauí (2003CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: ABDR, 2003.) alega que a paisagem não é a soma de coisas, mas a percepção de coisas que constituem um todo complexo e dotado de sentido. Talvez resida aí a dificuldade: definir essa totalidade, uma vez que a tendência é justamente elencar um conjunto de elementos contidos na paisagem, concebendo-a de modo fragmentado.

A percepção é compreendida como uma referência ao todo a partir de certas partes. A coisa percebida não é uma unidade ideal, mas uma totalidade aberta a um número "indefinido de perspectivas" (MERLEAU-PONTY, 1990MERLEAU-PONTY, M. O primado da percepção e suas consequências filosóficas. Campinas: Papirus, 1990., p. 48).

Os silêncios observados ao longo das narrativas podem, como exemplifica Maestro (2010MAESTRO, M. P. K. D. A percepção do sagrado na educação ambiental: entrelaçamentos de uma abordagem complexa e transdisciplinar. In: TRISTÃO, M.; JACOBI, PR. (Org.). Educação ambiental e os movimentos de um campo de pesquisa. São Paulo: Annablume, 2010. p. 69-90. , p. 81), revelar um instante de insegurança, receio de responder algo errado; o autor considerou o silêncio como "tempo e lugar. Lugar seguro onde nos refugiamos para não errar, e um tempo de choque ou latência, preparatório para a entrada na zona de não resistência" (MAESTRO, 2010MAESTRO, M. P. K. D. A percepção do sagrado na educação ambiental: entrelaçamentos de uma abordagem complexa e transdisciplinar. In: TRISTÃO, M.; JACOBI, PR. (Org.). Educação ambiental e os movimentos de um campo de pesquisa. São Paulo: Annablume, 2010. p. 69-90. , p. 81). Já para Demo (2008DEMO, P. Pesquisa social. Serviço Social & Realidade, Franca, v. 17, n. 1, p. 11-36, 2008. ), os silêncios, os atos falhos, as dificuldades de falar sobre algo podem indicar, na Psicanálise, o reprimido, muito mais do que o que é dito.

Fernandes (2009FERNANDES, U. S. Paisagem: uma prosa do mundo em Merleau-Ponty. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 20, p. 23-47, 2009.) constrói seu discurso acerca do termo "paisagem" aportando na obra A prosa do mundo, de Merleau-Ponty (2012)MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. , expandindo, assim, sua abordagem e retirando-o da dimensão pura, voltada à área da Geografia: "Na paisagem, esta prosa do mundo estaria na apreensão e valoração das coisas em objetos, como também na própria apreensão e valoração da paisagem constituída" (FERNANDES, 2009FERNANDES, U. S. Paisagem: uma prosa do mundo em Merleau-Ponty. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 20, p. 23-47, 2009., p. 25-26). Neste estudo, a paisagem constituída pode representar certa dificuldade de assimilação e expressão por parte dos entrevistados A e E, já que não conseguem defini-la claramente.

Shama (1996SCHAMA, S. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 20) considera a paisagem uma "unidade de ocupação humana", ou "o aprazível objeto de uma pintura" e, ao fazer uma analogia com as obras de arte, afirma:

O que está além da vidraça de nossa apreensão, diz Magritte, requer um desenho para que possamos discernir adequadamente sua forma, sem falar no prazer proporcionado por sua percepção. E é a cultura, a convenção e a cognição que formam esse desenho; que conferem a uma impressão retiniana a qualidade que experimentamos com beleza (SCHAMA, 1996SCHAMA, S. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 22).

Carvalho, Grün e Avanzi (2009CARVALHO, I. C. M.; GRÜN, M.; AVANZI, M. R. Paisagens da compreensão: contribuições da hermenêutica e da fenomenologia para uma epistemologia da educação ambiental. Cadernos do Cedes/Centro de Estudos Educação Sociedade, Campinas, v. 29, n. 77, p. 99-115, 2009., p. 105) apoiam-se na obra de Merleau-Ponty (2009) O visível e o invisível para conceber que a paisagem é um engajamento e uma incorporação/apropriação entre humanos e não humanos, pois consideram que há uma continuidade entre o "corpo/carne do mundo e o corpo/carne humano". Cabe frisar que, para Merleau-Ponty (2009MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, v. 40).), a carne não é matéria, mas é o "enovelamento do visível sobre o corpo vidente {...}" (MERLEAU-PONTY, 2009MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, v. 40)., p. 141). Além disso, Carvalho, Grün e Avanzi (2009CARVALHO, I. C. M.; GRÜN, M.; AVANZI, M. R. Paisagens da compreensão: contribuições da hermenêutica e da fenomenologia para uma epistemologia da educação ambiental. Cadernos do Cedes/Centro de Estudos Educação Sociedade, Campinas, v. 29, n. 77, p. 99-115, 2009.) propõem a noção de paisagem como unidade do visível, "o campo de percepção de todos aqueles que a habitam e a constituem e por ela são constituídos" (CARVALHO; GRÜN; AVANZI, 2009CARVALHO, I. C. M.; GRÜN, M.; AVANZI, M. R. Paisagens da compreensão: contribuições da hermenêutica e da fenomenologia para uma epistemologia da educação ambiental. Cadernos do Cedes/Centro de Estudos Educação Sociedade, Campinas, v. 29, n. 77, p. 99-115, 2009., p. 106); o lócus da relação do sujeito com o mundo.

A paisagem pode ser compreendida como uma matriz, na qual os elementos e as relações humanas e ambientais se estabelecem. Nela ocorre a expressão do que o ser humano é e faz de sua vida e com a vida. Com ela e nela, ele estabelece todas as relações/processos possíveis, como um fio tramado junto ao corpo. Se, de fato, assim a concebêssemos, teríamos uma relação de maior cuidado com ela, visto que sua projeção seria uma expansão de nosso corpo tramado e presente nela. Os fios que tecem essa trama seriam dotados da capacidade de deixar-se impregnar pela totalidade de seres e elementos existentes e integrantes deste mundo.

