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CIRCULAÇÃO E APROPRIAÇÃO DE CONCEPÇÕES EDUCATIVAS: PENSAMENTO ILUSTRADO E MANUAIS PEDAGÓGICOS NO MUNDO LUSO-AMERICANO COLONIAL (SÉCULOS XVIII-XIX)* 1 A pesquisa da qual deriva este texto é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG.

RESUMO:

A produção intelectual entre os séculos XVII e XVIII, destacou os métodos de estudos e seu papel no desenvolvimento de ideias sobre as condutas sociais e a educação desejáveis para os diferentes grupos sociais. À educação era dada a missão de "modelar uma nova humanidade", conforme expressão de Condorcet. Nessa perspectiva universalista e ilustrada, a educação seria instrumento para a organização harmoniosa da sociedade pela disseminação de valores e normas de comportamento. O objetivo desta comunicação é analisar a circulação e a apropriação de concepções educativas no mundo luso-americano, entre o século XVIII e o início do século XIX, por meio de obras do pensamento ilustrado e dos manuais pedagógicos então circulantes. Pretende-se confrontar esses textos a partir das concepções de educação e instrução, buscando-se verificar sua presença nos meios administrativos e educacionais no contexto da difusão do pensamento ilustrado e das reformas pombalinas da educação, a partir de 1759.

Palavras-chave:
Ilustração; Educação; Brasil colonial; Civilidade; Manuais pedagógicos.

ABSTRACT:

The intellectual production influenced by modern thinking, between the seventeenth and eighteenth centuries, has highlighted the propositions about the study methods and their role in the development of ideas about social behavior and desirable education for different social groups. They influenced the political process of reforms that took place in several European states in the second half of the eighteenth century. Education was given the mission of "shaping a new humanity" according to Condorcet's expression. In this universalist and enlightened perspective, education would be an instrument for the harmonious organization of society through the dissemination of values and behavior standards. Based on these principles, the purpose of this article is to analyze the circulation and appropriation of educational concepts in the American Portuguese world, between the eighteenth and early nineteenth century, through works of the enlightenment thinking and current teaching manuals of that period. It is intended to confront these texts from the conceptions of education, instruction and civility, seeking to verify their presence in administrative and educational fields in colonial Brazil, particularly in the context of the spread of illustrated thinking and the Pombaline education reforms from 1759 and on.

Keywords:
Enlightenment; Education; Colonial Brazil; Civility; Teaching manuals.

Uma importante produção intelectual influenciada pelo pensamento moderno, entre os séculos XVII e XVIII, deu destaque às proposições acerca dos métodos de estudos e seu papel no desenvolvimento de ideias sobre as condutas sociais e a educação desejáveis para os diferentes grupos sociais. Elas influenciaram o processo político de intervenções ocorridas em vários estados europeus na segunda metade do setecentos, tanto em contextos revolucionários quanto reformadores. À educação era dada a missão de "modelar uma nova humanidade", conforme expressão de Condorcet (1792). Nessa perspectiva universalista e ilustrada, a educação seria um instrumento para a organização harmoniosa da sociedade por meio da disseminação de valores e normas de comportamento. Ainda herdeiras das preocupações modernas acerca da construção da civilidade e da formação de um "novo homem", muitas proposições expressas na produção intelectual, nas leis, nas determinações administrativas, bem como na produção de obras de caráter pedagógico, davam ênfase às questões relacionadas à civilização e à civilidade, alvos últimos dos processos formativos, ou seja, da educação.

Muito se tem estudado sobre as concepções de civilização e civilidade presentes no ambiente social e cultural do ocidente entre os séculos XVI e XIX, particularmente no que se refere às suas formulações presentes em obras destinadas à educação moral e religiosa. Manuais de catecismo e de civilidade têm sido sistematicamente analisados sob esse ponto de vista, mas ainda é necessário investir mais na discussão sobre os conceitos de educação presentes não apenas naquelas obras, também nos discursos legal e administrativo e nas práticas educativas então mais recorrentes, evitando-se o risco de considerar que o termo educação explique-se por si só ou que se constitua em conceito de entendimento universal.

Partindo desses princípios, o objetivo deste artigo é analisar as concepções educativas no mundo luso-americano, entre o século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, por meio de obras do pensamento ilustrado e dos manuais pedagógicos circulantes naquele período. O confronto desses textos a partir das concepções de educação, instrução e civilidade pode ajudar na discussão sobre sua presença nos meios administrativos e educacionais no Brasil colonial, particularmente no contexto da difusão do pensamento ilustrado e das reformas pombalinas da educação, a partir de 1759.

Educação e instrução designavam, de maneira geral, o processo de formação dos indivíduos para que estes se integrassem adequadamente à vida em sociedade, conforme as referências e os valores aceitos e legitimados. Nas formulações correntes durante o chamado Antigo Regime, educar e instruir pareciam muitas vezes confundidos um com o outro, ou sobrepondo-se quanto aos seus objetivos. Em sua clássica e fundante obra, Didactica Magna, publicada em 1657, Comenius afirmava que ensinar significava fazer com que a juventude fosse "formada nos estudos", "educada nos costumes" e "instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e futura". Suas definições indicavam a associação de educação com a ideia de formação voltada para o convívio social. Conforme o autor, educar significava

{...} providenciar para que os espíritos dos jovens sejam preservados das corruptelas do mundo e para que as sementes de honestidade neles lançadas sejam, por meio de admoestações e exemplos castos e contínuos, estimuladas para que germinem felizmente e, por fim, providenciar para que as suas mentes sejam imbuídas de um verdadeiro conhecimento de Deus, de si mesmas e da multiplicidade das coisas; para que se habituem a ver a luz à luz de Deus e a amar e a venerar, acima de tudo, o Pai das luzes. (COMENIUS, 2001Comenius, I. A. Didactica Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001., Tópico 22).

Já a instrução, para além de rechear os jovens com conteúdos, seria o meio de

{...} abrir-lhes a inteligência à compreensão das coisas, de modo que dela brotem arroios como de uma fonte de água viva, e como, dos "olhos" das árvores, brotam os rebentos, as folhas, as flores e os frutos, e, no ano seguinte, de cada "olho", nasce de novo um outro ramo com as suas folhas, as suas flores e os seus frutos. (COMENIUS, 2001Comenius, I. A. Didactica Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001., Fundamento V, Tópico 22).

