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CONTRIBUIÇÕES FOUCAULTIANAS PARA O DEBATE CURRICULAR DA EDUCAÇÃO FÍSICA

FOUCAULDIAN CONTRIBUTIONS TO THE PHYSICAL EDUCATION CURRICULAR DEBATE

RESUMO:

Este artigo problematiza a questão curricular no âmbito da Educação Física, adotando o referencial foucaultiano como instrumental analítico. A problematização é engendrada a partir do conceito de dispositivo, tendo em vista as relações entre saber, poder e sujeito que nele se desdobram. Após uma síntese dos elementos que constituem o dispositivo, traça-se, com eles, e em diálogo com formulações construídas por trabalhos do campo da educação e do currículo, algumas pistas no território da Educação Física, aqui entendidas como modos outros de se entrever e levar adiante as práticas curriculares desse componente. Numa operação de atravessamento discursivo, e não de correlação necessária, essas pistas são entretecidas com fragmentos de experiências narradas por professores que colocam em ação a perspectiva curricular denominada “cultural”. Nesse tensionamento entre elementos de caráter diverso, busca-se assinalar um exercício de suspeita sobre o próprio pensamento e de questionamento intermitente em relação ao currículo da Educação Física.

Palavras-chave:
Currículo; Educação Física Escolar; Estudos Foucaultianos

ABSTRACT:

This article problematizes the curricular issue in the scope of Physical Education, adopting the Foucauldian referential as its analytical instrument. The problematization is engendered from the concept of device, in view of the relations between knowledge, power and subject that unfolds in him. After a synthesis of the elements that make up the device are traced, with these elements and in dialogue with formulations already constructed by works of the field of education and curriculum, some clues in the field of Physical Education, here understood as other ways of glimpsing and carrying out the curricular practices of this component. In a discourse-crossing operation, and not of necessary correlation, these clues are interwoven with fragments of experiences narrated by teachers that put into action the curricular perspective called “cultural”. In this tension between elements of different character, it is sought to signal, finally, an exercise of suspicion about the own thought and of intermittent questioning in relation to the curriculum of Physical Education.

Keywords:
Curriculum; Scholar Physical Education; Foucauldian Studies

INTRODUÇÃO - POR QUE FOUCAULT?

Michel Foucault provavelmente é uma daquelas figuras que dispensa apresentações pormenorizadas. Mais de três décadas se passaram desde a sua morte e as reverberações da sua obra não cessam. Exemplos disso podem ser observados no inventário bibliográfico elaborado por Aquino (2013AQUINO, J. G. A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Revista Brasileira de Educação, v. 18, n. 5, abr./jun. 2013.), que atesta a abrangente presença foucaultiana em publicações brasileiras, bem como no exame, efetuado por esse mesmo autor (AQUINO, 2014AQUINO, J. G. O pensamento como desordem: repercussões do legado foucaultiano. Pro-Posições, Campinas, v. 25, n. 2, p. 83-101, maio/ago. 2014.), de algumas das repercussões do legado foucaultiano, especialmente as que se deram entre seus críticos. Seja pelos múltiplos usos que se fazem de seus conceitos, pelas controvérsias e censuras endereçadas ao seu pensamento ou, até mesmo, pelas odes de idolatria que costumam ser entoadas àquelas intelectualidades astutas que não logram uma existência despercebida, o fato é que o trabalho de Foucault vem impactando as análises do contemporâneo em múltiplas áreas do conhecimento.

Embora seja chamado de filósofo, é difícil situar Foucault num único campo, já que sua perspicácia cética parece ser um belo exemplo de como transitar por fronteiras disciplinares sem ser definitivamente capturado por nenhuma delas. Foucault perturbou a Filosofia, a História, a Linguística, a Psicologia, o Direito, a Literatura, para ficar apenas em algumas das searas cruzadas por aquilo que Gallo e Veiga-Neto (2007GALLO, S.; VEIGA-NETO, A. Ensaio para uma Filosofia da Educação. Educação. São Paulo: Segmento. n. 3. (Especial Foucault pensa a Educação). mar. 2007. p. 16-25.) entendem como o exercício transdisciplinar desse pensador. Disso decorre a diversidade de efeitos e apropriações da obra foucaultiana.

A despeito da pluralidade de territórios e temas visitados por Foucault, a educação, no entanto, não chegou a se constituir como foco principal dos seus esforços analíticos, sendo mencionada apenas de modo transverso em seus escritos, especialmente quando ele se debruçou sobre a constituição das instituições disciplinares e aí incluiu a escola. Não obstante, a produção acadêmica no campo educacional brasileiro revela uma progressiva apropriação do referencial foucaultiano a partir da década de 1990, como demonstram Paraíso (2004PARAÍSO, M. A. Pesquisas pós-críticas em Educação no Brasil: esboço de um mapa. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 122, p. 283-303, maio/ago. 2004.), Aquino (2013AQUINO, J. G. A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Revista Brasileira de Educação, v. 18, n. 5, abr./jun. 2013.) e Gallo (2014GALLO. S. Editorial: “O ‘efeito Foucault’ em Educação”. Pro-Posições, Campinas, v. 25, n. 2, p. 15-21, maio/ago. 2014.). Registram-se como marco desencadeador desse movimento as obras organizadas por Tomaz Tadeu da Silva - O sujeito da educação: estudos foucaultianos (1994) - e por Alfredo Veiga-Neto - Crítica pós-estruturalista e educação (1995) -, bem como as investigações encetadas no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No âmbito dos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), importante espaço de disseminação da pesquisa educacional brasileira, Paraíso (2004) alega, ao traçar um mapa do que se convencionou chamar de estudos pós-críticos em educação, que as pesquisas situadas sob essa alcunha expandiram-se nas reuniões dessa entidade científica a partir de 1993, ancoradas em uma multiplicidade de autores e perspectivas, entre os quais o pensamento foucaultiano adquire relevo.

A proliferação de pesquisas pós-críticas na ANPEd encontra lugar privilegiado no Grupo de Trabalho de Currículo (GT Currículo). Ao esquadrinhar a produção desse GT, Paraíso (2005PARAÍSO, M. A. Currículo-mapa: linhas e traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil. Educação e Realidade, v. 30, n. 1, p. 67-82, jan./jun. 2005.) identifica o processo de criação de um currículo pós-crítico, por ela denominado currículo-mapa. E assim como o fez em relação às pesquisas educacionais, sinaliza, em meio à profusão de ferramentas teórico-metodológicas adotadas, “uma forte influência no currículo-mapa dos trabalhos de Michel Foucault” (PARAÍSO, 2005PARAÍSO, M. A. Currículo-mapa: linhas e traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil. Educação e Realidade, v. 30, n. 1, p. 67-82, jan./jun. 2005., p. 70).

