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POR ALGUMA POÉTICA NA DOCÊNCIA: A DIDÁTICA COMO CRIAÇÃO

IN FAVOR OF A POETIC TEACHING: DIDACTICS AS CREATION

RESUMO:

O presente ensaio tem como desafio perspectivar teoricamente a díade didática-criação, por meio da proposição da docência como um trabalho eminentemente poético. Uma série de pensadores - Gaston Bachelard, Paul Valéry e Jacques Derrida, entre outros - é estrategicamente mobilizada a fim de sustentar a hipótese de uma imanência poética a atravessar a prática docente, desde que esta seja concebida e efetivada por escritas e leituras na esteira de traduções transcriadoras. O lastro conceitual que sustenta a argumentação consiste na acepção de tradução, legada por Haroldo de Campos, e de escrileitura, proposta por Sandra Mara Corazza. As discussões encaminham-se para a defesa de um modo de conceber o trabalho didático como um arranjo incessante de gestos que amalgamam leitura, escrita e tradução, redundando em uma espécie de canto tradutório cruzado entre alunos e professores.

Palavras-chave:
Docência; Poética; Didática; Tradução; Criação

ABSTRACT:

This article aims at approaching theoretically the relation between didactics and creation, by proposing teaching as an intrinsically poetic work. A set of thinkers - Gaston Bachelard, Paul Valéry and Jacques Derrida, among others - is strategically used in order to sustain the hypothesis of a poetic immanence acting within the teaching practice, as long as it is conceived and carried out by writing and reading in the wake of transcriative translations. The theoretical axis that supports the argumentation consists in the concepts of translation, bequeathed by Haroldo de Campos, and of readwriting, proposed by Sandra Mara Corazza. The final discussions are dedicated to defend a way of conceiving teaching as a never-ending arrangement of gestures that merge reading, writing and translation, resulting in a sort of crossed translational chant between students and teachers.

Keywords:
Teaching; Poetics; Didactics; Translation; Creation

O que cria em nós absolutamente não tem nome.

Paul Valéry

Viver poeticamente o ofício docente: eis o desafio argumentativo do presente ensaio.

A tematização da poeticidade possível da docência oportuniza algo tão notável quanto temerário. Notável porque oferece a chance de vislumbrar um horizonte estético dilatador da experiência docente - horizonte, inobstante, precário, incerto e, no limite, improvável. Temerário porque tal potência expansiva, a par de sua difícil circunscrição empírica, pode ser contingenciada pelo abstracionismo contido no termo forte da equação aqui posta em jogo: a poética. Daí duas questões geradoras: Como honrar a docência, na medida das esparsas chances de uma existência capaz de fazer frente ao monocórdio cogito pedagógico? Como perspectivá-la poeticamente, mas sem mistificação?

Evocamos tal risco ao fazer coro com o poeta polonês Czeslaw Milosz (2003MILOSZ, C. Não mais. Tradução Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Brasília: Editora da UNB, 2003., p. 47), quando escreve: “sou um homem apenas, preciso de sinais visíveis, / me canso logo construindo as escadas da abstração”. Assim, julgamos necessária certa moderação quando se trata de estimar a magnitude da ação - a rigor, discreta - que somos capazes de levar a cabo no domínio educacional. Trata-se de uma prática ao mesmo tempo específica e comum, à qual emprestamos, aqui, o sentido apaixonado de uma existência, seguindo Maurice Blanchot (2010BLANCHOT, M. O amanhã brincalhão. In: BLANCHOT, M. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro, o fragmentário. Tradução João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010. p. 179-199., p. 179) ao se referir à relação viva de André Breton com o surrealismo: “pura prática de existência (prática de conjunto conduzindo seu próprio saber, uma teoria prática)”. Teoria prática concebida, portanto, como experiência coletiva ligada a uma época, e esta como “poder de suspensão e de interrogação que faz da época menos aquilo que dura do que o intervalo desregrando a duração” (p. 179).

Visando, assim, abrir caminho para uma mirada desabstraída da relação entre didática e criação, abdicamos de pressupor a existência de um devir poético em repouso na ação pedagógica, o qual seria deflagrado pela exploração de determinados recursos consoantes a um quimérico bem fazer expressivo, na batuta dos poetas. Convenhamos que eles nada têm a nos ensinar, mesmo porque a arte (ou a artistagem) que queremos na educação não é mera extensão daquela dos artistas (CAPRA; LOPONTE, 2016CAPRA, C. L.; LOPONTE, L. G. Ditos sobre professor-artista. XI ANPED SUL- Reunião Científica Regional da ANPEd: Educação, movimentos sociais e políticas governamentais. 24 a 27 de julho de 2016, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. In: http://www.anpedsul2016.ufpr.br/
http://www.anpedsul2016.ufpr.br/...
), mas de uma ordem outra que não se pode precisar, senão pressentir.

Ao recorrermos à noção de poética, tampouco pensamos que haveria qualquer coisa de elevado ou de visionário no trabalho literário per se; como se a palavra do poeta representasse, hoje, aquilo que o vaticínio do louco foi na Antiguidade. A escrita que se confunde com a vida - independentemente do gênero textual, aliás - é a sina daqueles que foram projetados para fora das coisas, para o outro lado do mundo e, de lá, emitem seus sinais vocais. Disso decorre que, ao compartilharmos certo regozijo comtextos belos, também somos atravessados por alguma aflição e, muitas vezes, por um desespero cortante.