Para Comenius, portanto, a educação era parte do processo de adequação do indivíduo à ordem social e aos valores cristãos, nesse caso, influenciados pelo movimento da Reforma. Essas definições, contudo, estavam muito próximas daquelas defendidas por autores católicos, como Jean-Baptiste de La Salle, para quem a educação teria papel fundamental no movimento de combate às religiões reformadas, sobretudo por meio de prescrições morais2 2 Les règles de la bienséance et de la civilité chrétienne (1695) e Conduite des écoles chrétienne (1717). .

Mas não apenas a educação como formação estritamente moral de fundamentos religiosos interessava aos autores da época. A formação do homem civil, apto à convivência social e íntimo das regras da civilização das boas maneiras, estava no horizonte de diversos autores dos séculos XVII e XVIII, ajudando a definir o que seria a educação e quais os seus propósitos. John Locke, em seu livro Some thoughts concerning education (1692), privilegiava a educação do gentleman, expressando o entendimento presente na sociedade do Antigo Regime de que a educação das camadas populares se daria por meio dos exemplos oferecidos pelas elites. Sendo assim, cuidar da educação destas últimas reverteria no bem de toda a sociedade. Refletindo sobre a natureza da educação e da instrução, Locke estabeleceu uma valoração para ambas, privilegiando a educação frente à instrução. Para ele, esta última seria a dimensão menos importante de todo o processo de formação do indivíduo, pois ela só poderia frutificar em terreno fertilizado pela educação para os bons costumes.

Autor que não pode ser esquecido aqui, Rousseau também destacou a educação como instância formativa, sobretudo ética. Ela seria o fundamento da formação intelectual do indivíduo e poderia ocorrer com o mínimo concurso da instrução. Embora tenha tratado da educação mais verticalmente em Émile ou De L´éducation (1762ÉDUCATION. In: Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. ARTFL Encyclopédie Project. Department of Romance Languages and Literatures. University of Chicago. Disponível em: <Disponível em: http://portail.atilf.fr/cgi-bin/getobject_?a.34:114./var/artfla/encyclopedie/textdata/IMAGE/ >. Acesso em: 15 ago. 2015.
http://portail.atilf.fr/cgi-bin/getobjec...
), foi na obra Considérations sur le gouvernment de Pologne et sur sa réformation projetée (publicada postumamente em 1782) que Rousseau tratou da instituição de uma educação nacional que servisse à formação das inclinações patrióticas, deixando-se ao âmbito do privado e do doméstico a instrução das crianças e dos jovens. Veja-se aqui, também, a tendência à separação conceitual entre educação e instrução, com pequenas variações, entre esses autores.

Na Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, dirigida por Diderot e D'Alembert (editada entre 1751 e 1772), várias dimensões são dadas à conceituação de educação, desde "o cuidado que se toma de nutrir, criar e instruir as crianças", até o propósito de atentar para "a saúde e a boa conformação do corpo", e para "o que concerne à retidão e instrução do espírito", e "os hábitos e as qualidades sociais". A partir desses princípios definidores, o verbete educação da Encyclopédie enfatiza a ideia de educação em sua relação com a formação do cidadão para o bem do Estado e de sua ordem, reforçando, portanto, uma definição de educação como formação. A instrução, assim como em outros textos da época, é também associada na Encyclopédie à aquisição de conhecimentos e de competências, sendo "tudo o que é capaz de nos esclarecer sobre qualquer objeto que seja", de "nos instruir pelos discursos, pelos escritos, pelas razões, pelos fatos, e pelos exemplos" .

No que interessa ao universo espaço-temporal deste artigo, a presença daquelas ideias acerca da educação pode ser parcialmente vislumbrada na produção intelectual portuguesa do século XVIII. Uma primeira porta de entrada para a análise das conceituações de educação correntes àquela época são os dicionários. Raphael Bluteau em seu conhecido Vocabulário Portuguez e Latino (1712)BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de JESU, 1712., define educação como "criação {...} para a direção dos costumes. {...} o que tem cuidado da educação de alguém", definição que orienta as suas derivações: educar seria "criar" e educado seria "criado, ensinado". Aqui, criação e ensino não se distinguem, pois Bluteau define "ensino" tanto como o ato de criar quanto o objeto do ensino. Interessante é observar que ensino também vai ser identificado à formação civilizada, relacionado à cortesia: "é tratamento de homens bem doutrinados, ou por experiência da Corte, & da Cidade, ou por ensino de outros, que nela viveram". Tal tratamento reforça a percepção de que educação é estreitamente associada à ideia de formação do indivíduo para a vida social, no sentido de incutir nele os valores da boa sociedade. A ideia de doutrinação também aparece mencionada, e isso pode nos ajudar a compreender o sentido dado a diversos tipos de obras destinadas a essa formação das crianças e dos jovens, bem como aos sentidos presentes no discurso de autoridades civis e eclesiásticas integrantes da administração colonial, como se procurará analisar neste artigo.

Mesmo que utilize outros elementos para definir o que seria a instrução, o Vocabulário Portuguez e Latino acaba por aproximar novamente a ideia de formação, ao definir instrução como "a ação de instruir. Instrução dos meninos", bem como "documentos, ou princípios de doutrina, para conhecimento das ciências assim humanas como divinas, como também para a vida moral." Mais uma vez, a ação e o objeto se definem a partir do mesmo ponto, e a sutil diferença entre educação e instrução parece estar no fato de que a segunda se faria por meio de instrumentos normativos mais precisos, enquanto a primeira estaria orientada por princípios mais gerais.

Publicado algumas décadas depois do Vocabulário Portuguez e Latino, o Diccionario da lingua portuguesa (1789), de Antonio de Moraes Silva, define educação como "criação, que se faz em alguém, ou se lhe dá; ensino de coisas, que aperfeiçoam o entendimento, ou servem de dirigir a vontade, e também do que respeita ao decoro". Já instrução tem a definição que, mais uma vez, contempla tanto a ação quanto o objeto dessa ação: "ensino, educação, documento. Apontamento, regimento, que se dá alguém para se reger por ele".