Em sua contestação das pretensões modernas que caracterizam os currículos influenciados pelas teorias não críticas e críticas, as teorias pós-críticas não apontam nenhum caminho perfeccionista, salvacionista ou progressista. Elas não se arrogam a pretensão de oferecer a interpretação mais coincidente com a realidade. “Não constituem uma doutrina geral sobre o que é ‘bom ser’, nem um corpo de princípios imutáveis do que é ‘certo fazer’” (CORAZZA, 2001CORAZZA, S. M. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 56). No campo curricular, não oferecem nenhuma proposta de modificação dos comportamentos ou sentimentos calcada em ideais regulatórios, contentam-se com problematizar a cultura em que vivemos e o tipo de subjetivação promovida pela experiência escolar.

Apesar da sua considerável presença no debate educacional e curricular, as análises foucaultianas têm passado despercebidas pelos pesquisadores da Educação Física escolar. Um levantamento de teses, dissertações e artigos produzidos entre 2011 e 2016, realizado por Destro (2017DESTRO. D. S. Disputas políticas pela Educação Física escolar na Base Nacional Comum Curricular. 2017. 122 f. Relatório de Qualificação (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), demonstra que os estudos curriculares pós-críticos na Educação Física são embrionários, e mais ainda quando se trata daqueles que se deixaram inspirar pela obra de Foucault. Se, na virada do século XX para o século XXI, o campo do currículo já indiciava um movimento de substantiva mudança no que concerne ao tom até então impresso às pesquisas pelas teorias críticas (PARAÍSO, 2005PARAÍSO, M. A. Currículo-mapa: linhas e traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil. Educação e Realidade, v. 30, n. 1, p. 67-82, jan./jun. 2005.), na Educação Física, mais de dez anos depois, esse aporte segue predominante (DESTRO, 2017DESTRO. D. S. Disputas políticas pela Educação Física escolar na Base Nacional Comum Curricular. 2017. 122 f. Relatório de Qualificação (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Com efeito, pensar o currículo da Educação Física escolar com a ajuda do instrumental foucaultiano é tanto uma atitude tardia, tendo em vista o atual estágio dos estudos curriculares, quanto incipiente, quando se toma como base o contexto da Educação Física. E é justamente essa atitude que este texto anseia levar adiante.

Mas se Foucault não se dedicou à educação, o que explicaria a difusão do seu trabalho no campo educacional, de maneira geral, e no debate curricular, de modo específico? E o que justifica a tentativa de fazê-lo falar ao currículo da Educação Física? É possível recorrer às suas ideias para se pensar a Educação Física na escola? No rastro dos sobreavisos de Veiga-Neto e Rech (2014)VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. 2. ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014., seria este um uso pertinente ou impertinente do pensamento foucaultiano? A noção de ferramenta, sugerida pelo próprio Foucault (2006)FOUCAULT, M. Gerir os ilegalismos. Entrevista concedida a Roger Pol-Droit, gravada em janeiro de 1975. In: POL-DROIT, R. Michel Foucault - entrevistas. São Paulo: Graal, 2006. p. 41-52., talvez ajude a responder a essas questões.

Certa feita, durante uma entrevista, disse o pensador francês que todos os seus livros “podem ser pequenas caixas de ferramentas” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. Gerir os ilegalismos. Entrevista concedida a Roger Pol-Droit, gravada em janeiro de 1975. In: POL-DROIT, R. Michel Foucault - entrevistas. São Paulo: Graal, 2006. p. 41-52., p. 52). Veiga-Neto (2006VEIGA-NETO, A.; REICH, T. L. Esquecer Foucault? Campinas, Pro-Posições, v. 25, n. 2, p. 67-82, maio/ago. 2014., p. 801), por sua vez, reportando-se à metáfora nietzschiana de uma filosofia a marteladas,1 1 Metáfora construída por Friedrich Nietzsche em O crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo, cuja primeira impressão em alemão data de 1888. afirma que os conceitos podem ser entendidos como “[...] ferramentas com as quais golpeamos outros conceitos, o nosso próprio pensamento e a nossa própria experiência”. E explorando essa metáfora, discute as possibilidades abertas por Foucault para pensar o ato educativo. É com esses argumentos, portanto, que vislumbramos a potencialidade do referencial foucaultiano para fazer operar um gesto problematizador sobre o objeto aqui delimitado, para “golpearmos” a questão curricular no âmbito da Educação Física. Ademais, ao se reconhecer, como o faz Aquino (2014AQUINO, J. G. O pensamento como desordem: repercussões do legado foucaultiano. Pro-Posições, Campinas, v. 25, n. 2, p. 83-101, maio/ago. 2014., p. 87), que “[...] aquilo de mais potente e, ao mesmo tempo, mais perturbador [que] a obra foucaultiana teria legado aos contemporâneos [...] [é] a suspeita permanente em relação aos jogos de verdade caucionados pelas racionalidades em voga”, haverá pertinência em se admitir que um currículo de Educação Física, independente da sua afiliação teórica, consubstancia-se a partir de uma certa racionalidade e coloca em circulação determinados jogos de verdade relativos a modos de ser e agir no domínio das práticas corporais.

Embora quase desconsiderada pelas pesquisas e discussões curriculares da Educação Física, a teorização pós-crítica tem inspirado a “artistagem”2 2 Sandra Corazza (2002) cunhou o termo “artistagem”. Artistar é uma estética, uma ética e uma política a se inventar junto a uma educação que procura “[...] o não sabido, o não olhado, o não pensado, o não sentido, o não dito” (p. 14). A pesquisa, o trabalho do professor com seus orientandos e alunos, dá-se nas zonas fronteiriças, na penumbra da cultura, nas tocas mais estranhas da linguagem. Como em todo o desenvolvimento de uma arte, artistar a educação implica entregar-se ao caos para extrair dali matérias para criações. Trata-se de “arriscar-se, assumir o risco da morte, que é estar viva/o, sem se considerar um produto acabado” (p. 15). de experiências nas escolas. Conforme o contexto escolar e comunitário, os professores que protagonizam essas experiências inventam alternativas metodológicas, elegem temas diversos e produzem as suas novidades. Mesmo forjando um currículo próprio, denominam-no “cultural” por adotarem o compromisso político dos Estudos Culturais, em sua vertente pós-estruturalista. Ao nomeá-lo e falar dele, estão a atuar definitivamente em prol do seu surgimento. É um dizer-fazer e um fazer-dizer (CORAZZA, 2010CORAZZA, S. M. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica , 2006.), com os quais dialogaremos ao problematizarmos o currículo da Educação Física com ferramentas foucaultianas.

