Acessibilidade / Reportar erro

ARTIGO - POLÍTICA, EDUCAÇÃO E ATUALIDADE DO PENSAMENTO FREIRIANO

ARTICLE - POLITICS, EDUCATION AND MODERNITY OF FREIREAN THOUGHT

RESUMO:

Este texto é produto da participação do autor no IIº Congresso Internacional Paulo Freire, na mesa de diálogo “Política, educação e atualidade do pensamento freiriano”. Tomando momentos da vida do educador Paulo Freire, o artigo procura mostrar quão orgânica é a relação entre Política e Educação para ele, quão estruturante esta relação é do seu pensamento, e como foi vivenciada ao longo do tempo. É intenção, com isso, demonstrar a perenidade de alguns conceitos e aquilo que foi transitório para Freire para, assim, tomar o seu pensamento na perspectiva de atualizá-lo para a realidade que vivemos hoje. Nessa perspectiva, ao final, são apresentadas algumas das grandes questões contemporâneas que estão colocadas para a humanidade, em particular, para educadores e educadoras, conclamando a atualidade do pensamento freiriano para enfrentá-las.

Palavras-chave:
Paulo Freire; Educação e Política; Pensamento freiriano

ABSTRACT:

This text is a product of the author’s participation in the thematic dialogue table “Politics, education and modernity of Freirean thought” at the II International Paulo Freire Congress. Reconstituting moments from the life of the educator Paulo Freire, the article seeks to show how organic the relation between politics and education is for him, how structural this relation is to his thinking, and how it has been experienced over time. Given this, it strives to make a point of the constancy of some concepts and what was transient for Freire, to thus bring his thought with the aims of updating it according to the reality that we live today. In this perspective, in the end, it presents some of the great contemporary issues that are posed for humanity, in particular, for educators, summoning the contemporaneity of Freire an thinking to face them.

Keywords:
Paulo Freire; Education and Politics; Freirean Thought

Bom dia! Inicialmente, quero agradecer o convite para participar deste importante evento, que toma o pensamento e a prática de Paulo Freire e nos coloca frente ao desafio de discuti-los na conjuntura atual. Gostaria, também, de cumprimentar meus colegas de mesa, professora Lisete Arelado e o professor Donaldo Macedo, assim como a nossa mediadora, a professora Analise da Silva.

Preciso esclarecer que o meu contato pessoal com Paulo Freire foi menor do que aquele que Lisete vivenciou, em particular durante a sua gestão na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e do que o longo trabalho que Donaldo teve oportunidade de realizar com ele. Conheci-o pelos seus escritos, ainda como estudante, fazendo um trabalho de alfabetização de adultos em uma favela no Jaguaré, em São Paulo, em 1967. Os textos chegavam por meio de amigos que participavam da rede ecumênica latino-americana, Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL). Como o Paulo estava exilado no Chile, muito do material que ele escrevia chegava em cópias por meio desta rede. Ainda nesta ocasião, tomei conhecimento da sua pedagogia e do chamado método Paulo Freire de alfabetização em um curso na casa do já falecido democrata cristão André Franco Montoro.

Mais tarde, no seu retorno do exílio, pude conviver pessoalmente com ele em algumas oportunidades. Fomos colegas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) enquanto professores da Pós-graduação em Educação. Em outro momento, Paulo foi conhecer um trabalho de alfabetização de adultos que desenvolvíamos com seringueiros no Acre, a pedido do líder dos seringueiros Chico Mendes, através do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), local no qual tive oportunidade de trabalhar. Paulo, muito gentilmente, não só conheceu o que vínhamos realizando e o material pedagógico por nós desenvolvido, como nos recomendou várias coisas importantes para o seu aprimoramento.

Finalmente, tive a possibilidade, antes mesmo de sermos colegas na PUC, de conversar com ele quando me candidatei a uma vaga no Conselho Mundial de Igrejas, local onde Freire trabalhou por dez anos, na Suíça. Conversamos sobre Genebra e a vida no conselho. Ele me recebeu, novamente muito gentilmente, e comentou o seguinte: “Sérgio, o problema de morar na Suíça é que aquilo lá é um perigo”, eu então perguntei: “Mas por que, professor?” “Porque... eu vou te contar um caso. Eu trabalhava no Conselho Mundial de Igrejas e tinha uma rotina, saía de lá todo dia às cinco horas, tomava o ônibus na porta da instituição às cinco e dez, depois de dez minutos eu descia numa parada e pegava um outro ônibus dois minutos depois, e chegava em casa às cinco e vinte e cinco. E foi isso durante meses. Mas um dia, o primeiro ônibus atrasou, eu peguei o segundo ônibus e cheguei cinco minutos atrasado na minha casa.” Falei: “Mas, professor Paulo, isso acontece”. Ele continuou: “Sim, isso acontece, pode acontecer, é verdade. Mas o problema é que eu fiquei indignado com o que tinha ocorrido. Daí que eu percebi que a minha cabeça estava ficando formatada pela cultura daquele país tão certinho, eu não poderia jamais me aculturar num país como aquele, deixar de ser brasileiro”. Percebi que Paulo respirava política até nos momentos de descontração.