De acordo com Merleau-Ponty (2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 84), a problemática é:

compreender estas relações singulares que se tecem entre as partes da paisagem ou entre a paisagem e mim enquanto sujeito encarnado, e pelas quais um objeto percebido pode concentrar em si toda uma cena, ou tornar-se a imago de todo um segmento de vida. O sentir é esta comunicação vital com o mundo que o torna presente para nós como um lugar familiar de nossa vida. É a ele que o objeto percebido e o sujeito que percebe devem sua espessura.

Os entrevistados que consideram a paisagem como natureza descrevem-na como: "Paisagem que a gente olha, são os morros, morros bonitos, nossas praias {...}, aquelas pedras, montanhas de pedras e as praias, o mar, tudo coisa natural, nossa aí. A coisa mais bonita que nós achamos aqui!" (Entrevistado B). Para o entrevistado C, a paisagem "é coisa da natureza" (Entrevistado C) e ressalta isso enfaticamente durante os registros fotográficos mostrando que "isso é coisa da natureza". Ele parece colocar a natureza fora do contexto do próprio corpo. "Paisagem que a gente sabe é a natureza! As coisas {...} as árvores {...} tem que preservar a natureza {...} as coisas da paisagem (G). Paisagem é tudo limpo! Tudo aberto, não é como está agora, que tão desmatando tudo {...}. Aqui nós tinha essa lagoa aqui que era tudo aberto, agora está tudo acabado!" (Entrevistado D). Na percepção de D, é o que havia no lugar antes da ocupação humana. Logo, o ser humano não faz parte da paisagem original daquela área, já que, no passado, essa área era ocupada pelo mar.

Para Merleau-Ponty (2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. , p. 119), somente vemos uma paisagem nova porque temos, "com nossos olhos, o meio de surpreender, de interrogar e de dar forma a configurações de espaço e cor jamais vistas até então". Logo, a paisagem se comunica através dos sentidos e constitui-se em mensagem captada e posta no intelecto, mas, a partir disso, não estamos mais diante da paisagem, mas sim do que foi dito dela (FERNANDES, 2009FERNANDES, U. S. Paisagem: uma prosa do mundo em Merleau-Ponty. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 20, p. 23-47, 2009.). Assim, no intelecto, a paisagem já é produto de uma decodificação feita pelo sujeito. Na paisagem, as significações estão disponíveis no momento em que são apresentadas e a sociedade é autora dessa leitura a partir de sua cultura (FERNANDES, 2009FERNANDES, U. S. Paisagem: uma prosa do mundo em Merleau-Ponty. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 20, p. 23-47, 2009., p. 41).

Com relação aos principais landmarks (MAROTI; SANTOS; PIRES, 2000MAROTI, P.S; SANTOS, J. E; PIRES, J. S. R. Percepção ambiental de uma unidade de conservação por docentes do ensino fundamental. In: SANTOS, J. E.; PIRES, J. S. R. (Ed.). Estação ecológica de Jataí. São Carlos: RiMa, 2000. v. 1. p. 207-217.), evidenciados na paisagem por vários dos entrevistados (B, F, G, H, I, J), foram observados com maior frequência os morros, as árvores e o mar.

Alterações observadas na paisagem: todos os entrevistados da área do Farol de Santa Marta apontam, como principal alteração, a questão da ocupação humana, a maior densidade de residências em decorrência do turismo.

"Oh! Minha Nossa Senhora! Mudou muita coisa! As casas! Naquele tempo que eu vim pra cá, acho que tinha uns 30, 40, morador. Hoje não dá nem pra calcular {...} É uma casa em cima da outra {...} É muita gente!" (Entrevistado A). Na percepção dele, falta espaço. Para Merleau-Ponty (2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 10), o espaço é o "meio homogêneo onde as coisas estão distribuídas segundo três dimensões e onde elas conservam sua identidade, a despeito de todas as mudanças do lugar", ou seja, no presente caso, o espaço se mantém, apenas o lugar foi alterado.

Discorrer sobre as alterações observadas na paisagem por esses pescadores implica, necessariamente, um processo de recordar e reavivar a memória. Podemos reconhecer esse processo perceptivo como o raspar/destacar de várias camadas, como um palimpsesto - a exemplo da analogia proposta por Assis (2007ASSIS, A. C. H. Palimpsesto amoroso em Desmundo: contos de fadas. Lorena: CCTA, 2007.) ao estudar os contos de fadas. "Assim, toda recordação é sempre uma revelação de dois planos, nos quais memória e esquecimento permutam-se - de modo muito próximo da ideia das camadas palimpsésticas, em uma que é visível e a outra invisível" (ASSIS, 2007ASSIS, A. C. H. Palimpsesto amoroso em Desmundo: contos de fadas. Lorena: CCTA, 2007., p. 18). Em sua obra Palimpsesto amoroso em Desmundo: conto de fadas, a autora explica a analogia que tece com o palimpsesto, já que "os palimpsestos carregam consigo essa metáfora, uma vez que absorvem, em um mesmo 'invólucro ou caixa', camadas textuais que mantêm convivência simultânea em uma única superfície" (ASSIS, 2007ASSIS, A. C. H. Palimpsesto amoroso em Desmundo: contos de fadas. Lorena: CCTA, 2007., p. 23, grifo da autora); logo, esse raspar de camadas no intuito de recuperar o texto original poderia ser comparado ao processo de recuperação das imagens do passado, as paisagens vividas na recordação e memória desses sujeitos.