Na esteira da poeta portuguesa Adília Lopes (2007LOPES, A. Caderno. Lisboa: & Etc., 2007., p. 13), quando afirma “dia sem poesia / não é dia / é noite escura / mas a poesia / é noite escura”, sabemos que não há dia claro para aqueles docentes que se embrenham na tragicidade poética dos acontecimentos, visto que esta possui mais teor subtrativo do que cumulativo. Cientes de tais reservas optamos, aqui, por entabular um diálogo estratégico com o modus operandi poético, entendendo-o como algo que nos diz respeito, mas que não necessariamente nos ilumina ou nos acode quando deparamos com as interpelações de nosso ofício.

Nessa direção, mobilizaremos inicialmente duas passagens que nos parecem significativas no que diz respeito à tematização do fazer poético: Gaston Bachelard (1988BACHELARD, G. O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução Remberto Francisco Kuhnen; Antônio da Costa Leal; Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Pensadores.) )em A poética do espaço, texto de 1957, bem como Paul Valéry (1991bVALÉRY, P. Primeira aula do curso de poética. In: VALÉRY, P. Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, p. 187-200, 1991b. )em sua Primeira aula do curso de poética, proferida no Collège de France em 1938.

Bachelard (1988BACHELARD, G. O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução Remberto Francisco Kuhnen; Antônio da Costa Leal; Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Pensadores.) , p. 95) oferece algumas pistas para o nosso intento de pensar as chances de uma vivência poética da docência. Já na abertura d’A poética do espaço, o epistemólogo francês, face à dificuldade de formular uma filosofia da poesia, reconhece de chofre: “Aqui, o passado de cultura não conta; o longo esforço para interligar e construir pensamentos, esforço feito em semanas e meses, é ineficaz. É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem”.

Para ele, o que conta é a instantaneidade irruptiva do poema, pois, em tal acontecimento manifestam-se forças não codificadas por nossos circuitos cognitivos adquiridos. Por isso, o pensador pretere a busca de causalidade da poesia em favor de sua ressonância e repercussão, isto é,a capacidade inextricável de a imagem poética fazer-se enraizar naquele que por ela é tocado. Com a poesia, é a própria atividade linguística que se vê abalada, uma vez que os poemas demandam a ultrapassagem de uma contemplação leitora, instaurando, desde logo, uma condição de emergência.

Ocorre que, por meio da poesia, o leitor se converte em um copartícipe da alegria da criação primeira daquele autor que está lendo, já que aquilo que ele lê lhe diz respeito: “Ao viver os poemas tem-se, pois, a experiência salutar da emergência. Emergência sem dúvida de pequeno porte. Mas essas emergências se renovam; a poesia põe a linguagem em estado de emergência. A vida se mostra aí por sua vivacidade” (BACHELARD, 1988BACHELARD, G. O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução Remberto Francisco Kuhnen; Antônio da Costa Leal; Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Pensadores.) , p.102).

Seguindo com Bachelard, haveria no agir poético da docência, a nosso ver, uma imprevisibilidade radical da palavra, a qual faria com que a cruzada discursiva cotidiana encontrasse um ponto de suspensão temporária, facultando aos que partilham do ato pedagógico uma experiência de liberdade, mesmo que fugidia.

Com Paul Valéry (1991bVALÉRY, P. Primeira aula do curso de poética. In: VALÉRY, P. Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, p. 187-200, 1991b. ), por sua vez, deparamos com uma complexidade ainda mais engenhosa do trabalho poético. Em alguma medida, Valéry desponta como um antagonista de Bachelard, já que a experiência de ressonância entre o poeta e o leitor, evocada pelo epistemólogo, é, para Valéry, passível de uma incompatibilidade crispante. Ou seja, poeta e leitor não seriam extensões complementares um do outro, nem seus labores necessariamente convergentes. Isso porque o resultado de uma obra pode ser nulo ou negativo, ou, ao contrário, pode ensejar a apreensão de que o seu artífice é portador de uma força sobre-humana, que o isolaria do outro.

Seja como for, a existência da obra do espírito, tal como nomeada por Valéry (1991bVALÉRY, P. Primeira aula do curso de poética. In: VALÉRY, P. Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, p. 187-200, 1991b. ), define-se nas bases de uma relação instável, na medida em que o desfecho do trabalho do produtor de uma obra consiste, ao mesmo tempo, na origem do trabalho de seu consumidor, cabendo a este último operar a valoração da obra. Desta feita, o leitor de um poema, o espectador de uma peça ou o ouvinte de uma composição musical não é apenas alguém que sofre uma ação, mas que a torna sua, decretando-lhe mais vida - ou, não raro, uma morte seca.