Em outros dicionários publicados já nas primeiras décadas do século XIX, vemos que esses sentidos se mantêm praticamente repetindo-se as mesmas definições constantes nas obras publicadas no século XVIII. O Novo Diccionario da Lingua Portuguesa, publicado em Lisboa em 1806, define instrução como sendo "documento, ensino, doutrina, apontamento que se dá a alguém para governar-se", e instrução como ensinar, bem como "fazer advertência". O Diccionario da Lingua Brasileira, publicado por Luiz Maria da Silva Pinto em 1832, define educação como "criação com ensino de doutrina e bons costumes". Embora esse autor não tenha escrito o verbete instrução, o termo aparece definindo o ensino (instrução, educação), bem como catequese.

Avançando em relação às definições formais presentes nos dicionários, faz-se necessário analisar brevemente como alguns importantes autores portugueses abordaram o problema da educação, particularmente preocupados com a boa formação dos súditos e com a construção da civilidade moderna em Portugal. Em suas obras, fica clara a influência de alguns clássicos como Locke, Fénelon e Rousseau. Em Apontamentos para a educação de um menino nobre, Martinho de Mendonça de Pina e Proença estava imbuído das concepções de educação relacionadas à formação ética e moral do indivíduo para a vida em sociedade, particularmente inspiradas em John Locke. Segundo Pina e Proença, a formação seria a base fundante de toda a educação, tendo como suporte os elementos ligados à instrução:

Não é o meu intento diminuir a estimação das letras Latinas, e Gregas; mas encaminhá-las ao verdadeiro fim da sabedoria, a que pode contribuir a lição dos Autores antigos, que oferecem prudentes máximas, e ilustres exemplos de prudência, moderação e bons costumes: mas como ordinariamente na educação dos meninos se propõem, como fim único, o que só pode ser meio para conseguir o verdadeiro fim; pareceu útil impugnar com todas as forças a persuasão vulgar, com que erradamente se julga bem educado quem tem a memória cheia de muitas vozes, e fatos, ainda que no discurso lhe falte a perspicácia, no juízo a madureza, e na vontade a inclinação virtuosa. (PINA E PROENÇA, 1734PINA E PROENÇA, Martinho de Mendonça de. Apontamentos para a educação de hum menino nobre. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1734., p. 17-18)

As reflexões de Pina e Proença colocavam a instrução no campo do desenvolvimento de conhecimentos e de habilidades como alicerces para a educação moral e destinada à construção da civilidade moderna. O fato de seu pensamento ser direcionado à educação das elites coaduna-se com a concepção corrente de educação como exemplo a ser dado, preferencialmente, pela nobreza. Para ela, além dos fundamentos morais e da educação para a civilidade, seria útil o ensino de conhecimentos que a preparassem para o serviço do Estado e da Religião. É o que define, para Pina e Proença, instrução:

A verdadeira instrução, que deve procurar um Mestre, não consiste em fazer a memória do seu Discípulo um escuro, e confuso armazém de fatos, e de vozes; mas sim em lhe ordenar, e aclarar as noções, que correspondem aos mais vulgares termos; costumá-los a distingui-las bem, e a conhecer nelas atentamente, as proporções, e respeitos, que umas dizem a outras; ensiná-lo a vencer os seus próprios apetites, inspirar-lhe um amor à razão, e boa ordem, ensinar-lhe os fundamentos da sociedade civil, de que nasce a obrigação de obedecer ao Soberano, e expor a vida, quando convém, à República. (1734, p. 183-184)

Em sua conhecida obra Verdadeiro método de estudar , tida como uma das principais influências na elaboração das chamadas reformas pombalinas da educação3 3 As reformas foram iniciadas durante o reinado de D. José I (1750-1777), sob o comando de seu poderoso ministro Marquês de Pombal, e sofreram alguma continuidade ao longo dos reinados de D. Maria I (1777-1816) e de D. João VI (1816-1826) , Luis Antônio Verney (1746) formulou importante crítica sobre o entendimento de educação exclusivamente como formação moral e ética, postulando que ela deveria ser fundada nos princípios da razão, e não da mera especulação. Interessado numa educação útil para o bem do Estado e da sociedade - lembremo-nos das inquietações dele e de outros portugueses com a situação desvantajosa de Portugal frente a outras nações europeias -, Verney reorientava o conceito de educação, fundindo-o ao da instrução. Como ambos concorreriam para a formação de um indivíduo ativo e útil ao desenvolvimento do Estado, a educação de caráter formativo com fundamentos morais teria o mesmo status que a instrução (o ensino de conhecimentos práticos). Focado nos problemas do ensino em Portugal da época e na formulação de propostas para reorientá-lo, Verney defendia uma educação capaz de formar a população portuguesa de maneira mais eficaz por meio de um ensino mais racional e aplicativo.

Não obstante fosse um crítico do controle eclesiástico sobre a educação, Antonio Nunes Ribeiro Sanches, autor do célebre Cartas sobre a educação da mocidade (1760), tratou do tema procurando conciliar a educação civil à formação cristã dos súditos. Adepto da necessidade de reformas que ajudassem a transformar algumas dinâmicas de funcionamento da sociedade portuguesa - ao menos no que diz respeito à atuação das elites a serviço do Estado -, Ribeiro Sanches privilegiava, em suas ideias, a educação desses segmentos sem, contudo, romper sensivelmente com as noções já correntes de educação e instrução. Os sentidos atribuídos por ele convergem para as tendências que viemos analisando até aqui, ou seja, de que a educação estivesse relacionada à ideia de formação geral do indivíduo para o convívio social nos quadros culturais cristãos (católicos, neste caso) e que a instrução fosse parte daquela, e estivesse mais próxima da aquisição de conhecimentos e habilidades úteis:

{...} propondo a virtude, a paz e a boa-fé, por alvo desta educação, e a doutrina e as ciências, como meio para adquirir estas virtudes sociáveis e cristãs. Nunca me sairá do pensamento formar um Súdito obediente e diligente a cumprir as suas obrigações, e um Cristão resignado a imitar sempre, do modo que alcançamos aquelas imensas ações de bondade e de misericórdia. (SANCHES, 1922SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Nova ed. rev. / Maximiano de Lemos. Coimbra: Imp. da Universidade, 1922., p. 109).