Para os pescadores da área da Ponta da Barra, a principal alteração foi gerada na área das lagoas. "Isso aqui era tudo aberto. Isso aqui tudo era mar. {...} era lá em cima do morro que o pessoal morava. Lá em cima do morro, dali pra baixo, depois de 1945, parece, pra cá, é que começaram a fazer essas estradas pra sair e a entrada de navio aqui também, aí começou {...} Era tudo aberto!" (Entrevistado D). Ao longo de sua fala, esse entrevistado descreve o mesmo processo de ocupação do espaço ocorrido na comunidade do Farol e aponta a poluição gerada na lagoa pelo lançamento de esgoto domiciliar e o comprometimento do pescado em função disso. Aqui percebemos, novamente, a dimensão do espaço e a alteração do lugar, contextos destacados por Merleau-Ponty (2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos).).

Embora o entrevistado E faça menção a esse fato, frisa ainda: "{...} Ali onde tem aquelas casas os botos pulavam ali e pegavam o peixe. {...} Ah! O boto vinha por aqui tudo. {...} Era tudo água {...} tudo água" (Entrevistado E). Quando questionado sobre os fatores responsáveis por tais alterações, explica: "O fator disso tudo aí foi esse molhes, que fizeram aqui da parte de cá" (Entrevistado E). Tanto o entrevistado D quanto o E mencionam a falta de fiscalização no processo de ocupação das áreas de lagoas.

Um pescador da Passagem da Barra (F), no que diz respeito às alterações, salienta:

A praia da Tereza hoje é uma praia turística {...} só tem coisa boa {...} casa bonita {...} É uma praia que hoje tu sai aí e só vê coisa boa! É uma praia de primeira! E aqui na região da ilha, aqui, é uma das praias mais bonitas que tem. Só vê casa linda e praia caprichada! Praia limpa, bem organizada, praia que só tem do bom e do melhor! Água boa! (Entrevistado F).

Cabe ressaltar que a percepção que ele possui realça a beleza como intimamente relacionada à estrutura que a praia oferece ao turista e ao modo de este gerenciar o espaço e o lugar, controlando possíveis processos agressores às condições locais. F apresenta uma visão da paisagem - praia - como recurso (SAUVÉ, 2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., 2005b) em função do potencial turístico, da organização e decorrente da mobilização dos turistas, disciplinando a ocupação dessa região.

Já para um pescador da praia da Galheta (G), a questão problema está nas áreas de lagoas em função da poluição das águas e do veneno decorrente da rizicultura: "Quando eles soltam aquelas águas lá, lá vem acabando tudo {...} mata peixe, siri, camarão, é tudo {...} Com relação à paisagem ao redor: {...} ela mudou um pouco {...} porque o homem mudou. Tem muito lixo, principalmente aqui na beira-mar {...} O pessoal tira os entulhos de lá e jogam nos combros {...}" (Entrevistado G).

Os problemas decorrentes da rizicultura e a supressão da vegetação nas áreas de entorno das lagoas também foram apontados pelo entrevistado J.

O entrevistado H alega que a paisagem: "{...} mudou o seguinte, para melhor. Porque antigamente aqui pra nós não tinha quase árvores. Era quase campo. Hoje tem essas malhas de eucalipto, agradeço que plantaram {...} Além da estrutura para veranistas/turistas" (Entrevistado H). Novamente, notamos a paisagem concebida como recurso (SAUVÉ, 2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., 2005bSAUVÉ, L. Uma cartografia das correntes em educação ambiental. In: SATO, M.; CARVALHO, I. C. M. (Org.). Educação ambiental: pesquisa e desafios. Porto Alegre: Artmed, 2005b. p. 17-44).

Enquanto o entrevistado G preocupa-se mais com a questão da natureza/paisagem, o H sinaliza a importância dessa paisagem para a infraestrutura turística. Isso pode estar associado ao fato de que, imersas em suas realidades, as pessoas "criam filtros que permitem relações diferenciadas com esse mundo", levando-as a "selecionar, organizar e conferir significados ao que vêm construindo imagens" (KUHNEN, 2011KUHNEN, A. Percepção ambiental. In: CAVALCANTE, S.; ELALI, G. A. (Org.). Temas básicos em Psicologia ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 250-266., p. 261). Tal construção é um aspecto da percepção, envolve a ação no mundo e não se limita aos aspectos cognitivos, mas permite a estrutura e identificação do ambiente (KUHNEN, 2011KUHNEN, A. Percepção ambiental. In: CAVALCANTE, S.; ELALI, G. A. (Org.). Temas básicos em Psicologia ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 250-266.).

Ao longo das narrativas, observamos que, além da alteração decorrente do adensamento das residências, da ação do turismo e das alterações nas áreas de lagoas, houve profundas alterações na atividade pesqueira, com reflexos sobre a estrutura/o funcionamento/ a dinâmica da paisagem.

Considerando que ocorreram transformações no tipo e no tamanho das embarcações, na localização e no tamanho dos galpões ao longo das praias, nas artes (instrumentos e técnicas) de pesca, no recebimento das embarcações na praia e no transporte do peixe, incorporamos que tais alterações repercutem sobre a percepção que temos da paisagem e sobre sua estrutura/funcionamento/dinâmica. Todos os pescadores enfatizaram as mudanças sobre a atividade pesqueira tradicional, com reflexos econômicos, sociais e ambientais. O avanço tecnológico influenciando a pesca industrial trouxe consequências e impactos sobre a pesca artesanal (pescadores A, B, F). Entre essas alterações, o entrevistado A alerta para a inexistência, atualmente, dos varais de secagem de redes, imprimindo outra distribuição espacial na paisagem.