O estado de emergência, aqui, não é o da linguagem, como quer Bachelard, mas o da própria obra, dada a imponderabilidade do seu destino. Trata-se, em suma, de uma espécie de transitividade generativa da criação, a qual só existirá como um ato rigorosamente duplo: de produtor a consumidor e vice-versa. Nos termos de Valéry (1991bVALÉRY, P. Primeira aula do curso de poética. In: VALÉRY, P. Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, p. 187-200, 1991b. , p. 193-194, grifos do autor):

Um poema sobre o papel nada mais é do que uma escrita submetida a tudo o que se pode fazer de uma escrita. Mas, entre todas as suas possibilidades, existe uma, e uma apenas, que coloca finalmente esse texto nas condições em que ele adquirirá força e forma de ação. Um poema é um discurso que exige e que provoca uma ligação contínua entre a voz que existe e a voz que vem e que deve vir. [...] É a execução do poema que é o poema. Fora dela, essas sequências de palavras curiosamente reunidas são fabricações inexplicáveis. As obras do espírito, poemas ou não, relacionam-se apenas ao que faz nascer o que as fez nascer elas mesmas, e absolutamente a nada mais.

Na perspectiva de um viver poético da docência, cabe recordar Jorge Luis Borges quando afirma que “o momento em que falo já está longe de mim”. O escritor argentino atribui tal ideia a Nicolas Boileau-Despréaux, em uma entrevista que concede a Roger Caillois em 1977 (CAILLOIS; BORGES, 1987CAILLOIS, R.; BORGES, J. L. Diálogo fugaz. Vuelta Sudamericana. Montevideo. Maio, 1987., p. 30). A ideia que surpreendia Borges, ao evocar um movimento da poética em torno da leitura, fazia-o ressoar o que havia sido dito por Boileau-Despréaux, ao passo que este o faz a partir de diversas traduções feitas de Virgílio.

A evocação de Borges repercute os ecos da afirmação de que, no âmbito da linguagem, o que é produzido, antes de não pertencer a ninguém, a todos pertence. Aqui, esse ninguém é, sempre, o último leitor, ou seja, aquele que movimenta a leitura como um gesto que a incorpora também como escrita. Esta, apesar da proximidade daquele que lê-e-escreve, constitui-se num movimento pretérito e de tomada de distância, pois sempre oblitera e mantém em segredo algo da sua composição.

O momento em que lemos já está longe de nós, concluímos. Lançando mão dessa poética da leitura, tomamos esse momento ido como dependente de uma ou de várias traduções, que deixem essa leitura inscrita em algo ou em algum lugar. Pois, onde estão as palavras de Virgílio que ecoaram esse nosso dizer? Articulam os tal eco a uma superposição de vozes, fazendo a intertextualidade atuar como uma poética, a qual, por sua vez, é forjada por meio de traduções criadoras.

A docência como tradução

No escopo dos procedimentos didáticos de que inexoravel-mente se vale, a vida docente é composta por movimentos de leitura e de escrita na agitação de traduções criadoras. Tal argumento torna-se possível desde que tomemos o fazer didático como criador e crítico - a reboque da concepção haroldiana de tradução (CAMPOS, 2013aCAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (org.). Haroldo de Campos - transcriação. São Paulo: Perspectiva, p. 01-18, 2013a.) -, permitindo diversificar as possibilidades das matérias com as quais os professores travam contato. Advogamos, assim, em favor de uma didática que disponha - à docência e àqueles que a ela se encaminham - de um repertório que, de algum modo, vivifique essas matérias, levando o docente a sentir-se convidado a desejar educar, nos moldes de uma produção criadora. Trata-se, aqui, de tomar a didática como um modo atento de ler-escrever, instado por uma atenção que se confunde com a desmontagem e a remontagem da máquina de criação, encaminhando os professores, nessa operação, a entrarem na “fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado” (CAMPOS, 2013a, p.14CAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (org.). Haroldo de Campos - transcriação. São Paulo: Perspectiva, p. 01-18, 2013a.).

A didática, igualmente portadora de uma frágil beleza, prefigura-se, assim, como um modo de pensar-fazer específico na e da educação; um modo que, como em uma fotografia - que sempre carrega seu referente -, nunca abandona algo de uma “repetição incansável da contingência” (BARTHES, 1984BARTHES, R. A câmera clara: nota sobre fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. , p.15). Didática tautológica porque, justamente, a propriedade do seu fazer transforma a própria educação em matéria de pensamento, ou seja, uma educação que se dimensiona como pensamento enquanto o seu fazer é a própria significação. Esse fazer-pensar desenrola-se como criação e como crítica do agir docente,capaz de provocar encontros, desde os mais comuns e corriqueiros aos mais inusitados e paradoxais, nas transações com os alunos. Encontros que geram processos tradutórios quando, nas aulas, traduzimos,transcriando, as línguas e matérias das artes, das filosofias e das ciências (CORAZZA, 2016CORAZZA, S. M. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, 2016.).

Nesse sentido, ao concebermos a especificidade do ato de educar como tradutório, especialmente nas dimensões do currículo e da didática, defendemos que essas traduções agem como criação-crítica, uma vez que se configuram como paralelismos das materialidades transcriadas.

Uma didática assim concebida é carregada, a um só tempo, de fragilidade e de fascínio. Ela toma o ofício do professor e suas práticas como estéticos, tendo em vista o fato de que toda tradução nasce da deficiência da sentença, ou seja, de sua insuficiência para valer por si mesma: “Não se traduz o que é linguagem num texto, mas o que é não linguagem” (CAMPOS, 2013aCAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (org.). Haroldo de Campos - transcriação. São Paulo: Perspectiva, p. 01-18, 2013a., p.3).