Assim, no campo da moral se inscreveria a educação, enquanto os conhecimentos "práticos" seriam o domínio da instrução. Mas não só. Esses conhecimentos seriam, também, o meio pelo qual a formação moral se daria. A menção à ideia de "imitação" expressa o entendimento de Ribeiro Sanches acerca da educação também como "exemplo", sobretudo aquele que deveria ser dado pelas elites às classes subalternas, sempre dispostas a imitar as ações "dos seus maiores" (SANCHES, 1922SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Nova ed. rev. / Maximiano de Lemos. Coimbra: Imp. da Universidade, 1922., p. 115).

Autores como os mencionados até aqui produziram obras de reflexão geral sobre a educação em sua época, suas características, seus sentidos e seus objetivos, dedicando-se a propor o que julgavam ser as melhores orientações para que, num contexto de possíveis mudanças, de políticas reformadoras, o Estado e, eventualmente, a Igreja atuassem no desenvolvimento da educação mais útil à sociedade. Mas também dedicaram-se a chamar a atenção das famílias e dos mestres para seus papéis nesse esforço formativo.

Outros foram os que se propuseram a escrever sobre as práticas possíveis nos quadros dessas concepções de educação e de instrução, compondo obras que, numa perspectiva contemporânea, poderiam ser chamadas de "manuais", voltadas para os pais e os mestres, e constituídas de orientações e conteúdos considerados fundamentais para a condução da educação dada às crianças e aos jovens, fosse em casa ou na escola. Método, escola, instrução, compêndio eram algumas das denominações mais comuns e presentes nos títulos desses livros, que geralmente combinavam o catecismo cristão com o método para a aprendizagem das primeiras letras (ler, escrever e contar), regras de civilidade e, em alguns casos, geografia e cronologia, por exemplo.

Além dos livros de autoria de portugueses, circularam muitas traduções, geralmente de obras francesas, destinadas à educação moral e à instrução sobre as regras de civilidade. Dentre estes, por exemplo, o Elementos da Civilidade e da Decência para a instrução da mocidade de ambos os sexos (1788), Método de ser feliz ou catecismo, especialmente para uso da mocidade (1787), o Tesouro de meninas ou diálogos entre uma sábia aia e suas discípulas (1783), e A Escola dos bons costumes, ou reflexões morais e históricas (1786).4 4 As datas referem-se ao ano de publicação em Portugal. Esta última, traduzida por D. João de N. Sra. da Porta Siqueira, acrescentava à obra de Jean-Baptiste Blancard um "tratado prático da civilidade portuguesa" de autoria do próprio tradutor. No seu prólogo, ele enaltece a obra original como uma fonte de exemplos de bons costumes, com o intuito de "educar a Mocidade, e de a instruir na honra e na virtude". Mais uma vez, transparecem nesses livros as noções de educação como formação geral e base para o desenvolvimento da instrução que levaria às crianças e aos jovens os conhecimentos fundamentais para se tornarem bons súditos cristãos.

Entre as obras desse tipo produzidas em Portugal - algumas delas já razoavelmente conhecidas e estudadas -, ressalta a associação entre essas duas dimensões dos processos educativos na combinação entre o catecismo cristão e os preceitos morais, com o aprendizado da leitura. Essas características e a ênfase dada nesses livros à utilidade daquele aprendizado para o acesso à leitura das máximas morais e à doutrina nos força a rever, ao menos em parte, a ideia de que a valorização da alfabetização seria a marca das sociedades protestantes em vista do estímulo e mesmo da necessidade da leitura da Bíblia. Importa relativizar tal interpretação, não perdendo de vista que isso implicava também a valorização da disseminação da instituição escolar, sobretudo na exortação a que o poder político assumisse a responsabilidade por ela. Nos países católicos, a julgar por textos como os que viemos analisando, essas duas coisas não estariam necessariamente conectadas, ou seja, valorizar a alfabetização como instrumento para o refinamento da educação moral e religiosa não significaria clamar pela criação de escolas, sobretudo pela iniciativa do Estado.

Um aspecto marcante nesses livros publicados em Portugal na segunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX é a visão de que o acerto e o rigor do método seriam garantia de obtenção de uma educação bem-sucedida. Ao método estaria associada a clareza das orientações para o desenvolvimento dos processos de ensino da leitura, da escrita, da civilidade e da doutrina, conforme regras estabelecidas distintamente para cada caso e que envolveriam explicações sobre o que, como e por que das coisas. Em certo sentido, observa-se o recurso - muitas vezes explicitado pelos autores - à razão como elemento de orientação geral para a boa formulação das regras e para a sua apreensão, ou aprendizado. Se isso estaria ou não diretamente relacionado ao contexto intelectual da época, marcado pela influência do pensamento ilustrado em alguns dos círculos intelectuais e políticos portugueses, é difícil precisar sem um estudo mais apurado das obras e de seus autores; mas fica a evidência possível.

Para esses autores, o aprendizado correto das "regras" da boa educação seria o subsídio para se introduzir a mocidade nas demais ciências, que iriam da leitura e da escrita à ortografia e à geografia. Sobretudo a leitura, a "porta por onde o entendimento do homem se habilita, para poder entrar em cada uma das outras ciências especulativas", conforme se lê em Escolla Nova Christã, e Politica, assinada por D. Leonor Thomasia de Souza e Silva (na verdade, Francisco Luís Ameno), de 1799. O esforço de tentar compreender a elaboração e o emprego das noções de educação e de instrução encontra, nesse livro, um interessante subsídio. Como nos demais, a educação apresenta-se nele como o processo de formação geral do indivíduo para a vida em sociedade, mas, para chegar-se a ela, percorre-se o caminho de várias "instruções", o que sugere os procedimentos utilizados para se construir a distinção entre as duas noções. A instrução é mecanismo de transmissão de conhecimentos, seja a doutrina ou a civilidade, a leitura, a ortografia, a aritmética ou a geografia. O objetivo maior de todos esses conhecimentos é a formação geral e, para isso, é preciso estabelecer regras, normas e dispositivos de aprendizagem, conforme as diferentes "áreas".