Tomei este exemplo porque pensei em fazer uma exposição mostrando alguns momentos da vida do Paulo, abordando quão orgânica é a relação entre Política e Educação para ele, quão estruturante esta relação é do seu pensamento, e como isto foi vivenciado. Pretendo, com isso, mostrar a perenidade de alguns conceitos e aquilo que foi transitório, para assim encararmos o seu pensamento na perspectiva de atualizá-lo para a realidade que vivemos hoje.

Como muitos de vocês sabem, depois de trabalhar como professor nos primeiros anos da sua vida profissional, Paulo teve uma passagem pelo Serviço Social da Indústria (SESI) de Pernambuco, um organismo do empresariado local de assistência ao operariado e aos seus filhos, e que estava sendo aberto naquele estado. Ele entrou como funcionário no Departamento de Educação, logo depois assumiu a chefia desse departamento até, finalmente, tornar-se superintendente das ações em Pernambuco, tudo isso entre 1947 e 1957. Ali, desenvolveu uma experiência, como ele conta em vários dos seus textos e diálogos, que marcou muito a sua vida: os Círculos de Pais e Professores. Para apoiar o seu trabalho, Paulo manteve contato com um grupo de assistentes sociais que tinha uma perspectiva comunitária e coletiva do trabalho que realizavam no campo do serviço social, e menos voltado ao atendimento individual e assistencial. A partir desta orientação, esforçou-se para fugir da lógica assistencialista que marcava a cultura do SESI e procurou atuar sob uma orientação que pudesse ser promotora dos direitos dos trabalhadores e dos seus filhos. Para ele, o assistencialismo produziria dependência daqueles atendidos pelo SESI, dependência essa que iria contra a natureza do ser humano. Foi em função dessa orientação que implantou o círculo de Pais e Professores.

Eu vou ler algo que ele escreveu a respeito desses círculos, publicado em 1957, no jornal A Gazeta de Pernambuco, talvez um dos seus primeiros escritos. Foram três artigos a respeito do Círculo de Pais e Professores, que depois, mais tarde, em outras experiências educativas, veio a ser chamado por Círculo de Cultura. Os círculos foram implantados com a sua liderança, pela sua equipe, como forma de aproximação da comunidade de operários da escola dos seus filhos. Neles, discutiam-se não só os problemas relativos à escola, aos professores e a sua relação com os pais, mas também se fazia um convite para a participação permanente, visando influir nos destinos da educação dos seus filhos.

Os artigos traziam ideias que vão permanecer com Paulo como educador, investigador e ativista do campo da Educação e da Educação de Adultos, como vamos ver a seguir.

“Círculo de Pais e Professores é um capítulo da Educação de Adultos”, afirmou no primeiro desses artigos, já indicando o sentido amplo da educação de adultos, não apenas se restringindo ao escolar, mas também àquilo que fomos incorporando gradativamente nas nossas práticas educativas e chamando por Educação Popular.

Também afirmava que os círculos se propunham a preparar as pessoas para a responsabilidade social e política, indicando que a educação não se limitava ao ato de ensinar a aprender. Em seu artigo publicado em 21 de abril daquele ano, afirmou sobre o comportamento dos pais nos círculos:

No início, haverá certa passividade por parte dos pais, que sem experiência de participação até talvez estranhem esta nova posição que a escola lhe oferece. É possível até mesmo que alguns rejeitem esta nova posição. Essa estranheza e esta rejeição de alguns se explicam pela vocação paternalista que nos marca profundamente desde a nossa formação. (FREIRE, P.R.N., 1957FREIRE, P.R.N. Ainda a propósito de círculos de pais e professores. In: A Gazeta de Pernambuco, 7 de abril de 1957., p.8)

Paulo estava se referindo à nossa formação colonial, inicialmente dependente da metrópole, em seguida dos senhores de engenho, dos latifundiários, das elites do nosso país, nos tornando dependentes dos seus atos e das suas benesses, não nos colocando em posição de autonomia, de protagonista dos nossos atos. Já há aí uma crítica muito forte ao paternalismo, ao assistencialismo, em contraposição a uma educação mais participativa, autônoma.

Acostumados com uma relação de para e o trabalho sobre, (os pais) estranham quando é uma relação entre e o trabalho com. O verticalismo das nossas relações, que nos leva a ficar sempre sobre, se estranha de tal forma em nós que, mesmo abraçando teoricamente as relações entre, horizontais, vivemos quase sempre as primeiras. (FREIRE, P.R.N., 1957, grifos do autor, p.8)

Freire acreditava que a participação dos pais, a maioria operários, vindos dos setores pobres da sociedade, era uma forma de exercer democracia, que não só levaria à mudança na escola de acordo com seus interesses, como também os prepararia para intervir na sociedade.