Tal como Veiga-Neto (2000)VEIGA-NETO, A. Na oficina de Foucault. In: GONDRA, J.; KOHAN, W. (Org.). Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica , 2006, p. 79-91., não estamos assumindo uma distinção entre o “discursivo” e o “concreto”, entre aquilo que os professores fazem e o que dizem que fazem. Os discursos dos professores sobre o currículo que põem em ação são práticas culturais, posto que são práticas de significação. “Os significados não existem soltos no mundo, à espera de serem descobertos e formalizados linguisticamente. Enquanto coisa deste mundo, o significado não preexiste à sua enunciação. Ele só existe a partir do momento em que foi enunciado, passando a fazer parte de um ou mais discursos” (VEIGA-NETO, 2000VEIGA-NETO, A. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, M. V. (Org.). Estudos culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema... Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000. p. 37-69, 257-286., p. 56).

O currículo cultural da Educação Física não possui um atributo essencial ou originário; só existe como resultado de um processo de produção histórica, cultural e social (SILVA, 2007SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2011.). Nenhum currículo é dotado de uma identidade prévia. Sua identidade é construída a partir dos aparatos discursivos e institucionais que o definem como tal. “Deriva daí que um currículo não pode, nem deve, ser tomado ‘ao pé da letra’, porque este ‘ao pé...’ não existe. O que existe é a equivocidade do querer-dizer de um currículo, fornecida por suas significações constantemente diferidas” (CORAZZA, 2001CORAZZA, S. M. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 12).

Envolvido em um emaranhado de significados, o discurso não deixa de ser um fenômeno cultural. Pronunciar, enunciar, narrar, falar etc. trazem como consequência que aquele que diz (ou escreve) diga sempre mais do que pretendíamos que dissesse, faça mais do que deveria fazer, crie o que não tínhamos previsto. Não é por acaso que os professores que afirmam alinhar-se à perspectiva cultural da Educação Física atribuem grande importância ao registro do seu fazer curricular em forma de vídeos, fotografias ou relatos de experiência.

No entender de Suárez (2011SUÁREZ, D. H. Relatos de experiencia, saber pedagógico y reconstrucción de la memoria escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 387-416, abr. 2011.), os relatos de experiência revelam uma parcela importante do saber pedagógico construído e reconstruído em meio à multiplicidade de situações e reflexões. Tomando contato com esses documentos, é possível compreender boa parte das trajetórias percorridas por seus autores, as concepções que influenciam sua docência, as certezas e dúvidas que os mobilizam, as ideias que perpassam suas convicções pedagógicas e também suas inquietações, desejos e realizações. A leitura e análise desses materiais permite conhecer uma visão da educação escolar bastante distinta daquela comumente veiculada nos meios de comunicação ou oficializada por intermédio dos informes das avaliações padronizadas. O que salta aos olhos é o currículo em ação, narrado justamente por aqueles que planejam, desenvolvem e avaliam o processo.

PISTAS PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DA QUESTÃO CURRICULAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA: RESSONÂNCIAS FOUCAULTIANAS

Na presente análise, o ato de pensar a questão curricular tendo como horizonte o ensino da Educação Física é engendrado a partir do conceito de dispositivo, um conceito-eixo no qual se articulam os três domínios do trabalho de Foucault - saber, poder e sujeito.3 3 Veiga-Neto (2016), valendo-se da proposta de Miguel Morey, prefere chamar esses domínios de ser-saber, ser-poder e ser-consigo. Apresentamos, num primeiro momento, uma síntese dos elementos que constituem o dispositivo e, na sequência, localizamos o corpus textual que exploramos, composto por registros de experiências curriculares narradas por um grupo de professores. Com os elementos do dispositivo, e em interlocução com formulações já construídas por outros trabalhos no campo da educação e do currículo, traçamos algumas pistas no território da Educação Física, aqui entendidas como modos outros de se entrever e levar adiante as práticas curriculares desse componente. Essas pistas são, por fim, atravessadas pela discursividade materializada nos relatos docentes.

A ideia de dispositivo surge na obra de Foucault a partir da década de 1970.4 4 Embora este texto não se detenha naquilo que a maioria dos especialistas designa como fases ou etapas do pensamento de Foucault - arqueologia, genealogia e ética -, convém ressaltar que o uso da noção de dispositivo coincide com a fase genealógica. Segundo Castro (2016CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.), a noção de dispositivo disciplinar, presente em Vigiar e Punir: nascimento da prisão (FOUCAULT, 2013cFOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41. ed. Petrópolis: Vozes , 2013c.) - publicado originalmente em 1975 -, e a descrição do dispositivo da sexualidade, realizada em História da Sexualidade I: a vontade de saber (FOUCAULT, 2017FOUCAULT. M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra , 2017.) - com primeira publicação em 1976 -, são os principais marcos do uso que Foucault passa a fazer desse termo como uma ferramenta analítica. Conquanto o filósofo não tenha se dedicado à formulação de uma acepção precisa desse conceito, é possível apreender uma definição de dispositivo numa entrevista concedida por ele em 1977:

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.

[...]

[...] trata-se no caso de uma certa manipulação das relações de força, de uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las etc. O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações de força, sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, M. Sobre a história da sexualidade. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal, 2012. p. 243-276., p. 244-246).

Pode-se dizer, em síntese, que um dispositivo enreda complexos de saberes que fundamentam regimes discursivos, relações de poder que amparam e são amparadas por esses regimes, bem como processos de subjetivação, de fabricação de sujeitos.

Com Foucault (2013bFOUCAULT, M. Sobre a arqueologia das ciências. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. MOTTA, M. B (Org.). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2013b., p. 110), o saber é compreendido como “o conjunto de elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) formado a partir de uma única e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária”. O saber reúne enunciados legitimados que diferenciam o verdadeiro do falso num dado momento e num certo domínio. Em outras palavras, os saberes sustentam arranjos discursivos que circunscrevem e definem os objetos a partir de regimes de verdade. Adentrar a seara da noção de discurso implica admitir, com Foucault, e na esteira das lições da virada linguística, que o discurso possui um caráter constitutivo e não meramente representacional.

[...] O discurso não é uma estreita superfície de contato ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; [...] analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos. [...] Uma tarefa inteiramente diferente [...] consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2008., p. 55-56).