Na Nova Escola de meninos, de Manoel Dias de Souza (1784, p. 190), a educação é ao mesmo tempo base, caminho e objetivo para a formação, para se "cultivar e formar a mocidade assim como nas ciências, como nos bons costumes e ensinar-lhes a cumprir as obrigações da vida civil, e cristã". Souza tende a separar educação de instrução, atrelando a esta última o ensino de conteúdos e de habilidades, como a leitura, a escrita, a aritmética e a doutrina, sendo esta última também um exercício para a leitura. Em separado, ele inclui, ao final da obra, uma parte intitulada Breve direção para a educação dos meninos, de caráter mais prescritivo, e acrescentando ser o exemplo a melhor forma de educação. Ao final, transparece a tendência do autor, em conformidade com outros de sua época, de entender que é preciso primeiro formar, para depois instruir, e que os conhecimentos advindos da instrução, ou das várias instruções, de nada servirão sem as bases estabelecidas pela boa formação. Ainda assim, misturam-se as duas noções, pois educação pode, também, ser compreendida como o resultado final de todo esse processo.

No conhecido O Perfeito Pedagogo na arte de educar a mocidade, de João Rosado de Villa-Lobos e Vasconcellos, publicado em 1782, tais concepções estão igualmente presentes, avançando em relação a outros autores quando inclui uma parte mais detalhada para cada uma das artes e das ciências consideradas pelo autor necessárias à boa educação dos indivíduos: a religião revelada, a gramática da língua portuguesa, o estudo do francês, da literatura clássica antiga, da geometria e da lógica (estas duas indicadas como as mais importantes porque necessárias à organização do pensamento), da metafisica, da psicologia, da ética ou filosofia moral, da geografia e da cronologia, da eloquência, da poesia, da dança, do desenho, do manejo (trato com os cavalos), do florete, da caça e da música. Vasconcellos constrói seu manual orientado pela ideia de que, para se alcançar a boa educação, é necessário instruir a mocidade com pelo menos todos esses conhecimentos: "Ainda que as ciências, que apontamos de passagem, não sejam as que bastem para formar um verdadeiro Sábio; são contudo as mais necessárias para formarem os conhecimentos, e a conduta de um Cidadão... de um Homem Cidadão, e bem criado" (VASCONCELOS, 1782VASCONCELOS, Joao Rosado de Villa-Lobos. O perfeito pedagogo, na arte de educar a mocidadeEm que se dão as regras da Policia, e Urbanidade Christã, conforme os usos, e costumes de Portugal. Lisboa: Na Typografia Rollandiana, 1782. Com licença da Real Mesa Censoria., p. 266-267).

Dos livros desse tipo analisados, O Perfeito Pedagogo aparece como aquele que tenta contemplar a maior diversidade de conhecimentos e os enquadra como os integrantes da instrução, segundo o autor, "bússola" para aparelhar o indivíduo para toda a vida. Claro que, em vista dos conhecimentos elencados, não se trataria da educação de toda a população, mas das classes favorecidas. Mas essa não seria, necessariamente, uma educação escolarizada, a supor pela alusão feita à importância do "pedagogo", ou "aio", principal responsável último pelo processo, aquele que "forma a língua, inspira a civilidade e, sobretudo, pule os costumes e adianta sensivelmente a Religião e a Moral. A fortuna do nosso Candidato depende toda da sua Educação; mas principalmente da capacidade do seu Aio" (VASCONCELOS, 1782VASCONCELOS, Joao Rosado de Villa-Lobos. O perfeito pedagogo, na arte de educar a mocidadeEm que se dão as regras da Policia, e Urbanidade Christã, conforme os usos, e costumes de Portugal. Lisboa: Na Typografia Rollandiana, 1782. Com licença da Real Mesa Censoria., p. 274).

Já nos primeiros anos do século XIX, algumas obras dessa natureza mantinham os propósitos embasados nas mesmas concepções, indicando a relativa solidez desse modo de se pensar a educação como conceito e como prática. Abordar esses livros visando à análise das concepções de educação e de instrução neles presentes ajuda a clarificar a compreensão do papel da educação enquadrada em métodos e regras, em orientações e em manuais, para além de sua associação com a escolarização. Quer-se dizer com isso que tal análise ajuda a desconstruir concepções historiográficas arraigadas que atam a educação à escola, ou os processos de ensino e aprendizagem de determinados conhecimentos à instituição escolar, necessariamente. Se, para os tempos atuais, essa associação não pode ser considerada absoluta ou universal, o que dizer para tempos e lugares nos quais a instituição escolar ou não se fazia ainda presente, ou era pouco visível ou exclusiva demais. Mais ainda em tempos nos quais a participação de outras instituições, como a família e a Igreja, ocupava o centro das ações educativas. Mais adiante voltaremos a essa discussão, depois de analisar outras instâncias em que se manifestavam concepções e ações voltadas para a educação dos indivíduos, nos quadros do Antigo Regime luso-americano.

Imbuído do propósito de promover mudanças que permitissem retirar Portugal do seu estado de atraso em relação a outras nações europeias - particularmente a Inglaterra -, o governo de D. José I, sob o comando de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, realizou uma série de reformas de caráter administrativo que atingiram diferentes setores da vida do Reino e de seu império. As chamadas reformas pombalinas da educação, iniciadas em 1759 com a expulsão dos jesuítas do império e o fechamento de todas as suas escolas, deram início ao processo de escolarização comandado pelo Estado, atingindo, também, os domínios ultramarinos. Foram criadas as aulas régias de primeiras letras, gramática latina, grego e retórica, e instituída a "carreira" do magistério régio nos quadros da administração estatal. Definiram-se salários, formas de ingresso no magistério régio e mecanismos de controle do trabalho dos professores. Outras iniciativas ocorreram com a criação da Aula de Comércio (1759) e do Real Colégio dos Nobres (1761), além da reforma da Universidade de Coimbra (1771-1772), todas elas visando à formação mais moderna e eficaz dos segmentos sociais responsáveis pelo governo e pela economia de Portugal e seus domínios.