E concluiu ao final do artigo:

Essa intervenção dos pais, cada vez mais consistente e construtiva nos destinos das escolas, irá formando neles certas atitudes, uma independência mental, respeito à tolerância pelos outros, interesse nos acontecimentos públicos, desejo de pensar e discutir em torno deles e um sentido de responsabilidade pela comunidade. (FREIRE, P.R.N., 1957FREIRE, P.R.N. Ainda a propósito de círculos de pais e professores. In: A Gazeta de Pernambuco, 7 de abril de 1957., p.8)

Portanto, para ele, ao exercer a prática democrática na escola se constrói democracia na comunidade, no Estado, nas atitudes das pessoas em geral. Desde 1957, portanto, nesses seus primeiros textos, Paulo já falava na relação entre Educação e Política, e em como a participação na escola poderia ser um forte instrumento de construção de uma democracia a ser levada para outras instâncias da sociedade.

Seu pensamento será sistematizado no primeiro trabalho de maior fôlego, Educação e atualidade brasileira, tese apresentada para o concurso da Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes em 1960, e que foi escrita em 1959. É de fato aí onde seus principais conceitos vão se expressar, tanto em relação à sua visão de ser humano, quanto em relação à análise da conjuntura que fazia para aquele momento histórico.

A possibilidade humana de existir - forma acrescida de ser -, mais do que viver, faz do homem um ser eminentemente relacional. Estando nele, pode também sair dele. Projetar-se. Discernir. Conhecer.

É um ser aberto. Distingue o ontem do hoje. O aqui do ali. Esta transitividade do homem faz dele um criador de cultura. A posição que ocupa na sua “circunstância” é uma posição dinâmica. Trava relações com ambas as faces do seu mundo - a natural, para o aparecimento de cujos entes o homem não contribui mas a que confere uma significância que varia ao longo da história (Corbusier, 1956, pág. 190) e a cultural, cujos objetos são criação sua.

A posição do homem, realmente diante destes dois aspectos de sua moldura, não é simplesmente passiva. No jogo de suas relações com esses mundos ele se deixa marcar, enquanto marca igualmente. (FREIRE, P.R.N.,2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003., p. 10).

Ao reconhecer a capacidade do ser humano de aprender, entende não ser possível esquecer a sua relação com a sua realidade, tanto a natural quanto a cultural, ressaltando a sua participação nos dois mundos, sem se reduzir a eles. O ser humano não será explicado como estando superposto a elas, mas sim participante.

Assim, para Paulo, não há como admitir a existência do ser humano não comprometido diante da sua circunstância, não integrado com ela, criticamente integrado com ela: “A relação de organicidade a que nos referimos implica a posição cada vez mais conscientemente crítica do homem diante do seu contexto para que nele possa interferir”. (FREIRE, P.R.N., 2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003.)

Vivíamos o governo do presidente Juscelino Kubistchek e Paulo fazia suas análises tendo como referência, principalmente, os escritos de Álvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos do Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB). O Instituto foi criado em 1955, vinculado ao então Ministério da Educação e Cultura, e muitas das produções dos seus pesquisadores orientavam a política do presidente da República.

Os autores levaram-no a refletir sobre aquele momento vivido pela sociedade brasileira e sua transição de uma sociedade fechada, rural, para uma sociedade urbana, desenvolvida, industrializada. Durante este processo, haveria também um movimento que se dava na consciência das pessoas, saindo de um comportamento de imobilismo e ‘mutismo’ frente aos fatos, de uma consciência intransitiva que não permitia escapar dos problemas imediatos e biologicamente vitais, para uma situação em que procura compreendê-los, uma consciência que estaria em trânsito.

(...) de um lado a industrialização vem retirando o homem nacional de sua tradicional posição quietista ou de seu tradicional mutismo, jogando-o nas aglomerações urbanas, às lutas de suas reivindicações, promovendo-lhe a consciência intransitiva e transitivo ingênua, com que mais permeável, ganha voz, que antes não tinha, de outro, a industrialização vem intensificando formas ‘assistencializadoras’ de ação, já analisadas por nós e que , ‘domesticando’ o homem, lhe dificultam a promoção da consciência ingênua à crítica, somente com a qual chegaremos à democracia como forma de vida, permeável e flexível, sobre o que se fundará a democracia, forma de governo. (FREIRE, P.R.N., 2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003., p.82)

No entanto, para que esta disponibilidade de compreensão dos fatos se tornasse de fato uma tomada de consciência crítica sobre o mundo, indo às raízes dos seus problemas, discutindo alternativas, Paulo apostava no papel da educação para que esta transição de fato pudesse ocorrer. São os educadores e as educadoras, comprometidos com a mudança que atuariam nesta transição entre uma consciência ingênua para uma consciência crítica, ajudando na criação e ampliação de uma consciência popular do desenvolvimento. Agindo assim, assumiriam a sua tarefa política, e não um papel de neutralidade frente ao mundo e a sociedade: “Vivemos uma fase que está a exigir a participação cada vez maior do povo na elaboração do desenvolvimento. Que está a exigir a inserção do povo criticamente consciente nele, somente como irá criando novas disposições mentais com que poderá opor-se a superar a inexperiência democrática.” (FREIRE, P.R.N., 2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003., p.30).