Desse modo, uma visão instrumental da didática é não somente contornada, mas descartada (CANDAU, 1990CANDAU, V. (org.). Rumo a uma nova didática. Petrópolis: Ed. Vozes, 1990.). Se a tarefa precípua do professor é traduzir - tomando a concepção de Paz (2009PAZ, O. Traducción: literatura y literalidade. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009.) que aprender a falar é aprender a traduzir, bem como a de Valéry (1956VALÉRY, P. Variations sur lês Bucoliques.Paris: Gallimard, 1956. ) que escrever é traduzir -, trama-se aí uma urdidura em que a intertextualidade, evocada pela conjunção e pelo entrecruzamento de vozes que perpassa toda leitura, fala e escrita, converte-se em intervivencialidade (MONEGAL, 1986MONEGAL, E. R. Blanco/Branco: Transblanco. In: CAMPOS, H.; PAZ, O. Transblanco. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, p. 11-17, 1986.).

Tal intervivencialidade remete a uma passagem do corpus textual aos corpos dos poetas. Monegal refere-se à tradução do poema Blanco de Octávio Paz por Haroldo de Campos; tradução que transcria ao nos dar a ler a fórmula Blanco/Branco traduzida para Transblanco. O procedimento tradutório é, assim, aquele que faz passar do nível de uma simples interação textual e recriadora de um novo texto - intertextualidade - para um procedimento de mútua implicação entre os poetas e os tradutores, empenhados na urdidura de uma nova composição poética.

É fato que, como professores-pesquisadores em educação, somos constantemente convidados a prescrever modos de agir e de pensar entendendo-se, muitas vezes, tais prescrições como constituintes da didática. Contudo, essa modalidade de didática, ao estabelecer um modo de agir de antemão, estanca a vida, uma vez que deixa ao professoro compromisso de reter fluxos vitais, pois, somente desse modo, ele, supostamente, teria o controle ou a certeza de estar seguindo a prescrição correta para aquele determinado modo de agir.

Na contramão de tais expedientes, preferimos arriscar a conceituação da didática como tradução, interposta como uma dinâmica que provoca encontros no plano das intervivencialidades. O risco por nós assumido é o de escolher um norte ético-político que desautoriza a didática de sua mesmidade sígnica, pelo simples fato de não propor mais respostas que agem no âmbito da didatização, à moda de simplificações generalizantes e de verossimilhanças inquestionáveis. Trata-se, de outro modo, de perspectivar a potência didática de um professor-tradutor que, tampouco, se interessa em levar a cabo modos homogêneos e homogeneizadores de relação com o conhecimento, mas que se aproxima da ideia de que a transcriação é capaz de proporcionar um conhecimento diferencial e transformador.

Nessa direção, retomamos o termo “didática” de modo rasurado, tal como operado por Jacques Derrida, ao instaurar uma economia da suplementaridade, a qual inscreve na palavra uma dupla via, ou melhor,articula um funcionamento regulador de sua polissemia (SANTIAGO, 1976SANTIAGO, S. (org.). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.). Portanto, se a didática da tradução “reinterpreta - em termos de linguagem e silêncios, políticas e culturas, valores sociais e fatos temporais - aquilo que é, por sua vez, produzido em áreas tão amplas, como aquelas que Deleuze e Guattari (1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.) denominaram as três Caoides ou filhas do Caos: a ciência, a arte e a filosofia” (CORAZZA, 2016CORAZZA, S. M. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, 2016., p. 8), somos instados a considerá-la um modo de vida agenciador de encontros, por meio da tradução criadora. Em outros termos, um modo assíncrono e proliferante de lidar com o trabalho do pensamento; um modo contagiante e contagioso de tomar a realidade apregoada pelos saberes como nossa própria ficção.

Assim configurada, a didática tradutória é investida de uma função poética (JAKOBSON, 1995JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. Tradução Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1995.),atuando como uma prática de estranhamento, ao se posicionar contra o dogma do servilismo epistêmico e pragmático, uma vez que toma o ato didático não como mediação comunicativa, mas como uma indistinção entre representação e representado, vinculando sua função a seu instrumento. Por esse motivo, a sua própria realização será sempre singular.

Movimentar matérias pela escrileitura

Os princípios gerais da ação didática dispostos acima engendram algumas questões procedimentais: como operar de modo tradutório com matérias em movimento, embora amorfas, reunidas em um arquivo - concebido como suporte gerativo de pensamento? Como, a partir dele, produzir autoconhecimento e sabedoria de vida, sem quantificação paradigmática ou modelo racionalista totalizante?

Para começar, as matérias que selecionamos, por meio do currículo e da didática, não são contingenciadas por uma espécie de laicização, advinda do positivismo, feita sobre a doutrina religiosa da Graça, como se fossem dons sobrenaturais, distribuídos por um deus misericordioso, ou dados, fornecidos como um favor imerecido, emanados de alguma fonte salvadora, seja esta por essência filosófica, científica ou artística. Ao contrário, as matérias que tomamos, para com elas processar a docência, são compreendidas como uma espécie de carnadura do tempo e do espaço, sustentada, por sua vez, pela ossatura do arquivo, levando-nos a escutar mais o avesso das coisas e esperar o sentido a elas imanente do que induzi-los e armazená-los. Nesse empirismo renovado, não gnosiológico, mas transcendental (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.), o ato educativo converte-se em experimentação pública do trabalho do pensamento, traçado pelo diagrama de forças das escrileituras tradutórias e formalizado em arquivos transdisciplinares, transculturais, translinguísticos, transemióticos.