{...} Daquele tempo pra hoje mudou muita coisa. Aqui era um varal pra estender uma rede, lá era outro varal para enxugar rede {...} Hoje não precisa mais enxugar as redes porque é tudo nylon. Nylon não precisa, quanto mais tempo deixar molhada {...} melhor! Naquela época {...} era barbante, fio de algodão. Apodrecia rápido. E tinha que ficar enxugando {...} Hoje pode tirar a rede, jogar num canto do galpão e deixar lá. {...} A Prainha mudou muito! (Entrevistado A).

O entrevistado B ressalta, ainda:

{...} ali naquele morro, por exemplo, a gente fazia a vigia, a gente olhava os cardumes de tainha. Hoje está cheio de casas aí; {...} mas ainda dá pra fazer, porque os pescadores fizeram um caminho e o caminho do pescador tá lá, ainda existe. Eles trancaram o caminhozinho pra gente ir, mas ainda dá (Entrevistado B).

Atualmente, no Farol, o olheiro (pescador que vigia a chegada dos cardumes) espreita-se entre as varandas das residências para enxergar o cardume de tainhas, pois as moradias dos turistas/veranistas ocupam o local onde eles se posicionavam antes. A relação com o morro, com o mar, com o peixe, com o galpão e com os homens - pescadores que aguardam no galpão - modificou-se. Atualmente há a necessidade de maior concentração, pois a visibilidade mudou. O sentido da visão, nesse caso, é bastante valorizado, a exemplo do que frisa Merleau-Ponty (1997MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. Lisboa: Veja, 1997. , p. 68): "A visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do ser". A capacidade do olheiro de perceber as diferenças na cor do mar pela presença do cardume de tainha se dá a partir da experiência construída ao longo do tempo. Com relação à manifestação da cor, para Merleau-Ponty (2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 284), "a cor, antes de ser vista, anuncia-se então pela experiência de certa atitude de corpo que só convém a ela e a determina com precisão". Nesse sentido, para o mesmo autor (MERLEAU-PONTY, 2009MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, v. 40).), a visão não é uma operação do pensamento, mas a relação direta do corpo com o mundo.

Na relação do olheiro com a paisagem, reconhecemos o imbricar da corporeidade e da percepção. O corpo fala e manifesta sinais, isso altera não somente a dinâmica do corpo na paisagem, mas também a percepção dessa paisagem. Incorporamos o pensamento de Merleau-Ponty (2006)MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos). ao relatar que as experiências perceptivas implicam umas às outras, e que a percepção do mundo é uma dilatação do campo de presença do sujeito; logo, o corpo é sempre agente e nunca objeto. Para ele, a apreensão dos significados se faz pelo corpo: "aprender a ver as coisas é adquirir certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal" (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos)., p. 212). Assim, a relação com a percepção é carregada de corporeidade. O corpo compreende seu mundo sem precisar de representações (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos).).

Os movimentos do corpo permitem que vejamos o que não havíamos visto antes, mas que sempre esteve lá, esperando para ser contemplado. Logo, o corpo e a percepção interpenetram-se, inserem-se mutuamente numa expressão que é decodificada intimamente na relação que se estabelece entre ambos. O corpo percebe as sensações que se manifestam recobertas de discurso e a percepção do mundo está sempre submetida à "semiotização da experiência" (TEIXEIRA, 2006TEIXEIRA, L. Razão e afeto: a argumentação na crítica da arte. Alfa, São Paulo, v. 50, n. 1, p. 145-158, 2006., p. 146). É o corpo que possibilita ao indivíduo sentir e perceber o mundo, os objetos, as pessoas. "É a realidade do corpo que nos permite imaginar, sonhar, desejar, pensar, narrar, conhecer, escolher" (NÓBREGA, 2007NÓBREGA, T. P. Merleau-Ponty: o filósofo, o corpo e o mundo de toda a gente! In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE - CONBRACE, 15, CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE - CONICE, 2., 2007, Recife. Anais... Recife: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, 2007. p. 1-10., p. 2). Por conseguinte, a percepção é uma experiência corporal.

Somente concebendo a amplitude do potencial corpóreo podemos desvelar o que se processa no fenômeno perceptivo, tendo em vista que, para Merleau-Ponty (2006MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 2006. (Tópicos).), desaprendemos a lidar com a percepção por darmos mais atenção à razão. Na obra O visível e o invisível (MERLEAU-PONTY, 2009MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, v. 40).), ele enfatiza que a percepção nasce no corpo; assim, a essência da percepção é o corpo.

O descontentamento com a falta de respeito para com os pescadores artesanais está presente na fala de vários deles (C, D, E, F, I.). Trazemos a expressão do entrevistado C "{...} pescador hoje em dia não tem mais direito de nada {...} Tem que ficar quieto, porque se disser alguma coisa {...} mesmo que esteja com a razão {...}". Os pescadores artesanais sentem-se afetados e almejam reconhecimento e respeito por parte dos órgãos competentes e da população que veraneia na região. Tal aspecto se reflete sobre o valor e o significado que a atividade pesqueira e o lugar têm para esses pescadores, conforme reconhece Corraliza (1998 citado por KUHNEN, 2011KUHNEN, A. Percepção ambiental. In: CAVALCANTE, S.; ELALI, G. A. (Org.). Temas básicos em Psicologia ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 250-266., p. 257).

O que consideram mais bonito na paisagem: "O que eu acho mais bonito na região {...} É o balneário que {...} que aumentou bastante, como eu disse, que o povo gosta, o lugar meio assim sossegado que o pessoal anda à vontade, é isso aí" (Entrevistado A).