Crítico do ‘mutismo’ da sociedade brasileira, construída pelo histórico colonial e pela dependência cultural e ideológica que fazia do povo brasileiro objeto das suas elites, propunha uma pedagogia ativa e crítica, firmada em forte compromisso de participação e diálogo, que o levaria a vivenciar, no cotidiano, a experiência democrática necessária à sua inserção no processo de desenvolvimento vivido naquela oportunidade, (...) uma educação para o desenvolvimento e para a democracia, entre nós, tem que ser uma educação pelo diálogo. Uma educação pela participação, que desenvolva no homem brasileiro a sua criticidade. (FREIRE, P.R.N., 2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003., p.51).

Paulo fará, também, em sua tese, uma forte crítica à escola, dizendo que havia um distanciamento entre o que ela fazia e a realidade vivida no Brasil. A escola estaria desenraizada, desatualizada, inorgânica, desvinculada da vida das pessoas, daí a importância de se fazer um trabalho político e pedagógico que permitissem aproximar a educação da sociedade e dos seus interesses. Buscava, com isso, por meio da educação, que a população pudesse discutir a realidade em que vivia ao tomar consciência dos seus problemas e da importância de ser agente na construção de um mundo melhor.

O grande problema da nossa educação atual, o seu mais enfático problema, é o de sua inadequacidade com o clima cultural que vem se alongando e tende a se alongar a todo o país. É uma educação em grande parte, ou quase toda, fora do tempo e superposta ao espaço e aos espaços culturais do país (FREIRE, P.R.N., 2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003., p.79).

Esta escola, inadequada ao seu tempo, reproduzia em suas estruturas o que se vivia na sociedade, segundo seu pensamento: uma escola vertical, autoritária, fundada em uma autoridade externa e que, por ser assim, não permitia que seus alunos ganhassem autonomia, passando à consciência crítica, indispensável à necessária formação democrática para a participação social. Propunha, como consequência, uma escola de outra natureza:

(...) uma escola centrada democraticamente no seu educando e na sua comunidade local, vivendo as suas circunstância, integrada com seu problemas, levará os seus educandos a uma nova postura diante dos problemas de contexto, à intimidade com eles. A da pesquisa em vez de mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de vida. A do trabalho. A da vitalidade, em vez daquela que insiste na transmissão de ‘ideias inertes” ...Escola que plural, plural nas suas atividades, criará circunstâncias as quais provoquem novas disposições mentais no brasileiro, com que se ajustará em condições positivas ao processo de crescente democratização que vivemos. Escola que se faça uma verdadeira comunidade de trabalho e de estudo, plástica e dinâmica. E que, ao em vez de escravizar crianças e mestras a programas rígidos e nacionalizados (sic), faça que aquelas aprendam sobretudo a aprender. A enfrentar dificuldades. A resolver questões. A identificar-se com a sua realidade. A governar-se, pela ingerência nos seus destinos. A trabalhar em grupo (FREIRE, P.R.N., 2003FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003., p. 85).

Paulo saiu exilado do país em outubro 1964, depois de várias experiências em trabalhos educacionais implementados ou assessorados por ele, considerados pelos militares, que haviam tomado o poder no Brasil, como subversivos e perigosos para a sociedade brasileira. No Chile, depois de ter passado rapidamente pela Bolívia, Paulo vai terminar de escrever Educação como Prática da Liberdade, no qual formalizou o método de alfabetização que já vinha sendo desenvolvido e aplicado desde os anos iniciais da década de 1960, particularmente no Movimento de Cultura Popular no Recife e em Angicos, no Rio Grande do Norte. O texto retoma a sua tese de 1959, os fundamentos da sua pedagogia, junto com a solução prática do que formatou para o campo da alfabetização de adultos, reafirmando seu compromisso político com a alfabetização.

Nesse mesmo período em que está no Chile, incorpora uma literatura de forte influência marxista, graças não só ao contato com o conjunto de pessoas exiladas dessa orientação política, mas também em função do contexto vivido naquele país e o seu repensar crítico sobre o que havia vivido no Brasil. É o que dá origem, portanto, à Pedagogia do Oprimido, que ele termina de escrever em 1968, publicando pela primeira vez em 1970, nos Estados Unidos. No Brasil será publicado apenas em 1975.

Conforme Beisiegel:

Enquanto os escritos anteriores se apoiavam predominantemente em autores não diretamente filiados ao pensamos marxista... Agora, neste livro, entre os autores citados encontravam-se, além de Hegel, Marx, Engels, Lenin, Fromm, Sartre, Marcuse, Fannon, Memmi, Lukacs, Debray, Freyer, Kossic, Goldman e Althusser. Além disso, havia ainda repetidas menções a escritos e pronunciamentos de Mao Tsé-tung, Fidel Castro, Ernesto Guevara, Camilo Torres (BEISIEGEL, 2010BEISIEGEL, C. R. Paulo Freire. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010., p.84).

Esta mudança de orientação teórica impacta diretamente o sentido dado à educação por Freire, incorporando a ele os limites impostos de uma sociedade de classe aos setores mais desfavorecidos, os oprimidos. A ordem social condiciona a possibilidade de realização de uma educação para a democracia, na medida em que a própria democracia estaria condicionada à ordem social, agora entendida como uma sociedade de opressão de classe.