A propósito, Derrida (1991DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991., p. 7) considera a leitura uma escrita da escrita: “Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo”. A leitura é, dessa maneira, um ato da suspeita, o qual, ao ativar uma economia do suplemento textual, conjugando-se com os seus excessos, margens, segredos e clausuras, resiste ao que há de manifesto e à pretendida profundidade de todo texto.

Leitura atenta ao detalhe, à dissimulação e àquilo que resta ali marginalizado. Pode-se, assim, ler entre as linhas e escrever sem linhas. Daí que um trabalho leitor dessa ordem impele-nos a adentrar os textos e a descosê-los em uma nova escrita, isto é, em uma ação transformadora das matérias originais: “Seria preciso, pois, num só gesto, mas desdobrado, ler e escrever” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991., p.7).

A escrita passa a agir, então, como “extração, enxerto, extensão” (DERRIDA, 2001DERRIDA, J. Posições. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p.79). Leitura ativa, que se torna leitura-escrita ou escrita-leitura (escrileitura, preferimos) devido ao caráter singular de sua função poética.Erigindo-se como um endereçamento possível ao arquivo do mundo para aqueles que não estão impedidos pela “prudência metodológica, normas de objetividade e baluartes do saber” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991., p.7), a escrileitura é, assim, o modus operandi privilegiado da didática da tradução.Esta exige que ponhamos algo próprio em nossa leitura-escrita do arquivo do mundo, de modo que a autorreferencialidade arrebate o intertexto e a intervivencialidade aí dispostos.

Com Derrida (2001DERRIDA, J. Posições. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p. 26), mais uma vez:

Nos limites em que ela é possível, em que ela ao menos, parece possível, a tradução pratica a diferença entre significado e significante. Mas, se essa diferença não é nunca pura, tampouco o é a tradução, e seria necessário substituir a noção de tradução pela de transformação: uma transformação regulada de uma língua por outra, de um texto por outro. Não se tratou, nem, na verdade, nunca se tratou de uma espécie de ‘transporte’, de uma língua a outra, ou no interior de uma única e mesma língua, de significados puros que o instrumento - ou o ‘veículo’ - significante deixaria virgem e intocado.

Nesse sentido, a tradução não toma a interpretação como reduplicação nem comentário fiel das assertivas de algum pensador (PERETTI, 1989PERETTI, C. de. Jacques Derrida: texto y desconstrucción. Barcelona: Anthropos, 1889.), uma vez que é necessário sempre reinterpretar a interpretação, tornando o ato de ler um gesto ativo e produtivo. Estratégia dupla do movimento de escrileitura trata-se de contornar a busca de um sentido último do texto e, consequentemente, da suposta verdade ali embutida, ao se intervivencializar com o arquivo do mundo. Em suma, sem arquivo não há tradução, nem invenção (ADÓ, 2013ADÓ, M. D. L. Educação potencial: autocomédia do intelecto. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. ; AQUINO, 2016AQUINO, J. G. Não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância. Childhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 179-200, jan.-abr. 2016.).

Desta feita, não concebemos apenas o arquivo como acervo, matéria, história, memória ou repositório. De modo mais incisivo, fazemos uso do arquivo como espaço, ou espaçamento, que intertextualiza, coordenando uma apropriação possível da tradição sem a busca de origens ou fins. Entendido como um suporte, o arquivo permite o arquivamento, uma vez que tanto produz como registra os acontecimentos: “Não há arquivo sem o espaço instituído de um lugar de impressão” (DERRIDA, 2001DERRIDA, J. Posições. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p.8). O arquivo é, portanto, o que ficcionaliza passado, presente e futuro, provocando movimentos de abertura ao imprevisível e ao desconhecido.

Docência tradutória: poética, ficção, estilo

Viver poeticamente a docência requer, como se vê, movimentar gestos que amalgamam leitura, escrita e tradução. Disso decorre que o ato pedagógico assim orientado não consiste em fazer exegese de autor, teoria, conceito ou texto, mas requer operações criadoras e críticas, tomadas precisamente como transcriações. Com Octavio Paz (2009PAZ, O. Traducción: literatura y literalidade. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009.),defendemos a ideia de que não há tradução que não seja uma operação literária, e,junto a Paul Valéry (1956VALÉRY, P. Variations sur lês Bucoliques.Paris: Gallimard, 1956. ), de que escrever é um trabalho de tradução, desde que haja, nesse ato, uma tomada de posição que coloque o próprio pensamento em uma dobra especular, por meio da qual ele mesmo percebe-se em processo de autocriação diuturna.