Segundo Foucault (2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2008.), portanto, o discurso cria as coisas, e não apenas as nomeia, criando também efeitos de verdade sobre elas, e isso inclui uma outra atitude diante daquilo que tradicionalmente se entende por verdade. Há em Foucault, como bem exprimiu Veyne (2014VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. 2. ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014., p. 16), uma “concepção da verdade como não correspondência ao real”. As verdades são geradas nos/pelos discursos e não estão aí desde sempre ou para sempre; elas não são a essência das coisas e dos acontecimentos, nem algo que deva ser revelado, mas, sim, aquilo que, a partir de determinados processos históricos e em determinadas condições, colocam o discurso sob certa ordem e incidem sobre nossas formas de pensar e agir. Nas palavras de Foucault (2012FOUCAULT, M. Sobre a história da sexualidade. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal, 2012. p. 243-276., p. 12), “a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder”.

O poder, por sua vez, numa compreensão foucaultiana, é algo que se efetua em uma multiplicidade de relações difusas, móveis, presentes em todas as esferas do corpo social. Não é alguma coisa que se possui, mas que se exerce; é uma forma de relação que se configura por uma ação indireta sobre outras ações. Ele tem um sentido produtivo, na medida em que só pode ser exercido sobre sujeitos que disponham de um campo de reações possíveis. Não se trata de uma relação de repressão ou de violência, nem de consentimento - embora possa fazer uso desses instrumentos -, mas de uma ação de controle mais sutil, que impele, separa, facilita, dificulta, permite, impede, estende, limita, a fim de estruturar o campo das ações alheias e induzir comportamentos. O poder é da ordem do governo e governar consiste em conduzir condutas (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. (Org.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.; 2017FOUCAULT, M. O que é a crítica? Cadernos da FFC, Marília, v. 9, n. 1, p. 169-189, 2000.).

Relações de poder não são relações de pura determinação ou coerção. A ideia de poder como condução de condutas carrega em si o imperativo da ação. Desse modo, só há relação de poder onde aquele que por ora se situa como alvo do seu exercício pode agir, movimentar-se. Ser governado é deslocar-se no interior de um terreno de possibilidades engendrado pela ação de governo, cujas fronteiras, por mais delimitadas e rígidas que sejam, sempre podem ser rompidas e ultrapassadas por aqueles que se locomovem nesse terreno, mesmo que isso signifique passar a habitar um outro esquema de governo. É por isso que, para Foucault (1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. (Org.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.), o governo de uns pelos outros é indissociável de uma dimensão de liberdade. Liberdade e resistência, ao invés de serem interpretadas como o oposto do poder, equivalem à sua condição de existência.

Saber e poder, ainda que possuam atributos específicos, não são estranhos ou exteriores um ao outro. Eles formam nexos que sustentam diferentes sistemas e que possibilitam compreender o que institui a aceitabilidade desses sistemas (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, M. O que é a crítica? Cadernos da FFC, Marília, v. 9, n. 1, p. 169-189, 2000.; 2017FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: MOTTA, M. B. (Org.). Ditos e Escritos III - Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 411-422.).

[...] nada pode figurar como elemento de saber se, de um lado, não está conforme a um conjunto de regras e de coações características, por exemplo, de tal tipo de discurso científico numa época dada, e se, de outro lado, não dotasse efeitos de coerção ou simplesmente de incitação próprios ao que é validado como científico ou simplesmente racional ou comumente admitido, etc. Inversamente, nada pode funcionar como mecanismo de poder se não se manifesta segundo procedimentos, instrumentos, meios, objetivos que possam ser validados em sistemas mais ou menos coerentes de saber (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, M. O que é a crítica? Cadernos da FFC, Marília, v. 9, n. 1, p. 169-189, 2000., p. 14-15).

São os nexos de saber-poder que permitem entrever os dispositivos como redes em que se tecem o dito e o não dito, como “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, M. Sobre a história da sexualidade. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal, 2012. p. 243-276., p. 246). E o valor analítico desses nexos reside na sua implicação com processos de subjetivação, isto é, com processos que forjam sujeitos. É importante reconhecer que tais processos não estavam patentes na acepção de dispositivo expressa por Foucault na década de 1970. No entanto, ele próprio alegaria, alguns anos mais tarde, a centralidade adquirida pelo sujeito em seu trabalho: “[...] não é o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minha pesquisa” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. (Org.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., p. 232). Além disso, os rumos tomados pelas produções que correspondem à terceira fase de sua obra,5 5 Os livros História da Sexualidade II: o uso dos prazeres (FOUCAULT, 2014c) e “História da Sexualidade III: o cuidado de si” (FOUCAULT, 2014d), publicados em 1984, bem como os registros dos cinco últimos cursos ministrados no Collège de France (FOUCAULT, 2010a, 2010b, 2011, 2014b, 2016), na década de 1980: “Do governo dos vivos” (1979-1980), “Subjetividade e verdade” (1980-1981), “A hermenêutica do sujeito” (1981-1982), “O governo de si e dos outros” (1982-1983) e “A coragem da verdade” (1983-1984), também conhecido como “O governo de si e dos outros II”. em que o foco recai sobre a constituição dos sujeitos como agentes morais sobre si mesmos, a partir de sua vinculação com a verdade, permitem-nos relacionar o dispositivo aos processos de subjetivação. Essa relação é reiterada por Deleuze (1990DELEUZE, G. ¿Qué es un dispositivo? In: BALBIER, E. et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-163.) e Agamben (2009AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 25-51.), posto que ambos, em seu diálogo com Foucault, identificam na noção de dispositivo o domínio do sujeito e as experiências subjetivas. Agamben (2009AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 25-51., p. 38), ao recuperar a explicação foucaultiana de dispositivo, dirá que “[...] os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito”. Deleuze (1990)DELEUZE, G. ¿Qué es un dispositivo? In: BALBIER, E. et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-163., por seu turno, define o dispositivo como uma trama instável de linhas que se entrecruzam, distinguindo, entre essas linhas, aquelas que posicionam os sujeitos e os convidam a estabelecer certas relações consigo mesmos. Decerto que não se trata do sujeito fundador, originário, visto como o cerne do qual derivam os processos sociais, tal como o situam as filosofias da consciência. Para Foucault (2013a), ao contrário, o sujeito resulta desses processos. O sujeito é, então, um efeito dos jogos de verdade gestados pelos nexos de saber-poder dos dispositivos. Por tudo isso, este trabalho recorre ao conceito de dispositivo para conceber o currículo da Educação Física como uma maquinaria formada tanto por nexos de saber-poder quanto por subjetivações que deles decorrem.