Como é sabido, essas reformas foram, de alguma maneira, inspiradas pelo pensamento ilustrado e pela ideia de modernização sob a ótica da racionalidade administrativa.5 5 Sobre esse tema ver: SANTOS, 2011. A legislação produzida para a implementação dessas reformas nos dá indicativos claros dessas influências, mas também das concepções de educação e de instrução correntes à época e caras à cultura portuguesa do Antigo Regime. Cabe, portanto, analisar alguns documentos dessa natureza como parte da análise em curso neste artigo. Como temos visto até aqui, a educação percebida como formação geral do indivíduo para tornar-se bom súdito e bom cristão passava pela confluência entre a formação para a civilidade e a doutrinação cristã de matriz católica.

O Alvará Régio de 1759, que expulsou os jesuítas e criou as primeiras aulas régias, apresenta em seu texto algumas das características em análise neste artigo, conforme se lê em suas primeiras linhas, quando se introduz o rol de razões pelas quais a Coroa decidiu-se pelas reformas:

Eu El Rei Faço saber aos que este Alvará virem, que tendo consideração a que da cultura das Ciencias depende a felicidade das Monarquias, conservando-se por meio delas a Religião, e a Justiça na sua pureza, e igualdade... (ALVARÁ, 1759Alvará de 28 de junho de 1759. 1759 Regulamento dos estudos menores. Disponível em: <Disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt >. Acesso em: 15 ago. 2015.
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt...
)

As "ciências", entendidas aqui como conhecimentos, não estão dissociadas da necessidade da formação cristã, como temos visto na maioria dos documentos analisados, que entende ser essa formação para o bem do Estado ("felicidade das Monarquias") composta não somente de conhecimentos úteis para a atuação do indivíduo nessa sociedade, mas também para sua melhor adequação à ordem. Para o governo de D. José I, os jesuítas teriam falhado nessa missão por aplicarem métodos que não resultavam em conhecimentos e habilidades úteis ao progresso da nação, ao menos na ótica do Estado, naquele momento envolvido em conflitos com a Companhia de Jesus no seu esforço de secularizar alguns aspectos da administração do Império e de suas populações, e de reduzir a influência dessa ordem religiosa na sociedade portuguesa.

Por mais que o discurso presente em muitos documentos normativos emanados da Coroa nesse processo de reformas indicasse a necessidade de renovação e modernização, faziam-se presentes muitas concepções caras à manutenção de uma ordem monárquica de matriz absolutista e de retorno a práticas que remontavam ao século XVI, antes da progressiva influência da Companhia de Jesus e de seu método de ensino, materializado no célebre Ratio Studiorum (1599). O texto do Alvará de 1759 indicava claramente essa "reforma" com retorno ao modo antigo, ordenando a restituição do chamado "método antigo", que significava ser diferente do método jesuítico. Nesse primeiro momento das reformas, marcado pela criação das aulas públicas de gramática latina, grego e retórica, a concepção mais claramente presente na legislação é a da instrução ligada ao ensino de conhecimentos com finalidades práticas e que pudessem contribuir para a "edificação" dos "fiéis vassalos". Tal ideia fica também clara em documentos que se seguiram como desdobramento do Alvará de 1759, para que fossem executadas as Instruções constantes dele, como o Edital mandado publicar pelo Diretor Geral dos Estudos, D. Thomaz de Almeida, para realização de concurso visando ao provimento das primeiras cadeiras de gramática latina das reformas. Nele, D. Thomaz de Almeida reforça o propósito da educação a ser desenvolvida no novo contexto e que guiaria a escolha dos novos mestres: garantir que a "cultura das ciências dos vassalos" fosse "o mais bem fundado estabelecimento para o serviço de Deus, e das Monarquias" (Edital, 1759Edital Edital de 28 de julho de 1759. 1759 Disponível em: <Disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt >. Acesso em: 15 ago, 2015.
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).

Atestando a fidelidade àquela concepção de educação como formação geral e a possibilidade de ser ela combinada a alguma instrução de uso prático, a principal lei de ampliação das reformas, de 6 de novembro de 1772, criou as aulas régias de primeiras letras, atribuindo a elas essa função. A lei ordenava que os mestres de ler, escrever e contar fossem obrigados a

{...} ensinar não somente a boa forma dos caracteres, mas também as Regras gerais da Ortografia Portuguesa, e o que necessário for da Sintaxe dela, para que os seus respectivos discípulos possam escrever correta, e ordenadamente: Ensinando-lhes pelo menos as quatro espécies de Aritmética simples; o Catecismo, e Regras de Civilidade em um breve Compendio: Porque sendo tão indispensáveis para a felicidade dos Estados, e dos Indivíduos deles, são muito fáceis de instilar nos primeiros anos aos Meninos tenros, dóceis, e suscetíveis das boas impressões daqueles Mestres, que dignamente se aplicam a instruí-los. (LEI, 1772Lei de 6 de novembro de 1772. APM/Secretaria de Governo da Capitania. SC-394. Disponível em: <Disponível em: http://www.ige.min-edu.pt/upload/docs/Lei-6-11-1772.pdf >. Acesso em: 28 ago. 2015.
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)

É bastante evidente a consonância desse texto com as concepções presentes nas demais fontes em estudo neste artigo, das ideias presentes no pensamento de alguns dos mais eminentes intelectuais europeus da época - incluindo alguns portugueses - aos manuais indicados para a educação de crianças e jovens. Como vimos, a organização da maioria desses livros segue exatamente essa estrutura, combinando uma instrução que acabava sendo considerada propedêutica para a educação formativa mais ampla, conforme os valores culturais e as necessidades sociais. Quanto mais cedo esse processo fosse desenvolvido, melhores os resultados obtidos. Essa educação/formação mais ampla atingiria todas as classes sociais num primeiro momento, mas seria suficiente em seus níveis mais elementares para a população daqueles "empregados nos serviços rústicos e nas Artes Fabris", pois, responsáveis pelo "sustento dos povos", a eles bastariam as "instruções dos párocos"; esta, sim, fundamental para garantir aquela educação formativa. Aos demais, conforme suas habilidades, haveria a possibilidade de alguma instrução em língua latina e o aprofundamento para aqueles "destinados" aos estudos superiores, que fariam "figurar os Homens nos Estados".