Pedagogia do Oprimido terá uma rápida circulação, com traduções para diversos idiomas, caracterizando-se como a obra mais importante e de referência de Freire. Ali, como afirma Celso Beisiegel, as referências sobre classes sociais tornaram-se recorrentes, elite e povo foram substituídos por opressores e oprimidos, consciência crítica aproximava-se de consciência de classe. Paulo Freire “assumia sem hesitações a condição de cristão revolucionário, embora a entendesse como uma consequência das reações desencadeadas contra o seu comprometimento com o processo de emancipação dos ‘oprimidos’.” (BEISEIGEL, 2010BEISIEGEL, C. R. Paulo Freire. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010., p.82).

Seu compromisso com os mais pobres e oprimidos se acentuou, o que é demostrado pela epígrafe que abre suas primeiras palavras em Pedagogia do Oprimido: “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, mas, sobretudo, com eles lutam.” (FREIRE, P.R.N., 1987FREIRE, P. R. N. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.23).

Ao tratar de opressores e oprimidos, diferentemente do que propunha como diálogo entre elite e povo em Educação e atualidade brasileira, agora são apenas os oprimidos aqueles capazes de libertação:

E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão do seu poder, não podem ter, neste poder, a força da libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. (FREIRE, P.R.N.,1987FREIRE, P. R. N. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.30)

Em Pedagogia do Oprimido, acentua-se no educador sua postura anti-idealista no processo de libertação. Ressalta que o protagonismo dos ‘esfarrapados’ por ele proclamado, não pode se limitar a reconhecer a sua situação de opressão, pois ainda não significa a sua libertação. “Ela só ocorrerá quando, ao se reconhecerem como oprimidos, se engajam na luta por se libertarem: é preciso, enfatizemos, que se entreguem à práxis libertadora.” (FREIRE, P.R.N., 1987FREIRE, P. R. N. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.36).

Paulo Freire reafirma suas críticas aos processos educativos dentro e fora da escola: educadores que ditam disciplinas; conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram; palavras ocas; memorização de conteúdos de forma mecânica; comunicados ao invés de comunicação. O saber é uma doação por parte dos educadores, acentuando o caráter assistencialista da escola e a postura dependente do aluno. Todas essas características que viriam a compor o que denominou por educação bancária, apenas reforçariam a condição de oprimido dos setores populares, estando a serviço da sua desumanização.

De forma oposta, Paulo, atendendo à sua perspectiva libertadora, propunha uma educação problematizadora que reconhecia a capacidade de aprender e ensinar de todos os seres humanos, superando a dicotomia entre educador-educando, e afirmando que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, P.R.N., 1987FREIRE, P. R. N. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.68). Assim, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Assim, os conteúdos deveriam ganhar significância ao serem confrontados com a realidade em uma perspectiva crítica, problematizadora. Refletindo sobre si e sobre o mundo, educador e educando juntos vão desenvolvendo o poder de captação e compreensão do mundo, fazendo-se, como consequência, mais inseridos nesta realidade. Dessa forma:“aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se “apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles.” (FREIRE, P.R.N., 1987FREIRE, P. R. N. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.74).

Do Chile, Paulo tem uma passagem pelos Estados Unidos no ano de 1979, para lecionar na Universidade de Harvard e depois segue para Genebra para trabalhar no Conselho Mundial de Igrejas (CMI), local que o acolheu por dez anos. Ali, na Europa, ele passou a conviver com as tensões do centro do capitalismo no contexto da Guerra Fria. É também um momento em que discute e vivencia os processos de emancipação de populações africanas, historicamente subordinadas à dominação colonial, onde realizará um importante trabalho com aqueles que saiam do jugo de Portugal.

Em Genebra, já no CMI, escreve em 1971, um dos seus textos mais contundentes sobre o papel das igrejas: Papel educativo das igrejas na América latina, e que foi publicado posteriormente no Brasil, em 1976, no livro Ação cultural para a liberdade. O texto mostra, na mesma perspectiva do livro Pedagogia do Oprimido, como ele via as igrejas e o seu papel com relação aos oprimidos.

Quando passou pelo Chile, convivendo com a situação política daquele país e a interferência externa de interesses estrangeiros, Paulo se tornou um crítico da presença dos Estados Unidos na América Latina, assumindo para si a luta contra o imperialismo norte-americano na região. Para ele o atraso da América Latina não pode ser analisado sem tomar esta questão como um aspecto da sua dependência ‘colonial’ às decisões da ‘matriz’.

Refletindo sobre essa questão, afirma nesse texto que “o desenvolvimento da América Latina só se dará na medida em que se resolver a sua contradição fundamental ou principal que configura a sua dependência... É inviável o desenvolvimento integral numa sociedade de classes. Nesse sentido é que desenvolvimento é libertação, de um lado, da sociedade dependente como um todo em face do imperialismo; de outro, das classes sociais oprimidas em relação às classes opressoras.” (FREIRE, P.R.N., 1976FREIRE, P. R. N. O papel educativo das igrejas na América Latina. In: FREIRE, P. R. N.. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 120).