Em Foucault, é possível identificar, segundo Castro (2016FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade: curso no Collège de France (1980-1981). São Paulo: Marins Fontes, 2016.), dois sentidos para os processos de subjetivação, um mais amplo e outro mais restrito. O sentido mais amplo diz respeito aos modos como o sujeito aparece enquanto objeto de um determinado nexo de saber-poder, àquilo que ele deve ser, ao lugar que deve ocupar. O sentido mais restrito corresponde à produção de subjetividades, às formas de atividade do sujeito sobre si, e está relacionado ao conceito de ética, presente nos trabalhos mais tardios de Foucault. Da relação entre o sentido mais restrito e o sentido mais amplo dos processos de subjetivação transcorre, então, a impossibilidade de se prever, por definitivo, os sujeitos que sucedem de um dispositivo. A relação agonística de permanente incitação entre poder e liberdade, a plasticidade da configuração dos elementos de um dispositivo e a dimensão do si-consigo podem gerar cesuras e consequências impensadas.

À luz dos pressupostos apresentados e acedendo ao convite de Agamben (2009AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 25-51.) para situarmos os dispositivos num novo contexto, lançamo-nos ao desafio de nos movermos sobre o solo da Educação Física subvencionados por ferramentas oriundas do pensamento de Foucault. Com essas ferramentas, problematizamos o currículo do componente em causa, compondo algumas pistas e acionando - numa operação de atravessamento discursivo, e não de correlação necessária - fragmentos de experiências curriculares que se situam no horizonte da perspectiva curricular denominada “cultural”.

Nesta vertente, as práticas corporais são tomadas como textos da cultura trespassados por relações de poder. Sob influência das teorias pós-críticas, organizam-se situações didáticas para questionar os marcadores sociais presentes nas brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, a fim de empreender uma ação política a favor das diferenças, por meio da valorização das linguagens corporais dos grupos minoritários (NEIRA, 2018NEIRA, M. G. Educação Física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco, 2018.). A revisão sistemática realizada por Rocha et al. (2015ROCHA, M. A. B. et al. As teorias curriculares nas produções acerca da Educação Física escolar: uma revisão sistemática. Currículo sem Fronteiras, v. 15, n. 1, p. 178-194, jan./abr.2015.) identificou que a produção científica do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar (GPEF) da Faculdade de Educação da USP concentra trabalhos alinhados à proposta.

O GPEF, cujo surgimento situa-se no ano de 2004, é composto por professores que se reúnem quinzenalmente para estudar os campos de inspiração do currículo cultural, assim como para pensar e analisar as práticas concretizadas nas escolas em que trabalham (instituições de Educação Básica, públicas e particulares, localizadas na cidade de São Paulo e em municípios circunvizinhos). O espaço-tempo do grupo, no qual se imbricam momentos de discussão e de atuação pedagógica, constitui-se como um agenciamento coletivo, um território de divisas fluidas e permeáveis onde o currículo se coloca sob incessante manufatura.

Para além de artigos, livros, teses e dissertações, o portal eletrônico do GPEF6 6 http://www.gpef.fe.usp.br disponibiliza mais de uma centena de relatos de experiência, uma das principais formas de documentação das práticas protagonizadas pelos membros do grupo. Esses relatos registram os projetos desenvolvidos pelos docentes e narram, entre outros aspectos, as motivações para eleição de um determinado tema, os objetivos de aprendizagem, as atividades realizadas, as respostas dos estudantes às situações vividas, os instrumentos avaliativos empregados, os resultados alcançados e as impressões dos professores acerca do ato educativo.

Materializando o testemunho de quem “põe as mãos na massa”, os relatos de experiência transformam-se em produções suscetíveis à investigação e crítica, provocando o olhar sobre o fazer pedagógico e convidando ao exame, à tomada de posição e, principalmente, à discussão. Percebe-se, por exemplo, que, ao desenvolver a tarefa educacional, os professores mobilizam uma série de conhecimentos pouco presentes na literatura.

Apostando na potência desses materiais para a problematização do currículo da Educação Física, pensado enquanto um dispositivo, o portfólio de análise da presente pesquisa foi constituído por cinco relatos de experiência produzidos por integrantes do GPEF. Quanto à baliza temporal, foram escolhidas as narrativas docentes elaboradas no último quinquênio e como critérios de seleção elegeram-se aquelas que, após a leitura: a) mostraram-se inspiradas nos princípios ético-políticos que caracterizam a proposta; b) empregaram procedimentos didáticos culturalmente orientados; c) tornaram possível construir uma plataforma de tensionamento e indagação quando colocadas ao lado do pensamento foucaultiano. Ou seja, foram selecionados relatos que, em específico, evitaram o daltonismo cultural, reconheceram a cultura corporal da comunidade, promoveram a justiça curricular, articularam-se ao projeto pedagógico da escola, descolonizaram o currículo e ancoraram socialmente os conhecimentos abordados. Ao mesmo tempo, esses relatos evidenciam o fomento de atividades de mapeamento, leitura das práticas corporais, ressignificação, aprofundamento e ampliação dos saberes dos estudantes, além do registro e avaliação. Finalmente, são textos que correspondem a um extrato discursivo de ordem distinta daquela que circunscreve o campo das nossas ferramentas analíticas, mas que se põe num movimento agonístico em relação a elas, gerando um efeito de exterioridade capaz de instigar questionamentos na arena curricular da Educação Física.

PRIMEIRA PISTA: UMA OUTRA CONCEPÇÃO DE CONHECIMENTO

As análises foucaultianas sobre nexos de saber-poder, verdade e discurso ajudarão a produzir um deslocamento na concepção de conhecimento. Se os nexos de saber-poder instituem discursividades, o ato de conhecer também possuirá um caráter discursivo. Isso significa que se os discursos são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2008., p. 56), ou “uma violência que fazemos às coisas, [...] uma prática que lhe impomos em todo o caso” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT. M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014a., p. 50), então não há, como dirá também Foucault (2013aFOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. 4. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2013a.), nenhuma afinidade prévia, nenhuma ligação necessária, nenhuma cumplicidade ou semelhança entre o conhecimento e as coisas a serem conhecidas. O deslocamento ocorre ao se colocar em xeque a concepção representacional de conhecimento, um dos pilares da modernidade ocidental, segundo a qual o ato de conhecer consistiria em representar o real existente a priori, acessando a sua essência, nomeando-a, por meio da linguagem, e tornando-a inteligível ao pensamento. Conhecer seria alcançar a verdade das coisas.