Com efeito, tratamos a docência como uma operação estreitamente vinculada ao trabalho da criação, que opera em processo de tradução permanente e, nesse sentido, como um exercício intensivo de pensamento. Esse exercício compactua, de algum modo, com aquele que nos foi legado pelo pensamento freireano, ou seja, admite e realiza uma ruptura com os esquemas verticais relacionados às ações voltadas à produção e à circulação do conhecimento. Pensamento que age na afirmação de que “os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2012FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012., p.76), considerando que esse mundo não é dado, mas será sempre lido com a linguagem que o concebe.

Esse exercício tradutório da docência consiste em um modo de colocar à mostra e, mais além, de enfatizar o próprio processo de construção e de criação do nosso mundo comum. Por isso, a necessidade de evidenciar a especificidade daquilo que criamos e como criamos, na condição de professores, na medida em lidamos com diversas linguagens, tanto no âmbito do currículo quanto no da didática.

Afirmamos, assim, que a ficção é a nossa mais profunda realidade, pois falar em realidade é falar em ficção e também em metaficção. Desse modo, aquilo que chamamos real diz respeito a uma permuta com o ficcional. Podemos até mesmo dizer que a produção da realidade docente funciona como ação de uma ficção da ficção, que ativa materialmente um real de experiência inventiva.

No entanto, não rejeitamos o referente nem o consideramos uma realidade extralinguística, desde que, com a linguagem, não fazemos representação. Consideramos, de outro modo, que o itinerário de uma ruptura com a mediação representacional é constituído pela participação da linguagem como constituinte e constituidora de um real, ao passo que, na representação, é necessário que algo preencha o lugar de uma identificação. Com o ato identificatório ocorre, necessariamente, um distanciamento daquilo que foi identificado, uma vez que toda identificação só é possível mediante a classificação e a categorização de elementos previamente classificados, ou seja, conhecidos. Para identificar, é necessário reconhecer aquilo que identificamos, por meio daquilo que o diferencia ou o iguala, num rol de classificações - as quais não são o real, mas, simplesmente, modos de lidar com a constituição de realidades.

Nesse caso, a docência tradutória atua na ordem metaficcional, dispondo a ação docente em uma forma complexa, a qual envolve a multiplicidade dos componentes de sentido. Procurando desdobrar o processo de produção de sentido que há na experiência produzida pelas linguagens mobilizadas no terreno escolar, a docência tradutória admite que escrever, ler, pensar, praticar aulas é sempre traduzir, na mesma medida em que essa tradução se comporta como uma ação poética, materializada como realidade e produção de sentidos.

Parece-nos, assim, que aprender a ler-escrever nada mais é do que um exercício de estilo (DELEUZE, 2003DELEUZE, G. Proust e os signos. Tradução Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.), o qual, de fato, funciona “para submeter a língua a um processo de variação contínua com vistas a transformar quem escreve e quem lê” (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004TADEU, T.; CORAZZA, S.; ZORDAN, P. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004., p. 170). Exercício de estilo que encaminha o professor a lidar com equívocos, incompletudes e enigmas, tratando-os como acontecimentos que constituem, justamente, um domínio informe (CORAZZA, 2013CORAZZA, S. M. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS ; Doisa, 2013.) por onde a docência passa e opera.

Ocorre que somente existe leitura-escrita criadora quando há uma destinação, um apelo a pensar, produzido com as (e pelas) matérias irradiadas pela obra, desembocando na tradução de uma nova obra. Como afirma Juranville (1987JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987., p. 394): “Só podemos ler o destino produzindo uma nova obra, inventando [...] na qual a verdade da obra original é apreendida, mas necessariamente transformada em verdade parcial”.

Aquilo que a obra oferece às nossas escrileituras, sempre tradutórias e transcriadoras, não é um significado consistente, um sentido determinado, um mundo compreensível, mas uma abertura estilística que ultrapassa tudo isso e, inclusive, a própria obra. Como diz Blanchot (apud JURANVILLE, 1987JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987., p. 395):

[...] entre o livro que ali está e a obra que nunca está ali de antemão, entre o livro, que é a obra dissimulada, e a obra, que só pode afirmar-se na espessura presentificada dessa dissimulação, uma ruptura violenta, a passagem do mundo onde tudo tem mais ou menos um sentido, onde há obscuridade e clareza, a um espaço onde, falando com propriedade, nada tem sentido ainda, mas para o qual tudo o que tem sentido remonta como que em direção a sua origem.

Por isso, o trabalho tradutório de escrita-leitura na docência abre passagem para algo mais além dos seus próprios limites. As fantasias (BARTHES, 2005BARTHES, R. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.) autorais de ler, escrever e traduzir são as molas propulsoras do ato de pensar do professor, que não reconstitui sentidos já atribuídos, nem se apega ao nome do autor ou da obra (supostamente acabados), tampouco reflete a gravidade e o peso dos dados que mobiliza, mas destaca as aberturas, impessoais e violentas, para as suas existências. Tanto o autor e a obra, como as matérias aí em trânsito, são sempre parciais e provisórios. É por isso que, diz Juranville (1987JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987., p.399), “a invenção se propaga e toda teoria se reorganiza”.