A relação entre educação e política transparece também de maneira muito forte na medida em que ele analisa o papel das igrejas na América Latina:

Não podemos discutir de um lado as Igrejas e de outro a Educação e, finalmente, o papel das primeiras com relação às segundas a não ser historicamente.

As Igrejas de fato não existem como entidade abstrata, elas são constituídas por mulheres e homens ‘situados’, condicionados por uma realidade concreta, econômica, política, social e cultural. São instituições inseridas na história, onde a educação também se dá. Da mesma forma, o fazer educativo das Igrejas não pode ser compreendido fora do condicionamento da realidade concreta em que se acham.

No momento, porém, em que levamos a sério tais afirmações, já que não podemos aceitar a neutralidade das igrejas em face da história, assim como a neutralidade da educação”. (FREIRE, P.R.N., 1976FREIRE, P. R. N. O papel educativo das igrejas na América Latina. In: FREIRE, P. R. N.. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p.105)

Paulo tinha lado! E dizia isso muito claramente.

No caso específico das Igrejas, estávamos na década de 70, período em que a Teologia da Libertação orientava os trabalhos pastorais. Paulo havia participado em anos anteriores de grupos que trabalhavam na base de igrejas, em particular a Igreja Católica, mas que não tinham uma vinculação eclesiástica com elas, grupos que posteriormente poderiam ser identificados como Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Ali, acabou refletindo sobre o papel fundamental das igrejas, da igreja popular em relação aos setores empobrecidos.

Apesar de ter trabalhado no Conselho Mundial de Igrejas, se reconhecia como uma pessoa de fé, mas não religiosa. Vinculava-se com o movimento cristão que pensava uma Igreja na base, uma Igreja que pudesse refletir a situação dos mais pobres e que pudesse, com isso, fazer do trabalho pastoral um trabalho político de dimensão educacional.

Paulo dirá também para as igrejas que não há conscientização se de sua prática não resultar uma ação consciente. Uma ação consciente dos oprimidos, como classe explorada na sua luta por libertação. “Pois esta Páscoa, esta travessia, só pode ocorrer com os oprimidos, juntos” Ninguém conscientiza ninguém. Ambos dependem desta relação entre teoria e prática: “Cedo percebem, que a indispensável Páscoa, de que resulta a mudança de sua consciência, tem realmente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, mas práxis, compromisso histórico.” (FREIRE, P.R.N., 1976FREIRE, P. R. N. O papel educativo das igrejas na América Latina. In: FREIRE, P. R. N.. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p.107).

Só os oprimidos poderiam ser utópicos, diz Freire. Ser utópicos, proféticos e esperançosos, na medida em que alcançam a consciência de classe. E poderíamos dizer, traduzindo isso para o mundo de hoje, uma consciência que toma a dimensão de classe, mas que se amplia para as múltiplas identidades que são fatores de exclusão social como racismo, homofobia, machismo e tantas formas de discriminação e apartação que têm fortemente marcado a sociedade brasileira.

E as Igrejas, comprometidas com os oprimidos para a transformação radical da sociedade, deveriam ser também proféticas, utópicas e esperançosas, recusando os paliativos assistencialistas e os reformismos na sua prática educativa.

Naturalmente, numa linha profética, a educação se instauraria como método de ação transformadora. Como práxis política a serviço da permanente libertação dos seres humanos, que não se dá, repitamos, nas suas consciências apenas, mas na radical modificação das estruturas em cujo processo se transformam as consciências. (FREIRE, P.R.N., 1976FREIRE, P. R. N. O papel educativo das igrejas na América Latina. In: FREIRE, P. R. N.. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p.127)

Ainda quando estava em Genebra, a partir de 1975, Paulo começa a trabalhar nos países africanos, tendo recebido, inicialmente, um convite da Guiné Bissau. Eram países recém- libertos do jugo colonial. Depois foi para Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe; apenas Moçambique deixou de convidá-lo. Com isso, acabou dedicando um bom tempo do seu trabalho a esses países africanos, ex-colônias de Portugal.

Nos dez anos que passou no CMI, viajou para muitos países, falando sobre pedagogia do oprimido e outros temas, visitando várias cidades a convite de igrejas e de setores leigos. Ao todo, realizou em torno de 150 viagens internacionais nos 10 anos que ali trabalhou, e desse total, 34 foram para África, totalizando 355 dias de trabalho em campo, atuando em programas de educação para os novos governos que assumiram o poder depois da saída dos portugueses. (Cf. RIBEIRO, 2009RIBEIRO, Mário Bueno. Andarilhagens pelo mundo: Paulo Freire no Conselho Mundial de Igrejas. 2009. Tese (Doutorado em Teologia) - Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2009..)

Sobre as primeiras experiências naqueles países, publicou o livro Cartas a Guiné-Bissau, um relato analítico do trabalho realizado com a equipe do Instituto de Ação Cultural (IDAC), uma organização não governamental que fundou com um grupo de brasileiros que estavam exilados na Suíça.