Determinadas qualidades visuais da paisagem podem despertar a atenção do indivíduo, repelindo, facilitando ou dificultando a organização das informações. Além disso, a percepção ambiental possui dimensões psicossociais, entre elas: o afeto e as preferências em relação ao ambiente, como o grau de atratividade para as pessoas, aspectos históricos, políticos e econômicos (KUHNEN, 2011KUHNEN, A. Percepção ambiental. In: CAVALCANTE, S.; ELALI, G. A. (Org.). Temas básicos em Psicologia ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 250-266.). Portanto, podem influir sobre a manifestação de preferência, ou não, de determinada paisagem.

Para Fernandes (2009FERNANDES, U. S. Paisagem: uma prosa do mundo em Merleau-Ponty. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 20, p. 23-47, 2009.), os atributos da paisagem são carregados de significados decorrentes de uma opressão cultural e, embora seja necessária a neutralidade para retenção da paisagem, tal neutralidade não existe. O exposto é pleno de significações impressas pela cultura e pelos anseios de cada grupo social. Desse modo, os objetos que se constituem signos na leitura de uma paisagem já estão deformados, pois sofreram a influência de uma forma de vê-los.

Os significados de determinada paisagem diferem entre os sujeitos em função de diversos aspectos. Essa significação é feita pelo corpo e envolve nova compreensão do próprio corpo. Assim, sujeito e paisagem afetam-se mutuamente. Para compreender a origem da significação, faz-se necessário que nos destituamos de toda a significação previamente estabelecida e partamos de "um mundo não significante que é sempre o do criador" (MERLEAU-PONTY, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. , p. 85).

Tanto o entrevistado A quanto o B consideram que o processo de adensamento na área do Farol não é de todo negativo, uma vez que ambos dependem do turismo no período de verão, pois alugam suas casas para os turistas, face à redução da atividade pesqueira naquele período. Dessa forma, garantem, no verão, a renda financeira do resto do ano.

Os apontamentos feitos durante a realização do registro fotográfico demonstram que o terceiro entrevistado (C) destaca a beleza da "natureza do lugar" sendo o fator mais bonito, ressaltando a beleza do Farol como elemento (landmark) de destaque da paisagem.

Já o entrevistado D, com relação ao que considera mais bonito na paisagem, afirma:

pra nós aqui é o mar! Os botos pulando aqui no meio do canal. O pessoal aqui no restaurante, ali o pessoal almoçando e os botos na beira do mar {...} o boto fica ali {...} A baleia entrando aqui de vez em quando. Que é uma coisa também que Laguna tem {...} Todo ano entra {...} Aí o pessoal, todo mundo corre pra cá, pra ver, vem o pessoal lá do outro lado, vem daqui {...} vem gente pra caramba (Entrevistado D).

Esse aspecto pode ser comparado ao encantamento produzido pelas paisagens empregadas para a pintura artística. "A cada momento, enquanto nosso olhar viaja através do espetáculo, somos submetidos a certo ponto de vista, e esses instantâneos sucessivos não são passíveis de sobreposição para determinada parte da paisagem" (MERLEAU-PONTY, 2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 13-14). Cada coisa simboliza, evoca e provoca reações "favoráveis ou desfavoráveis", por isso o ser humano é reflexo dos "objetos que ele escolheu para ter a sua volta, {das} cores que prefere, {dos} lugares onde aprecia passear" (MERLEAU-PONTY, 2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 23). Logo, poderíamos dizer que o elemento da paisagem, landmark (MAROTI; SANTOS; PIRES, 2000MAROTI, P.S; SANTOS, J. E; PIRES, J. S. R. Percepção ambiental de uma unidade de conservação por docentes do ensino fundamental. In: SANTOS, J. E.; PIRES, J. S. R. (Ed.). Estação ecológica de Jataí. São Carlos: RiMa, 2000. v. 1. p. 207-217.), de maior expressão, para determinado sujeito, é o que o leva a manifestar maior ou menor ligação com essa paisagem. "Eu olhar assim pro mar, uma coisa tão linda que é {...}" (Entrevistado E).

Considerando, pois, a importância do envolvimento da população litorânea em projetos de sensibilização ambiental, em face do papel que a paisagem desempenha no desenvolvimento regional, tentamos, a partir da investigação do item homenagem ao lugar, identificar possíveis elementos da arte como táticas para a utilização futura em trabalhos de sensibilização ambiental, estabelecendo as modalidades artísticas que mais emocionam os entrevistados. A manifestação da homenagem, quando indicada pelos sujeitos por meio da pintura, do desenho e da música, expressa o desejo de imprimir algo de que não se possa mais esquecer, algo que realmente produza efeito no outro.

A expressão artística favorece a manifestação dos sentimentos e possibilita que se alcance o que, por outras vias, inúmeras vezes, parece intangível, pois "um dos méritos da arte {...} é o de fazer-nos redescobrir esse mundo em que vivemos, mas que somos sempre tentados a esquecer" (MERLEAU-PONTY, 2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 2).

Com exceção dos entrevistados A e C, que se manifestam pela pintura e desenho, respectivamente, todos os demais apontam a música como forma de manifestação da homenagem.

O entrevistado A afirma: "{...} eu preferia uma pintura pra todo mundo ver o nosso lugar" (Entrevistado A). "A pintura seria, portanto, não uma imitação do mundo, mas um mundo por si mesmo" (MERLEAU-PONTY, 2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 58). A pintura, na concepção desse autor, reconduz à visão do que as coisas são, destacando o papel das artes em geral neste processo, já que "é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer". Assim, para o presente estudo acerca da percepção da paisagem, cada sujeito percebe segundo sua própria impressão e impregnação no mundo; a paisagem é, para cada indivíduo, conforme o que se apresenta, parafraseando Merleau-Ponty (2004MERLEAU-PONTY, M. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Tópicos)., p. 56).