Subtrair do conhecimento a marca da representação e da verdade, passando a alojá-lo sob o apanágio da produção e da arbitrariedade é, portanto, uma das operações que Foucault nos leva a executar. Submetido a essa operação, o currículo, mesmo que se esforce, não permanecerá incólume, afinal, por tradição, encontra-se alicerçado na concepção de conhecimento como gesto representacional. Seguir a pista dessa outra noção de conhecimento para problematizar o campo das práticas curriculares, renunciando ao modelo canônico do conhecimento como espelho da realidade, certamente não é uma proposição inaugurada por este trabalho. O estudo de Ribeiro (2014RIBEIRO, C. R. “Práticas de pensamento” e o debate curricular: contribuições a partir de Foucault-Cortázar. Pro-Posições, v. 25, n. 1, p. 219-237, jan./abr.2014.) - que propõe o conceito de “práticas de pensamento” para ensaiar, a partir de Foucault, uma acepção de conhecimento não fundada na reflexividade da razão - e os argumentos apresentados por Deacon e Parker (2011DEACON, R.; PARKER, B. Educação como sujeição e como recusa. In: SILVA. T. T. (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 97-110.) são alguns exemplos que ajudam a situar esse debate. Mas o que esse outro modo de se conceber o ato de conhecer tem a dizer, especificamente, para o currículo da Educação Física?

Tomemos como objeto de análise o relato de experiência intitulado Quando a mulher continua sendo a outra na ginástica rítmica.7 7 Trabalho desenvolvido entre os meses de fevereiro e maio do ano de 2016. A GR foi escolhida como tema a partir das indicações do Projeto Político Pedagógico da escola, pelo fato de essa prática ainda não ter sido estudada pela turma em outro momento e por conta de um incômodo do professor ao se ver questionado por um grupo de alunas sobre as razões de as práticas corporais tematizadas anteriormente pertencerem, predominantemente, ao universo masculino. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/semef2016/visemef_arquivos/Textos%20completos/jorge_ginastica.pdf. Acesso em 05 nov. 2017. O documento narra a tematização da ginástica rítmica (GR) junto a uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal situada na capital paulista. Se conhecer não é da ordem da descoberta, do achado, tampouco da revelação, mas da produção, da invenção e do artefato, então conhecer a ginástica rítmica implicaria um processo que, ao invés de buscar desvendar o que ela é, procuraria escrutinar as condições em que ela acontece, as formas pelas quais ela se tornou o que se diz que ela seja, assim como as outras maneiras possíveis de dizê-la e fazê-la. Com isso, a indagação do ato de conhecimento se modifica. Já não se trata de inquirir pelo ser das coisas - neste caso, da ginástica rítmica -, mas pelo como, tendo em vista o seu caráter não necessário, arbitrário e contingente. E responder a esse como é adentrar o próprio jogo linguístico da sua feitura.

Na aula seguinte, fomos à quadra vivenciar a GR. Combinamos, inicialmente, que a vivência dos gestos seria de acordo com o que cada aluno e aluna achasse melhor. Apresentei, de maneira bem breve, os aparelhos: corda, maças, bola, arco e fita. Assim, trabalharam em duplas, trios, grandes grupos e individualmente. A escola dispunha dos equipamentos da GR (corda, arco e bola). A fita foi confeccionada por mim com fita de cetim e pequenos bastões que a escola adquiriu, e a maça foi substituída por pinos de boliche de plástico.

[...]

Visando à ressignificação dos saberes concernentes à GR, propus que a turma assistisse a um vídeo que contrapôs a ideia de que a GR seria uma prática exclusivamente feminina, conforme apontado pelo Comitê Olímpico Internacional. O vídeo mostrava uma GR praticada por homens com outros tipos de materiais. Minha intenção com essa atividade foi desestabilizar significações que reforçavam a GR como território exclusivamente feminino. Durante o vídeo, um aluno percebeu que os gestos daquela GR masculina lembravam gestos característicos das artes marciais. Então, discutimos sobre as gestualidades “impressas” nos corpos das pessoas, a partir do que a GR feminina é caracterizada por movimentos “leves, sincronizados e delicados”, e a GR masculina é caracterizada por movimentos “precisos, fortes e incisivos”. A problematização realizada girou em torno dessa diferenciação entre as marcas corporais impressas nos corpos (RELATO 1).

A ginástica rítmica, como referência do ato de conhecimento - ou, como sugere Ribeiro (2014RIBEIRO, C. R. “Práticas de pensamento” e o debate curricular: contribuições a partir de Foucault-Cortázar. Pro-Posições, v. 25, n. 1, p. 219-237, jan./abr.2014.), do ato de pensar - não deixará de se constituir como bem cultural e histórico que a instituição escolar logra para si a tarefa de levar adiante. A forma de se colocar e de se conduzir perante esse bem, no entanto, é de outro gênero. Deixa-se de ter, na ginástica rítmica, uma imagem necessária e obrigatória a ser fielmente replicada e passa-se a um movimento que se assemelha àquilo que Aquino expressou sob as ideias de desmonumentalização (AQUINO, 2014AQUINO, J. G. O pensamento como desordem: repercussões do legado foucaultiano. Pro-Posições, Campinas, v. 25, n. 2, p. 83-101, maio/ago. 2014.) e de arquivo do mundo (AQUINO, 2016AQUINO, J. G. Não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância. Childhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 179-200, jan./abr. 2016.). Desmonumentalizar a ginástica rítmica, essa parte do arquivo do mundo, seria, então, transitar em direção a ela de maneira instável, inquirindo-a incessantemente e, nesse mesmo passo, recriando-a, já que reproduzi-la, por mais que se tente, é algo irrealizável.

Antes de prosseguirmos, um alerta: admitir o ato de conhecimento como criação e a arbitrariedade da relação entre o conhecimento e as coisas não pressupõe negar ou desvalorizar o conjunto de saberes ao qual se conferiu, por convenção, a alcunha de legado cultural da humanidade. Tampouco implica conclamar a construção do conhecimento - que supostamente impeliria esse legado para escanteio - em oposição à sua transmissão, reativando um já desgastado embate no campo da pedagogia. Trata-se de nos situarmos num outro arcabouço epistemológico, que vê nesse legado não a verdade em si, mas um status de verdade alcançado por certas significações, que, exatamente por terem alçado essa condição, devem ser acessadas. Não como a representação exata do real, nem como mera estratégia de recognição, mas para que, com elas, sejam potencializadas experiências de pensamento singulares, imprevistas e, a rigor, inapreensíveis.

SEGUNDA PISTA: NÃO HÁ UM “VERDADEIRO” CURRÍCULO OU UMA “VERDADEIRA” EDUCAÇÃO FÍSICA

Sigamos o rastro da pista precedente. Assim como os nexos de saber-poder retiram do conhecimento o estatuto de verdade essencial-transcendente, realocando-o sob a condição de verdade contingente-imanente, também não haveria para a Educação Física, a partir de uma ótica foucaultiana, nenhum âmago metafísico que possamos procurar no anseio de revelar a sua “verdadeira identidade” ou aquilo que signifique, de uma vez por todas, o ensino desse componente na escola. É o que se pode divisar na narrativa Queremos aula livre e futebol, professor: o caratê na rede estadual de ensino,8 8 rabalho realizado no primeiro semestre do ano de 2016. A seleção da prática corporal a ser tematizada ancorou-se, fundamentalmente, na constatação de que havia um grande número de academias de luta nos entornos da comunidade e de que várias crianças eram ou tinham sido praticantes de caratê. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/semef2016/visemef_arquivos/Textos%20completos/luiz_alberto.pdf. Acessado em 05 nov. 2017. que relata uma experiência de tematização da luta com as turmas do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola localizada no município de Guarulhos (SP).