O que é importante salientar neste livro é a sua aproximação teórica e prática entre Educação e Trabalho. Essa relação, com forte orientação marxista, tinha como perspectiva pensar a reconstrução de um país que, depois de um processo revolucionário, buscava se constituir numa sociedade socialista. O que estava em questão era como pensar a implantação de um sistema escolar em países que estavam saindo da sua condição de colônia e que procuravam desconstruir uma mentalidade colonial produzida por um sistema elitista de educação e que atendia apenas aos interesses dos portugueses. Como implantar um sistema escolar que refletisse a tradição da cultura africana daqueles países era o grande desafio. Mais do que isto, como enfrentar este desafio com uma parte da equipe morando em Genebra, a milhares de quilômetros dos países africanos, com apenas algumas viagens de trabalho por ano?

Coerente com seu pensamento, Paulo e equipe decidiram por não preparar nenhum pacote pedagógico, recusando-se a realizar uma invasão cultural.

A nossa opção política e a nossa prática em coerência com ela nos proibiam, também, de pensar sequer que nos seria possível ensinar aos educadores e aos educandos da Guiné-Bissau, sem com eles aprender. Se toda a dicotomia entre ensinar e aprender, de que resulta que quem ensina se recusa a aprender com aquele ou aquela a quem ensina, envolve uma ideologia dominadora, em certos casos, quem é chamado a ensinar algo deve aprender primeiro para, em seguida, começando a ensinar, continuar a aprender.(FREIRE,P.R.N.,1977FREIRE, P. R. N. Cartas a Guiné Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.,p.17).

Para ele e sua equipe, um dos elementos a serem considerados era essa aproximação entre o trabalho pedagógico das escolas e a produção necessária para o desenvolvimento do país:

A ligação do trabalho ao estudo, do trabalho socialmente útil e criador (...) na transição que vivemos para uma sociedade sem exploradores e nem explorados, persegue dois objetivos. De um lado, eliminar a contradição entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, de cuja superação total estamos ainda longe; de outro, possibilitar o autofinanciamento gradativo da educação, sem o que não poderia ser, em nossas condições democratizadas. (FREIRE, P.R.N., 1977FREIRE, P. R. N. Cartas a Guiné Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977., p. 69).

Em outro momento da sua atuação na África, agora escrevendo aos animadores dos círculos de cultura de São Tomé e Príncipe, Paulo reafirma a dimensão política do trabalho educativo:

A tarefa a que nos entregamos, a de possibilitar que um grande número dos nossos camaradas, sobretudo nos campos, mas não somente neles, leiam e escrevam, o que estavam proibidos de fazer no regime colonial, é uma tarefa política. A própria decisão de fazer a alfabetização é um ato político. É preciso estarmos vigilantes com relação às insinuações feitas, às vezes, ingenuamente, às vezes, astutamente, no sentido de nos convencer de que a alfabetização é um problema técnico e pedagógico, não devendo, por isso, ser misturada com a política...

Na verdade, não há educação e por isso alfabetização de adultos neutra. Toda a educação tem em si, uma intenção política. (FREIRE, P.R.N., 1980FREIRE, P. R. N. Quatro cartas aos animadores de Círculos de Cultura de São Tomé e Príncipe. In: BRANDÃO, C. R. A questão política da educação popular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980., p.137)

Paulo volta ao Brasil em 80 e assume, em 1989, a Secretaria de Educação do município de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores. As orientações básicas que foram estabelecidas com a equipe de governo mostram claramente o seu compromisso político com os mais pobres. São algumas delas: ampliar o acesso da escola aos setores populares; democratizar o poder pedagógico e educativo, ampliando a participação popular; melhorar a qualidade; contribuir para eliminar o analfabetismo; melhorar a qualidade não apenas pela quantidade de conteúdos, mas sim como espaço de elaboração da cultura popular; não chamar a população para dar instruções, receitas, mas sim para a construção de um saber que vai além da ‘experiência feita’; fazer da escola um centro irradiador da cultura popular, de organização política das classes populares; associar a educação escolar à educação popular, aquela realizada fora da escola.

Em seu discurso de posse, reafirmou seu compromisso com uma educação política, comprometida com a mudança, respeitadora do diálogo com os trabalhadores da educação:

Chegamos aqui não como quem assalta, como quem se apodera de algum espaço, de alguma coisa, não como quem se julga cheio de saber, vai salvar o que a gente, a priori, considere perdido, não. Nós chegamos aqui e estamos chegando aqui, nessa casa, para humildemente cumprir com o gosto de um dever que nos fascina, um dever de educadores e, por isso, de políticos, com uma certa opção, é claro, porque não há educador neutro, porque não há educação neutra. (FREIRE, A.M.A., 2006FREIRE, A. M. A. Paulo Freire: uma história de vida. 1. ed. Indaiatuba: Villa das Letras, 2006., pg.290)

Concluindo, se considerarmos alguns dos pontos levantados da trajetória do Paulo descritas até aqui, podemos notar que algumas coisas se revelam perenes em seu pensamento.