Em relação ao desenho como forma de homenagem, o entrevistado C manifestou a seguinte opinião: "Olha, você sabe que um desenho do Farol onde passa é muito bonito! Pra todo mundo, o desenho do Farol onde passa {...} nós, esse orgulho nós temos {...}" (Entrevistado C). Embora tenha mencionado a questão do desenho do Farol, em seu registro fotográfico, não o fotografou, mas o considera o elemento de destaque na paisagem.

Quanto à manifestação perceptiva por meio do desenho, Nóbrega (2008NÓBREGA, T. P. Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, Natal, v. 13, n. 2. p. 141-148, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413 >. Acesso em: 02 abr. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 143) salienta que "ao observar a cor, o desenho, os contornos, as proporções do corpo, as distorções das formas, podemos compreender a tese segundo a qual os sentidos não produzem um decalque do mundo exterior", e que a linguagem, na dimensão estética, possibilita outros arranjos para o conhecimento. Manifesta-se, portanto, "o universo da corporeidade, da sensibilidade, dos afetos, do ser humano em movimento no mundo, imerso na cultura e na história, criando e recriando, comunicando-se e expressando-se" (NÓBREGA, 2008NÓBREGA, T. P. Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, Natal, v. 13, n. 2. p. 141-148, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413 >. Acesso em: 02 abr. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 143).

É preciso que reconheçamos a dimensão do "afetar-se", da sensibilidade gerada através da música, a partir dela é possível tocar o sentimento das pessoas. Considerar as diversas manifestações da arte como sentidos da percepção artística é, portanto, indispensável aos processos sensibilizadores desencadeados na educação em geral e na Educação Ambiental em particular. Portanto, é plenamente aceitável o envolvimento, na área da Educação Ambiental, de tais manifestações na direção de sensibilizar para a importância da inter-relação com a paisagem. Assim, para o presente contexto de estudo, poderíamos esperar que a manifestação perceptiva dessa paisagem, desempenhada por meio da arte, pudesse expressar, além da relação dos sujeitos com essa paisagem, a possibilidade de afetá-los diante da linguagem simbólica oferecida pela arte de modo geral.

Quanto à percepção do que pode ser melhorado em relação à paisagem, o entrevistado A relatou: "nós aqui, o que nós mais queria nessa Prainha é sobre esse esgoto aí. Porque atrapalha muito os turistas {...} E uma hora que fizesse isso aí pra nós, eu acho que o Farol era melhor ainda" (Entrevistado A). Neste caso, a percepção está diretamente ligada ao uso do lugar como recurso (SAUVÉ, 2005aSAUVÉ, L. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 317-322, maio/ago. 2005a., 2005b), e, especificamente, como recurso para o turismo. Há, ao longo das narrativas dos sujeitos, destaque para a necessidade de maior e mais eficiente atuação da fiscalização das atividades pesqueiras, tanto industriais quanto artesanais. Além disso, os entrevistados I e J pontuam sobre a importância de atuação de todos - comunidade, veranistas, pescadores, turistas - para a criação do território pesqueiro. A Pastoral da Pesca de Laguna vem se mobilizando em um movimento nacional nessa direção.

Ao longo de toda a pesquisa, constatamos a conectividade entre as dimensões sociais, econômicas, ambientais e afetivas na percepção da paisagem. Identificamos, também, dificuldades de mobilização dos pescadores diante dos problemas observados nas comunidades, embora já haja tentativas de melhorias, quando apontam a rigidez da fiscalização da pesca artesanal dos pescadores tradicionais e a flexibilização na aplicabilidade de leis menos rígidas para os pescadores industriais, turistas e mergulhadores que exercem atividade pesqueira na região. Tais aspectos sinalizam elementos de conflito nas várias localidades, ainda que nem todos os pescadores explicitem isso abertamente.

Nessa direção, cabe a reflexão de Bhabha (2010BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 101):

É dessas tensões - tanto psíquicas quanto políticas - que emerge uma estratégia de subversão. Ela é um modo de negação que busca não desvelar a completude do Homem, mas manipular sua representação. É uma forma de poder que é exercida nos próprios limites da identidade e da autoridade, no espírito zombeteiro da máscara e da imagem {...} (BHABHA, 2010BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 101).

Em sua maioria, os entrevistados chamam a atenção para o fato de que há certa dificuldade de melhorar as condições da região em face da dificuldade nos processos de mobilização comunitária, embora reconheçam sua necessidade.

Hoje em dia ninguém mais quer se incomodar. O pessoal mais velho aí, ninguém quer {...} porque tanto que eles já fizeram, já lutaram, que hoje em dia eles desistiram de tudo. Eu também já participei de reunião de associação, de coisa, de tudo, mas não dá {...} cansamos, a gente não vê resultado {...} (Entrevistado D).

Para o entrevistado E, "se houvesse uma justiça rígida, aí endireitava alguma coisa {...} endireitava {...} garanto-lhe que endireitava. Que tem de mais errado é essa força de rede dentro da lagoa, que eles não proíbem. Então mata a criação toda e fica por isso! {...}" (Entrevistado E). Nesse contexto, os entrevistados F, G, I e J também relatam momentos importantes de luta por melhorias para a atividade pesqueira tradicional e reforçam a dificuldade de mobilização dos pescadores artesanais para lutar por seus direitos e para o que poderia ser feito.

A dimensão da educação: considerando que a Educação Ambiental se apresenta como uma dimensão que discute a relação da cultura humana com a natureza, urge considerá-la nesse processo de interpretação da percepção ambiental dos pescadores em relação à paisagem.