A necessidade da boa formação dos súditos para a "felicidade da Monarquia" estava também no discurso de diferentes ocupantes de postos da administração, sobretudo no Brasil, preocupados com situações que escapavam às suas previsões e ao seu controle. Não são raros os documentos produzidos por esses funcionários, relatando sua perplexidade diante de uma sociedade que se estruturava conforme as circunstâncias e que contrariava uma noção preconcebida de ordem. Muitos atribuíam tal quadro à numerosa população de origem africana e seus descendentes, "naturalmente" propensa à indisciplina e às insolências, mas também aos portugueses emigrados, principalmente os de origem social mais baixa.

Num desses documentos percebe-se a indicação de que, além de controle de natureza policial sobre essa população, fazia-se necessário atentar para sua falta de educação. Em carta de 1805, Basílio Teixeira Cardoso de Sá Vedra Freire, Ouvidor da Comarca do Sabará, Capitania de Minas Gerais, expressava sua indignação com o estado de decadência, miséria e desordens na região. Para ele, as uniões de homens brancos com mulheres negras e mestiças originava uma população de libertos "sem criação, sem meios de alimentar-se, sem costumes e com a louca opinião de que a gente forra não deve trabalhar". Criticava algumas práticas correntes entre essa população e os escravos, mas também apontava abusos cometidos pelos senhores, que bem poderiam ser responsabilizados por parte desse descontrole, mantendo seus escravos na falta de alimentos, de tratamento de doenças e na "falta de instruções de Religião, Moral, costumes". A administração local estaria comprometida devido à má atuação dos funcionários, por sua falta "de conhecimentos, ou de caráter". Reclamava uma urgente reforma como medida para destruir esses defeitos, primeiramente pela indicação de "homens desinteressados, inteligentes, e em tudo hábeis para executar" tais reformas (INFORMAÇÃO, 1897Informação Informação da Capitania de Minas Gerais, dada em 1805 por Basilio Teixeira de Sá Vedra. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 2, fasc. 4, 1897, p. 673-683.).

As impressões do Ouvidor deixam entrever o entendimento acerca da educação também como estratégia de controle político e social, mas fundada nas mesmas bases que combinavam a instrução religiosa e moral e as regras de comportamento, dos "bons costumes", independentemente se isso diria respeito às elites ou às classes baixas, incluindo os escravos. Interessante observar como, neste último caso, a responsabilidade dessa "educação" recairia sobre os senhores. A propósito disso, cumpre lembrar que a educação dos escravos para a formação do caráter já havia sido objeto da atenção nas célebres Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, conjunto das normas eclesiásticas pós-tridentinas para o Brasil e relativas não somente aos assuntos da Igreja, mas a todas as dimensões possíveis da vida cotidiana da população. No Título II do seu Livro Primeiro encontram-se as orientações quanto à educação moral e religiosa nas quais se percebe, como já foi observado, a combinação com a instrução das primeiras letras, base para permitir o acesso aos manuais ou aos compêndios específicos para esse ensino, fosse na escola ou fora dela:

Porque não só importa muito, que a Doutrina Cristã e bons costumes se plantem na primeira idade, e puerícia dos pequenos, mas também se conservem na mais crescida dos adultos, aprendendo uns juntamente com as lições de ler, e escrever, as do bem viver no tempo, em que a nossa natureza logo inclina para os vícios, e continuando os outros a cultura da Fé, em que foram instruídos, e crendo nos seus mistérios aqueles, que novamente os ouvirem, ordenamos o seguinte: Mandamos a todas as pessoas, assim Eclesiásticas, como seculares, ensinem, ou façam ensinar a Doutrina Cristã à sua família, e especialmente a seus escravos, que são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza. (CONSTITUIÇÕES, 2007CONSTITUIÇÕES CONSTITUIÇÕES primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide Reprodução fac-similar da 2a edição, de 1853. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007(Originally published in Lisbon in 1719).)

Essas diretrizes estão presentes em outros documentos, de natureza administrativa, mas que contemplavam preocupações que iam além disso. Na verdade, depreende-se que a administração das terras de ultramar também implicava ações civilizadoras resultantes, em parte, de processos educativos, qualquer que fosse a sua natureza. Era função dos administradores controlar as atividades do clero e observar o cumprimento de suas obrigações, entre as quais a de

{...} ensinar aos povos os preceitos da lei que professam, pregar-lhes o evangelho, administrar-lhes os sacramentos e conduzi-los com o zelo, desinteresse, e regular comportamento de um bom e exemplar pastor ao grêmio da igreja, de que são filhos... (INSTRUCÇÃO, 1844Instrucção Instrucção para o Visconde de Barbacena Luiz Antonio Furtado de Mendonça, Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 21, 1844, p. 5.)

conforme se lê nas instruções dadas pelo Ministro Martinho de Mello e Castro ao Visconde de Barbacena, Luiz Antonio Furtado de Mendonça, que assumia o governo da Capitania de Minas Gerais, em 1788. Essas orientações faziam parte das primeiras ordens contidas nas Instrucções, como meio de garantir que a população das Minas não somente fosse civilizada e não se apartasse "da obediência e submissão devida à Sua Majestade, de quem são vassalos", como também estivesse preparada para prover a Coroa de todos os recursos econômicos que pudesse produzir a região, a exploração das minas, o cultivo da terra, o comércio lícito e, claro, o pagamento dos impostos.