Ao longo do tempo, permaneceu inalterada a sua concepção de ser humano, que ele traduz já em Educação e atualidade brasileira, de 1959. É a visão de ser humano, inacabado, aberto ao mundo, vocacionado para ser mais, para humanizar-se, e que ao ganhar consciência sobre os problemas, mergulha no desafio de superá-los - isso é permanente, é perene no pensamento do educador.

Ao longo do tempo, é perene também o comprometimento ético com os oprimidos e o seu compromisso com a construção de uma sociedade justa, humanizada. Uma sociedade onde não se pode ter uma postura neutra, em particular em sociedades de classe como a nossa, onde é profunda a desigualdade social. Esta é a responsabilidade ética da educação, que não pode se afastar do seu compromisso histórico por justiça social.

Permanece a sua coerência e a sua aposta na construção de uma sociedade democrática. Aposta no diálogo, no envolvimento direto dos oprimidos nos processos de emancipação. Esta não é tarefa das elites que sempre agiram em atenção aos interesses próprios em detrimento dos da maioria da população. Aposta, que para construir democracia é necessário reconhecer a diversidade cultural e investir na sua valorização.

É também uma aposta perene, permanente, a indissociabilidade entre teoria e prática. Pessoalmente nunca deixou de unir o que estudava e pensava com o acompanhamento prático das suas ideias em países onde viveu ou acompanhou experiências. Nunca foi um intelectual de gabinete, ao mesmo tempo, nunca foi um ativista ingênuo, que acreditava que somente a prática não refletida seria suficiente para avançar nos compromissos políticos estabelecidos.

O que mudou, ao longo do tempo, foi a sua análise de contexto, e as suas categorias de análise das múltiplas realidades vividas. Neste sentido, entendo que não há fases no pensamento freireano. O que houve foi um enriquecimento frequente das suas posições graças a sua própria coerência entre teoria e prática. Quanto mais ele se envolvia nas práticas, mais ele buscava compreendê-las a partir de uma reflexão teórica, revisitando seus conceitos. Dessa forma, buscava a teoria necessária para explicar aquelas práticas, refazendo-as em novos ciclos de aprendizagem.

Para nós, frente ao desafio desta mesa, é importante observar essa perenidade e a adaptabilidade do pensamento de Freire. A partir delas, o desafio é refletir a respeito da atualidade que estamos vivendo e os seus múltiplos desafios: quais são os novos elementos que devemos considerar em nosso trabalho político como educador?

Eu diria, pensando de uma maneira mais global e menos conjuntural, que nós estamos vivendo um momento do capitalismo com graves consequências para a humanidade. Como podemos aplicar as ideias de Freire, pensadas no contexto da passagem do capitalismo industrial, para o capitalismo financeiro e globalizado que estamos vivendo hoje? Como trabalhar com os novos oprimidos, que não são mais aqueles operários do SESI, são outros grupos sociais vinculados a novas formas de sociabilidades que vêm compondo a sociedade brasileira? Não se fala mais em imperialismo, apesar de Alcântara, do Trump, da Venezuela e do golpe no Brasil. Fala-se muito mais dos impactos da globalização. Como trabalhar com Freire numa sociedade globalizada como a nossa? Como trabalhar com Freire numa perspectiva em que a natureza não tem mais que ser dominada, ao contrário, ela é fator de sustentabilidade a ser preservada a qualquer preço, sob risco de destruição do planeta? Como trabalhar com Freire não mais tendo como base o nacional-desenvolvimentismo, não mais em contexto de ditadura, não mais em contextos de neoliberalismo, não mais nos progressismos dos governos que nós vivenciamos nos últimos anos na América Latina, mas sim, aprendendo com estas experiências, construindo novas maneiras de fazer política? Enfim, quais são as nossas utopias colocadas para momento político que estamos vivendo?

É isso que eu queria trazer. Muito obrigado.

REFERÊNCIAS

  • BEISIEGEL, C. R. Paulo Freire. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010.
  • FREIRE, A. M. A. Paulo Freire: uma história de vida. 1. ed. Indaiatuba: Villa das Letras, 2006.
  • FREIRE, P. R. N. Educação como prática da liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
  • FREIRE, P. R. N. O papel educativo das igrejas na América Latina. In: FREIRE, P. R. N.. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
  • FREIRE, P. R. N. Cartas a Guiné Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
  • FREIRE, P. R. N. Quatro cartas aos animadores de Círculos de Cultura de São Tomé e Príncipe. In: BRANDÃO, C. R. A questão política da educação popular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
  • FREIRE, P. R. N. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • FREIRE, P. R. N. A educação na cidade. São Paulo: Cortez Editora, 1991.
  • FREIRE, P. R. N. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2003.
  • RIBEIRO, Mário Bueno. Andarilhagens pelo mundo: Paulo Freire no Conselho Mundial de Igrejas. 2009. Tese (Doutorado em Teologia) - Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2009.

JORNAIS:

  • FREIRE, P.R.N. Ainda a propósito de círculos de pais e professores. In: A Gazeta de Pernambuco, 7 de abril de 1957.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2018
  • Aceito
    07 Fev 2019
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antonio Carlos, 6627., 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil, Tel./Fax: (55 31) 3409-5371 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revista@fae.ufmg.br