Sabemos que perscrutar o íntimo das pessoas, na clara intenção de esclarecer e convencê-las, por exemplo, de que nós todos somos e devemos estar igualmente comprometidos na busca por mecanismos homeostáticos nos diferentes estratos/segmentos da água, do solo, do ar, das plantas, dos bichos, da sociedade humana, não é algo simples. A educação deve incorporar a dimensão ambiental como importante componente do processo educativo, quer no âmbito da escola ou fora dela, afetando o modo de ser e viver do indivíduo e da sociedade como um todo. Acreditamos, a exemplo de Passos e Sato (2002PASSOS, L. A.; SATO, M. Educação ambiental: o currículo nas sendas da Fenomenologia Merleau-Pontyana. In: SAUVÉ, L.; ORRELANA, I. SATO, M. (Dir.). Sujets choisis en éducation relative à l' environnement : d' une Amerique à l' autre. Montrèal: ERE-UQAM, 2002. Tome I. p. 129-135. , p. 13) sustentados em Platão, que "{...} 'para educar, necessita-se de Eros'. Isso significa que necessitamos de paixão, prazer e amor pelo conhecimento e pelas pessoas. Sem isso, não é possível reinventar a EA".

Quando o entrevistado E chama a atenção para a realidade das crianças e da escola, é preciso discutir o papel da escola neste contexto. "{...} Mas agora {...} essas crianças que estão na aula, que deixam da aula {...} ganham vale-gás, ganham outras coisas {...} vão colocar a rede aí dentro, não tem peixe {...} e o esgoto aí pra {sic} dentro, é uma nojeira" (Entrevistado E).

É fundamental resgatarmos a importância de a escola trabalhar na perspectiva de inserção e permanência das crianças no ambiente escolar, sobretudo porque é condição sine qua non para a formação do cidadão. É indispensável prepará-lo para lidar com as dificuldades que se apresentam na comunidade. O papel transformador da escola é inegável. Nesse aspecto, a Educação Ambiental pode dar grandes contribuições.

No caso das comunidades envolvidas neste estudo, verificamos a tendência de os pescadores desejarem que seus filhos busquem outra atividade econômica, dadas as dificuldades enfrentadas, atualmente, na pesca. Isso pode ter graves repercussões, entre elas, a extinção da pesca artesanal na região. É preciso contemplar processos educativos formais e não formais que recuperem a autoestima dos pescadores e sua capacidade de mobilização, bem como a formação de cidadãos críticos, éticos, justos, responsáveis, envolvidos e comprometidos com a luta por melhorias socioambientais.

Nessa direção, a Educação Ambiental poderia dar importante contribuição, envolvendo-os e inserindo-os num contexto reflexivo de formação crítica, transformadora e emancipatória defendida por Guimarães (2006GUIMARÃES, M. Educação Ambiental: da forma à ação. Campinas: Papirus, 2006. ), Zakrzevski e Sato (2004ZAKRZEVSKI, S. B. ; SATO, M. A educação ambiental a distância: seu alcance e possibilidades na formação docente. In: ZAKRZEVSKI, S. B. ; BARCELOS, V. (Org.). Educação ambiental e compromisso social: pensamentos e ações. Erechim, RS: EdiFAPES, 2004. p. 99-122. (Pensamento Acadêmico, 33). ), Carvalho (2004CARVALHO, I. C. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. São Paulo: Cortez, 2004.), entre outros. Assim, justificamos uma Educação Ambiental sustentada na fenomenologia de Merleau-Ponty porque a humanidade está pautada nas decisões e engajamentos assumidos por ela, porquanto "{...} todo processo educacional nos contagia e marca, não apenas pelo que a humanidade vive no presente, mas por aquilo que ela aspira a vir-a-ser {...}" (PASSOS; SATO, 2002PASSOS, L. A.; SATO, M. Educação ambiental: o currículo nas sendas da Fenomenologia Merleau-Pontyana. In: SAUVÉ, L.; ORRELANA, I. SATO, M. (Dir.). Sujets choisis en éducation relative à l' environnement : d' une Amerique à l' autre. Montrèal: ERE-UQAM, 2002. Tome I. p. 129-135. , p. 10).

Para Demmer e Pereira (2011DEMMER, B. C.; PEREIRA, V. C. C. Educação ambiental e estudo da paisagem: a percepção para a responsabilidade socioambiental. Olhar de professor, Ponta Grossa, v. 14, n. 2, p. 255-272, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/.../2515 >. Acesso em: 02 abr. 2012.
http://www.revistas2.uepg.br/index.php/o...
, p. 263), "o potencial crítico do ser humano é criador e não repetidor, pois o horizonte da crítica é sempre aberto e infinito, e não termina num projeto dado". Dessa forma, consideramos que a habilidade/capacidade de exercer a crítica deve ser estimulada, encorajada e constituir-se não somente em um objetivo diluído no contexto educativo, mas delineador de princípios e ações cidadãs.

O ser humano e a paisagem são e estão indissociáveis, logo, considera-se, como sustenta Huerta (2006HUERTA, J. M. Educación ambiental y conservación de paisages frágiles. In: CENEAM. Reflexiones sobre educación ambiental II. Carpeta Informativa Del CENEAM 2000 - 2006. Naturaleza y Parques Nacionales. CENEAM, 2006. p. 203 - 212. (Serie educación ambiental). Disponível em : <Disponível em : http://www.magrama.gob.es/.../ceneam/.../reflexiones-educacion-ambiental-car >Acesso em: 10 out., 2012
http://www.magrama.gob.es/.../ceneam/......
), que a paisagem é um potente recurso para a Educação Ambiental, já que possibilita a leitura e interpretação das relações que se estabelecem entre a comunidade e o ambiente.