Muito embora de uma maneira geral essas concepções acerca da educação como formação do bom súdito estejam presentes de forma recorrente na documentação oficial, eclesiástica ou secular, também se observa nela o entendimento de que, determinado tipo de formação só seria possível por meio da instrução formalizada e institucionalizada. Tal entendimento estaria a par das concepções ilustradas de educação propugnadas a partir da segunda metade do século XVIII e relacionadas às reformas empreendidas pela Coroa portuguesa nesse período. Essa instrução teria, assim, papel fundamental no pretendido processo de modernização do Estado e de sua economia, o que incluiria, certamente, os domínios ultramarinos. O vice-rei do Rio de Janeiro, Marquês do Lavradio, percebia-o claramente e considerou a importância desse tipo de instrução ao analisar a situação do comércio no Brasil. Dizia ele que a maioria dos comerciantes desconhecia as técnicas e as práticas fundamentais para a boa administração dos seus negócios e mesmo aqueles negociantes mais "honrados e verdadeiros" ignoravam

{...} o que é esta profissão, que eles nem conhecem os livros que lhes são necessários, nem sabem o modo regular da sua escrituração. Hoje, depois que houve Aula de Comercio, tem aparecido já alguns caixeiros que tem posto em melhor ordem aqueles livros; porém a maior parte se conservam ainda em grande desordem. (RELATÓRIO, 1842Relatório Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, de 1799. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo IV, 1842, p. 454., p. 454)

Lavradio tinha em conta, também, o papel da educação como mecanismo de controle dos comportamentos e do exemplo como instrumento pedagógico. A ociosidade, por exemplo, deveria ser combatida com a ocupação com o aprendizado das coisas úteis, como ordenou aos soldados que se ocupassem com o ensino à noite, quando ficavam sem nada para fazer. Com o intuito de controlar desordens na Capitania do Rio de Janeiro, ele distribuiu sesmarias para facilitar o estabelecimento de pessoas em terras onde ocorriam tais desordens e, a fim de polir os costumes delas, chamava-as para conversas para que pudesse "os acostumar a ver como os povos vivem sujeitos, e que vejam o modo com que se respeita e obedece aos diversos magistrados, e as pessoas que mais representam" (RELATÓRIO, 1842Relatório Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, de 1799. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo IV, 1842, p. 454., p. 422).

Percorrer fontes diversas, produzidas em diferentes instâncias e conjunturas, em busca das concepções sobre educação e instrução que elas podem indicar como constituintes do pensamento e das práticas culturais no mundo luso-americano dos séculos XVIII e início do XIX teve o propósito, neste artigo, de provocar a discussão sobre a historicidade desses conceitos e a desnaturalização da educação como algo dado, homogêneo e universal. E, ainda, desvincular, quando necessário, educação de escola ou de escolarização, para uma época em que as formas assumidas por elas estavam em muito distantes daquelas que veríamos se desenvolver a partir de meados do século XIX. Essa proposta analítica também aponta para a presença das concepções educacionais correntes em diferentes instâncias institucionais, como o Estado e a Igreja, e nem sempre atreladas a discussões sobre educação institucionalizada, sobretudo a escolar. É o que indica o discurso, bem como as propostas e as ações das autoridades administrativas no esforço de estabelecer, na América, o estado de ordem social e de obediência e fidelidade à monarquia portuguesa. O fato de que muitos aspectos das concepções sobre educação e instrução tenham vindo do pensamento moderno, forjado a partir do século XVI na Europa, não excluía a presença de elementos que, ao contrário de mudanças, pretendiam a conservação de ideias, normas e comportamentos. Ou que a modernização pretendida por meio de reformas, além de criar novas instâncias educativas fundadas em pressupostos ilustrados e racionais, deixasse de lado fatias importantes da formação e das práticas culturais predominantes, sobretudo aquelas de matriz religiosa católica.

Livros de catecismo e regras de civilidade, de ensino das primeiras letras e das "ciências" úteis à formação do bom súdito cristão para a monarquia portuguesa faziam par com as obras mais consideradas dos pensadores europeus dos séculos XVII e XVIII, bem como com as leis e as determinações régias, e com as impressões e as ações administrativas das autoridades coloniais na América. Educação não era, portanto, tema de menor importância e consideração, ocupando as preocupações de pessoas em diferentes posições e funções na sociedade do Antigo Regime, uma vez que tratava-se de ação e resultado de impacto na qualidade dos súditos e no estabelecimento da melhor ordem para o Estado.

REFERÊNCIAS

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  • Informação Informação da Capitania de Minas Gerais, dada em 1805 por Basilio Teixeira de Sá Vedra. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 2, fasc. 4, 1897, p. 673-683.
  • Instrucção Instrucção para o Visconde de Barbacena Luiz Antonio Furtado de Mendonça, Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 21, 1844, p. 5.
  • Lei de 6 de novembro de 1772. APM/Secretaria de Governo da Capitania. SC-394. Disponível em: <Disponível em: http://www.ige.min-edu.pt/upload/docs/Lei-6-11-1772.pdf >. Acesso em: 28 ago. 2015.
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  • PINA E PROENÇA, Martinho de Mendonça de. Apontamentos para a educação de hum menino nobre. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1734.
  • Relatório Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, de 1799. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo IV, 1842, p. 454.
  • SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Nova ed. rev. / Maximiano de Lemos. Coimbra: Imp. da Universidade, 1922.
  • SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thais Nívia de Lima e (Org). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.
  • VASCONCELOS, Joao Rosado de Villa-Lobos. O perfeito pedagogo, na arte de educar a mocidadeEm que se dão as regras da Policia, e Urbanidade Christã, conforme os usos, e costumes de Portugal. Lisboa: Na Typografia Rollandiana, 1782. Com licença da Real Mesa Censoria.
  • 1
    A pesquisa da qual deriva este texto é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG.
  • 2
    Les règles de la bienséance et de la civilité chrétienne (1695) e Conduite des écoles chrétienne (1717).
  • 3
    As reformas foram iniciadas durante o reinado de D. José I (1750-1777), sob o comando de seu poderoso ministro Marquês de Pombal, e sofreram alguma continuidade ao longo dos reinados de D. Maria I (1777-1816) e de D. João VI (1816-1826)
  • 4
    As datas referem-se ao ano de publicação em Portugal.
  • 5
    Sobre esse tema ver: SANTOS, 2011SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thais Nívia de Lima e (Org). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2015
  • Aceito
    09 Nov 2015
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