Perscrutar a didática tradutória como transcriação, no sentido poético e criador, torna-se um exercício de observação de nossas práticas docentes cotidianas, que lidam com matérias curriculares e auleiras (CORAZZA, 2012CORAZZA, S. M. Didaticário de criação: aula cheia. Porto Alegre: UFRGS, 2012. ), bem como suas repercussões no mundo e nas relações. Trata-se de criar diferentes maneiras de constituir observações, que sejam materializáveis em escrileituras, de modo a produzir relações de afecção com o que conhecemos e, especialmente, para abrir o campo de nossa produção àquilo que dele difere.

Com James Wood (2012WOOD, J. Como funciona a ficção.Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 63), podemos afirmar que a literatura é diferente da vida, uma vez que a vida é cheia de detalhes, “mas de maneira amorfa, e raramente ela nos conduz a eles [...]. A literatura nos ensina a notar melhor a vida; praticamos isso na vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhor o detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos faz ler melhor a vida”.

É importante ressaltar que, ao falarmos em literatura, não nos referimos à instituição literária, nem a suas classificações em gêneros, cânones, economia, institucionalização de nomes de autores etc. O que nos interessa é tratar da escrita-leitura ao modo literário, ou melhor, tendo “a questão da linguagem pensada como o âmago do ato literário” (MACHADO, 2000MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura.Rio de Janeiro: Zahar, 2000., p.12).

Assumindo nosso ofício no escopo da tradução criadora, admitimos, portanto, a potência da linguagem ao modo de Borges, tal como referido por Piglia (2006PIGLIA, R. O último leitor. Tradução Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 28):

Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição de intérprete. Nem tudo é ficção (Borges não é Derrida, não é Paul de Man), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura. Podemos ler filosofia como literatura fantástica, diz Borges, ou seja, podemos transformar a filosofia em ficção mediante um deslocamento e um erro deliberado, um efeito produzido no ato de ler.

A concepção borgeana da leitura seria, em nosso entendimento, uma tradução criadora efetivada ao modo de Valéry (1955VALÉRY, P. Pensamento vivo de Descartes. In: DESCARTES, R. Discurso do Método. Para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução Maria de Lourdes Teixeira. São Paulo: Martins Editora, 1955.), quando este lê o Discurso do Método, de René Descartes, como se fosse um romance, demonstrando uma “disposição para ler, segundo o interesse e a necessidade”. Trata-se de ler conforme uma “inclinação deliberada para ler mal, ler fora do lugar”, e, com esse erro, “relacionar séries impossíveis” (PIGLIA, 2006PIGLIA, R. O último leitor. Tradução Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p.27).

A docência como canto tradutório

Se insistimos na tese de uma relação imanente entre leitura-escrita que se perfaz como tradução criadora, é porque nos interessa afirmar a didática como uma ação singular que provoca encontros, os quais acolhem a força vital da criação. A partir desses encontros, constrói-se uma rede ininterrupta de conexões e de contágios com tudo aquilo que se dispõe como fascínios de outra ordem: um sim não como resposta, um talvez incerto que perdura e que, por isso mesmo, podemos chamar de potencial (ADÓ, 2013ADÓ, M. D. L. Educação potencial: autocomédia do intelecto. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. ).

Entendemos, assim, a proposta de uma didática da tradução (CORAZZA, 2013CORAZZA, S. M. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS ; Doisa, 2013.; CORAZZA; RODRIGUES; HEUSER; MONTEIRO, 2015CORAZZA, S. M.; RODRIGUES, C. G.; HEUSER, E. M. D.; MONTEIRO, S. B. Didática da tradução: transcriações do currículo no Projeto Escrileituras. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 24. n. 56, p. 317-335, maio-ago. 2015.) como um modo factível de lidarmos com a urgência, sem chance de procrastinação, de forjar uma vida outra na educação, franqueando as condições de desacabrunhar a vontade de potência de educar já presente em nós:

É essa vontade de potência que estimula os acontecimentos, as novidades e o pensar no pensamento educacional, fazendo nossa profissão ser vivida como poesia e dotando-a de uma disposição trágica: isto é, da capacidade que temos de nos decidir politicamente pela responsabilidade vital de educar (CORAZZA, 2016CORAZZA, S. M. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, 2016., p.2-3).

Como tradutor, o professor não se obriga a transpor o conteúdo literal, autêntico ou verdadeiro das matérias consideradas originais, sejam elas científicas, filosóficas ou artísticas; logo, não realiza cópia, dublagem, fingimento ou validação textual. Tampouco medeia, rouba ou deixa-se escravizar por essas mesmas matérias. No entanto, cultiva uma saudável empatia com elas. Isso porque, “se, por um lado, a tradução deve prosseguir sendo ligada à matéria-fonte e, assim, manter, em algum grau, a sua equivalência de código ou de sentido; para que esta mesma matéria seja revitalizada, a tradução tem de transcriá-la, porque não pode não fazê-lo” (CORAZZA, 2016CORAZZA, S. M. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, 2016., p. 11).

Tais experimentações afirmam-se como efeitos de uma força plástica que atravessa o ato docente, operando, analogamente a Valéry (1991aVALÉRY, P. O homem e a concha. In: VALÉRY, P. Variedades. Tradução Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, p. 97-110, 1991a. ), pela voz que existe em cada professor; voz que é materializada, no currículo,pelas escolhas das matérias e traduções que delas executa, as quais, a seguir,dispõe didaticamente em um jogo dramáticonas aulas, a fim de que se convertam em chamamento de uma voz que vem, que deve vir, e que já não será mais a sua, nem a das vozes das matérias de partida - um canto, talvez.