Portanto,

{...} em relação àqueles que ao mesmo tempo sofrem e são agentes de sofrimento (para a natureza, para seus semelhantes e para si mesmos), nossa estratégia deve ser outra. Para essas pessoas, necessitamos ser mais que nunca educadores. Precisamos saber ao mesmo tempo compreendê-las e respeitá-las, nas suas dificuldades {...} (PASSOS; SATO, 2002PASSOS, L. A.; SATO, M. Educação ambiental: o currículo nas sendas da Fenomenologia Merleau-Pontyana. In: SAUVÉ, L.; ORRELANA, I. SATO, M. (Dir.). Sujets choisis en éducation relative à l' environnement : d' une Amerique à l' autre. Montrèal: ERE-UQAM, 2002. Tome I. p. 129-135. , p. 13)

Contudo, é fundamental responsabilizá-las e torná-las conscientes. Marin e Lima (2009MARIN, A. A.; LIMA, A. P. Individualização, percepção, ambiente: Merleau-Ponty e Gilbert Simondon. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 3, p. 1-8, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 >. Acesso em: 04 abr. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) propõem uma linha desafiadora para a Educação Ambiental:

A uma Educação Ambiental amoral, não imperativa, indeterminada, acolhedora dos disparates e da criação. Que reivindique para si alguma leveza e fluidez. Do pré-formal, do pré-individual. Que desestruture as operações corriqueiras do entendimento e, quem sabe, leve ao colapso seus próprios instrumentos descritivos. Para acessar outras nuances do mundo, o sensível, o não dito, o invisível, o impossível, o impensado, em que criação e emoção vibram em dissoluções de formas e consistências, em luminosidade e fluidez (MARIN; LIMA, 2009MARIN, A. A.; LIMA, A. P. Individualização, percepção, ambiente: Merleau-Ponty e Gilbert Simondon. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 3, p. 1-8, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 >. Acesso em: 04 abr. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 7).

Algumas considerações

Observamos que as alterações registradas pelos sujeitos correspondem às alterações ocorridas na paisagem em cada uma das diferentes comunidades da região litorânea de Laguna. Além disso, há algumas diferenças perceptivas entre os grupos de pescadores das comunidades e estas se dão justamente de acordo com a intimidade com o lugar.

Embora os pescadores apontem os problemas que existem em suas respectivas regiões, enfatizam a importância do turismo para a economia local (A, B, F, H, I), já que essa atividade, de algum modo, aquece a economia e auxilia a sobrevivência das famílias.

Estudar essas pessoas e seu entorno tem sido uma doce e instigante viagem introspectiva. É como clarear a visão distante que possuíamos dos pescadores para um olhar respeitoso aos seres que navegam sobre águas e sob o sol, com a missão de trazer, para a terra, vida para a vida.

Gestos simples, histórias comoventes, marcas profundas de grandes buscas e, também, de grandes perdas. Amáveis, atenciosos, dispostos a dividir seu tempo e visão de mundo com uma figura, até então, totalmente estranha. As falas, as fotos e os diferentes espaços, tempos e olhares dos pescadores permitiram interpretar e compreender um pouco acerca dessa paisagem, dos seus atores, dos homens e das mulheres que nela vivem e tecem não apenas redes de pesca, mas redes de saberes e de profundas e estreitas relações de pertencimento com o entorno.

Os pescadores alimentam histórias interessantes, marcadas por lutas contra as dificuldades impostas pela natureza, pelo tempo e, principalmente, pelo ser humano. Neste último caso, em grande parte, consideram ser a ganância o sentimento humano que mais afeta a vida do pescador artesanal. Mas, seja como for, insistem que viver da pesca tenha sido, e ainda seja, o que melhor fazem, desejam e sabem fazer.

Quando falam da paisagem, expressam seus pensamentos pela constatação das alterações impetradas nela, que adquire não somente sentido, mas também sentimentos, emoções, afetos, que contribuem para a compreensão das pessoas, da paisagem e das relações entre elas em sua expressão mais ampla e, ao mesmo tempo, mais profunda. Incorporam, ainda, elementos como as mudanças de lua, dos ventos, das marés, em tempos decorridos e corridos com dificuldades, limitações, atenção e respeito aos ciclos da natureza, aspectos estes que merecem ser incorporados por uma Educação Ambiental que se almeje plena de inteireza.

O estudo reforçou o entendimento de que uma Educação Ambiental "plena", dialógica, comprometida com o planeta, suas estruturas e seres, faz-se também com uma atenção redobrada aos saberes e percepções manifestadas ou silenciosas dos sujeitos/atores, no presente caso, os pescadores tradicionais; que o universo perceptivo destes deve ser considerado se quisermos compreender e tratar as questões ambientais em sua totalidade e profundidade. Logo, ao propor ou subsidiar projetos/processos/ações de Educação Ambiental nas comunidades estudadas, o universo perceptivo dos pescadores necessita ser incorporado, valorizado, e tal construção deve pautar-se sobre esse viés; que nós, seres do mundo acadêmico, precisamos nos render, também, às manifestações e silêncios daqueles seres oriundos da labuta diária em mar aberto, nas enseadas, nos costões, nas praias, nos recantos e nas lagoas das regiões litorâneas, tão ricas esteticamente e em diversidade, mas continuamente tão fragilizadas sob a ótica socioambiental.

Incorporamos a dimensão do afetar-se diante do mundo, neste caso, diante da paisagem e de seus narradores. Fomos afetados pelos olhares, significados e silêncios dos pescadores frente à paisagem percebida e, mais do que nunca, ficamos convencidos de que à educação, tanto em seu processo formal quanto não formal, e à Educação Ambiental - mais especificamente - compete considerar os sujeitos e a paisagem como integrantes e partícipes da construção de saberes e da formação de cidadãos comprometidos com a sustentabilidade e com a sociedade que almejamos conceber.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2013
  • Aceito
    14 Jan 2016
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