Os diálogos iniciais com as turmas foram difíceis, pois os muitos relatos das crianças mostravam que estavam acostumadas com outras concepções de ensino do componente. Muitos meninos iam para a aula com seus equipamentos e vestimentas de futebol (tênis, caneleira, meião, luva), muitas meninas afirmavam que não gostavam de “fazer” as aulas. Ao explicar o trabalho que seria realizado e como eu entendia a Educação Física, fui, muitas vezes, xingado pelas crianças, mas sempre tentávamos resolver cada reclamação e desavença que acontecia por meio do diálogo.

[...]

Ao analisar os registros, pude perceber que mesmo faltando aprofundar e ampliar alguns conteúdos que emergiram durante as atividades, ou não tendo atentado a outros que poderiam ser estudados, o projeto consistiu num interessante desafio ao propor um currículo diferente daquele a que as crianças estavam acostumadas. Algumas continuaram reclamando das aulas, mas até mesmo elas disseram que foram ouvidas e que fizeram “algo diferente” daquilo que haviam feito até então. Já outras compreenderam que há inúmeros aspectos envolvidos nas aulas de Educação Física, bem maiores do que o fazer pelo fazer, e isso estimula a dar continuidade com a perspectiva cultural (RELATO 2).

Currículos de Educação Física são espaços-tempos em que se dispõem e nos quais operam saberes, métodos, recursos didáticos, formas de avaliação, estratégias de organização e administração, rotinas, atividades, modelos de conduta, exercícios de autoridade, corpos, experiências. Esses diversos elementos se encadeiam numa complexa engrenagem de caráter discursivo e não discursivo, numa rede heterogênea que engloba o dito e o não dito, como sugeriu Foucault (2012FOUCAULT, M. Sobre a história da sexualidade. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal, 2012. p. 243-276.) ao conceituar o dispositivo. Enquanto dispositivo, um currículo de Educação Física se consubstancia e é posto em funcionamento por nexos de saber-poder que instituem regimes de verdade relativos ao papel dessa disciplina na escola, às práticas corporais que devem ser ensinadas, aos modos como deve ser levado a cabo esse ensino, aos efeitos almejados e àquilo que se espera que os alunos sejam e façam.

Mas se esses regimes de veridicção, que esteiam e são esteados por um currículo, não são peremptórios, dizer o que é ou deva ser a Educação Física escolar é um aceno que carreia e instaura uma vontade de verdade, situado no interior da disputa entre diferentes possibilidades de defini-la. Nessa disputa, travada em meio a circunstâncias sócio-históricas e políticas, os sentidos que a Educação Física e seu currículo vêm assumindo ao longo do tempo - psicomotor, desenvolvimentista, crítico, saúde renovada, cultural... - evidenciam um movimento em que novas definições são elaboradas como formas de explicar o currículo e a Educação Física de um modo particular, e como parte de uma narrativa mais ampla que abarca essas definições. Cada nova definição se posiciona em relação às anteriores, seja para combatê-las, reiterá-las ou recriá-las, e é forjada na interseção com outros fluxos discursivos produzidos numa dada conjuntura (LOPES; MACEDO, 2011LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.). Assim, qualquer esforço de validação de uma certa concepção de Educação Física e, por conseguinte, de um certo desenho curricular, nunca se encerrará, uma vez que ele se dá num território dinâmico de enunciação e de negociação de posições ambivalentes.

Outro alerta: ao subscrevermos a impossibilidade de oclusão das tentativas de significação da Educação Física, a artificialidade dos seus estatutos de verdade e o abandono a quaisquer formas de essencialismo nas suas formulações, não pretendemos insinuar um “vale tudo”, muito menos incorrer num suposto pluralismo de concepções que apaga as divergências existentes entre elas. Recorrendo a Lopes (2013LOPES, A. C. Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade & Culturas, n. 39, p. 7-23, 2013.), diríamos que se não é possível significar a Educação Física de uma vez por todas, se não há fundamentos substanciais e estáveis que nos permitam fixá-la como isso e não aquilo, ainda assim é preciso dedicarmo-nos a essa significação. E combatendo as acusações que comumente são direcionadas às posições que se situam no registro da teorização foucaultiana, o que intencionamos alegar é que a condição de provisoriedade, incompletude e contingência dos arranjos discursivos que conformam a Educação Física, ao contrário de sugerir um relativismo niilista, traz à tona o compromisso de que nos esforcemos para explicitar as razões ético-políticas dos lugares que assumimos. Uma tarefa certamente mais árdua quando se tem em vista o caráter precário, cindido e instável de tais razões.

TERCEIRA PISTA: O SUJEITO DESEJADO PELO CURRÍCULO É UMA APOSTA, NÃO UMA SENTENÇA

Na teorização curricular, o currículo tem sido entendido como um aparato regulatório que visa produzir determinados sujeitos. Como adverte Silva (2011SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2011.), nos currículos, o questionamento aparentemente central sobre o que ensinar é sempre acompanhado, ou precedido, por uma pretensão de sujeito. Em outros termos, um currículo sempre carrega a seguinte pergunta: qual é o sujeito desejado? É aí que se evidenciam os processos de subjetivação, principal efeito da imbricada relação entre as instâncias que se articulam no dispositivo (saber, poder, sujeito).