De modo análogo, Guimarães Rosa (1937ROSA, J. G. Discurso de Guimarães Rosa. Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 53, ano 29, p. 261-263, 1937. Disponível em: <Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/guimaraesrosa.html#magma >. Acesso em: 31 ago. 2016.
http://www.jornaldepoesia.jor.br/guimara...
, s.p.) assim compreende as forças intervenientes no trabalho poético:

O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são ideias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto. Não se aliena, como um lunático, das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe - neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática, discreta e subterrânea.

No caso do professor-tradutor, ele se instala na zona cinzenta entre a fonte e o alvo das obras. Via suas experimentações tradutórias, ele interconecta as duas polaridades do processo pedagógico, possibilitando, com isso, que uma nova obra venha a se compor. A bem da verdade, esta será a sua obra. Disso decorre que, para as fontes primeiras que mobiliza, o professor-tradutor será, então, um consumidor empenhado, sem jamais pleitear ser um porta-voz fidedigno delas; para os alunos, será apenas mais um autor em risco. Seu canto será sempre sincopado, não sincrônico, por vezes cacofônico, de modo que um gesto docente que mereça tal designação

exigirá um esforço desmedido de autoexposição e de disponibilidade para um encontro desarmado com o outro. Senão, a experiência pedagógica vê-se transformar rapidamente em fetiche comunicacional ou, tanto pior, passatempo informativo, atingindo, desse modo, seus estertores ético-políticos. (AQUINO, 2014AQUINO, J. G. Da autoridade pedagógica à amizade intelectual: uma plataforma para o éthos docente. São Paulo: Cortez, 2014. , p. 184).

Entre a copiosidade do arquivo do mundo e o sopro humano contido na melodia transcriadora, o professor-tradutor não conhecerá o abrigo do seu tempo. Está fadado aos eternos recomeços, posto que se desgarrou do rebanho ecolálico dos seus contemporâneos. Seu canto, sempre a capela, aspira ao pássaro, não à orquestra, mas os ruídos do seu próprio tempo são, antes, o que capturam a sua atenção.

Novamente com Guimarães Rosa (1937ROSA, J. G. Discurso de Guimarães Rosa. Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 53, ano 29, p. 261-263, 1937. Disponível em: <Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/guimaraesrosa.html#magma >. Acesso em: 31 ago. 2016.
http://www.jornaldepoesia.jor.br/guimara...
, s.p.):

E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado, sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feito, ainda que mais nada tenha por fazer. A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera: relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora [...] Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento.

Aqui, as composições tradutórias possíveis do professor interceptado pela força da poética abdicam por completo da obstinação da glosa simplificadora em favor da forja de um estilo didático irrepetível. Uma assinatura, em suma. Recusando-se a se deixar confinar na condição de um mero atravessador do pensamento alheio, o professor-tradutor vale-se das matérias com que travou contato em sua jornada particular (e não somente aquelas sob sua jurisdição disciplinar),como um suporte generativo do trabalho tradutório. E, mediante o conjunto de fontes que escolheu transcriar, toma tais matérias como pontos ora de ancoragem, ora de desvio do próprio pensamento.

Só assim o professor passa a possuir aquilo que oferece ao mundo. Ou seja, se optou por fazer alguma gentileza intelectiva aos outros, que o faça com o próprio chapéu. Eis do que trata a tradução transcriadora:

Equivalência e paralelismo de um lado, substituição e criação de outro, essa é a ambivalência da nossa experiência profissional. Jogo complexo de tensão e equilíbrio, onde ninguém ganha, a não ser a renovação do mundo, a revitalização do processo civilizatório e a reinvenção das existências (nossas e alheias). Jogo arriscado, formado de transposições e de rupturas das elipses que nas matérias permanecem. Jogo realizado em um tabuleiro, situado entre a letra morta de cada matéria (que carrega sentidos supostos) e a sua letra inédita, conflituada e dotada de originalidade (CORAZZA, 2016CORAZZA, S. M. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, 2016., p.14).

Os acentos, as lacunas, os arranjos improváveis, os cacoetes, enfim: eis as marcas do timbre da voz de um professor-tradutor, cuja existência - gerada pela força de empuxo do currículo e levada ao limite nas aulas - é requisito para que o pensamento alheio ganhe alguma forma e vazão. Nessas condições, aprender dá-se como prova testemunhal de uma espécie de ato íntimo, não obstante, infinitamente aberto, de um professor que “canta com voz divina entre ruínas”, como escreve Álvaro de Campos (PESSOA, 1986PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986., p. 369).

Conclui-se, assim, que não poderemos existir, no plano ético-intelectivo, sem a trilha aberta pelos sinais vocais emitidos por um professor, aos quais retribuímos na medida dos nossos pulmões - algumas vezes, com um murmúrio; outras, comum estrondo.

Residiria, nesse canto tradutório cruzado, a poética possível do ato, da experiência e, mais ainda, da própria existência docente? Seria esta a pequena arte que tanto buscamos na educação?

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2016
  • Aceito
    04 Abr 2017
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