E se os processos de subjetivação envolvem não só a projeção de um sujeito desejado (subjetivação em sentido amplo), mas também o desejo de que os sujeitos, nas relações consigo mesmos, desejem para si as posições projetadas (subjetivação em sentido restrito), o que é algo sempre incerto, talvez devêssemos ampliar o foco dos questionamentos que usualmente têm sido feitos no âmbito do debate curricular da Educação Física, os quais, em sua maioria, incidem sobre os modos de ser intencionados pelos currículos e os pressupostos que esses modos invocam. Temos nos detido sobre o que querem, ou o que dizem querer, os diferentes currículos, e pouco temos nos preocupado com as suas ressonâncias. Ora em atitude de confronto, ora de anuência, o fato é que nossas discussões curriculares voltam-se, nomeadamente, para as posições de sujeito aventadas pelos dispositivos curriculares - sujeito atleta, sujeito saudável, sujeito ativo, sujeito autônomo, sujeito crítico, sujeito solidário, sujeito adequadamente desenvolvido, sujeito que afirma o direito à diferença... -, mas raramente interrogam as maneiras pelas quais os estudantes respondem aos apelos que lhes são feitos por esses dispositivos. São convencidos por eles? Escapam deles? Recusam-nos? Reelaboram-nos? Vejamos o seguinte fragmento do relato Brincadeiras de corrida, e aí, vamos dançar?,9 9 Trabalho realizado durante o ano de 2015, tendo como ponto de partida a tematização de brincadeiras de corrida, definidas a partir das respostas dos alunos a um questionamento inicial da professora sobre as brincadeiras que costumavam realizar. Posteriormente, os rumos conferidos ao processo pelos registros das crianças acabaram por desdobrá-lo ao estudo de algumas danças. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/semef2016/visemef_arquivos/Textos%20completos/aline_corridas.pdf. Acessado em: 05 nov. 2017. uma experiência de tematização da dança junto a uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal paulistana.

Para ampliar e aprofundar nossos conhecimentos, assistimos a um clipe de um rap indígena do grupo Brô MC’s7. Através de suas letras, o grupo relata histórias de luta e resistência dos indígenas Guaranis-Kaiowá, localizados em Mato Grosso do Sul.

‘Os indígenas são vistos como gente invisível, imperceptíveis aos olhos da sociedade. [...]. Vive em mim, a esperança de uma nova vida. Vive em mim, também por ti, irmão índio que ainda acredita, também por ti’ (Brô MCs).

Ao término do vídeo, alguns estudantes disseram que aquelas pessoas que apareciam no vídeo não eram indígenas. Naquele momento, elxs afirmavam que o indígena não cantava, pois apenas os seres humanos podiam cantar. Intrigada, questionei: se os indígenas não são seres humanos, o que elxs são? A aula encerrou e percebi a necessidade de retomar essa questão no encontro seguinte. Como atividade de problematização, eu elaborei um cartaz com diversas imagens de indígenas atuando na sociedade. Indígenas no espaço escolar atuando como professorx, cantando, tocando diversos instrumentos, utilizando equipamentos digitais como computadores, celulares e máquinas fotográficas, presentes no exército e ministrando palestras. Enfim, diversos espaços e ações que cotidianamente vimos na sociedade e não questionamos. Após a apresentação do cartaz e indagando xs estudantes sobre o que xs indígenas eram se não seres humanos, alguns posicionamentos dxs alunxs foram se alterando, entre eles: - Professora, ontem a gente não pensou antes de falar. - Preconceito é você não gostar da pessoa só porque ela é diferente. - Professora, o índio bebe coca-cola? Ele nada? Casa? Come chocolate? Vai para a escola? Usa computador? Por que ele usa pena na cabeça? - Ontem eu não disse nada, pra mim o índio é ser humano como a gente! - Mas ele é feio professora (risos). - Professora, o índio toma banho? (RELATO 3).

Quando compreendidos como modos de endereçamento postos em funcionamento por dispositivos curriculares, os desígnios formativos da Educação Física passam a ser vistos como tentativas de captura, de controle, de modelação de comportamentos, produzidas por meio de relações de poder/governo. Mas se para Foucault (1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. (Org.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.), poder/governo e liberdade/resistência são elementos que compõem um ao outro, se não há “[...] relações de poder sem pontos de insubmissão que, por definição, lhe escapam” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. (Org.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., p. 248), então as investidas dos currículos constituem-se como apostas, que, como tal, não são capazes de assegurar os sujeitos que delas resultarão. É por isso que o argumento de que um currículo forja identidades, formulado no quadrante da própria teorização pós-crítica e reiterado por alguns trabalhos no campo da Educação Física (NEIRA, 2007NEIRA, M. G. Valorização das identidades: a cultura corporal popular como conteúdo do currículo da Educação Física. Motriz, Rio Claro, v.13, n.3, pp.174-180, jul./set.2007.; MELLO et al., 2008MELLO, C. C. C. et al. O esporte na Educação Física escolar: possíveis influências na construção da identidade dos alunos e alternativas para a transformação. Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 147-162, jul./dez. 2008.; NUNES; RÚBIO, 2008NUNES, M. L. F.; RUBIO, K. O(s) currículo(s) da Educação Física e a constituição da identidade de seus sujeitos. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 2, pp.55-77, jul./dez., 2008.), mereceria ser reavaliado, porquanto as modelações identitárias decorrentes do corpo a corpo entre alunos e currículos (de Educação Física) são, em última instância, imprevisíveis.

Mais um alerta: a possibilidade, sempre aberta, de cisão do dispositivo curricular, de não cumprimento do seu script, de produção de consequências impensadas, não vincula o sentido restrito da subjetivação e as práticas de liberdade à figura de um sujeito centrado, pré-existente, dotado de consciência e razão capazes de torná-lo definitivamente emancipado de qualquer mecanismo de governo de suas condutas, nos moldes traçados pelas vertentes críticas da educação e pelas perspectivas curriculares da Educação Física influenciadas por essas vertentes. Dizer que as subjetividades são imprevistas não é enxergar essa imprevisibilidade como algo que haverá de ser produzido externamente a esquemas de saber-poder. Elas são imprevistas porque fletem esses esquemas, porque não são definitivamente capturadas por eles, porque os tensionam, os fraturam e, quiçá, passam a ocupar outros esquemas. Mas as teias de discursividade e poder são a condição para a construção de relações do si consigo. Fora delas, não há sujeitos.

QUARTA PISTA: UMA OUTRA MODALIDADE DE CRÍTICA

Pensar os currículos da Educação Física a partir de um olhar foucaultiano supõe, ainda, o exercício de uma atitude crítica. Uma crítica no sentido proposto por Foucault (2000FOUCAULT, M. O que é a crítica? Cadernos da FFC, Marília, v. 9, n. 1, p. 169-189, 2000.), que assume o imperativo das relações de poder, mas que é capaz de interrogá-las, desassujeitando-se do fluxo de uma política de verdade; que se pergunta “como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles” (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, M. O que é a crítica? Cadernos da FFC, Marília, v. 9, n. 1, p. 169-189, 2000., p. 3, grifo do autor), sem que isso signifique deixar de ser governado em absoluto.

No que concerne ao estudo das práticas corporais na escola, essa atitude crítica retoma a ideia de conhecimento como produção (e não como representação) do real, assim como leva em conta as relações de governo e os processos de subjetivação. E para esclarecer o que a suscitaria, valemo-nos de uma operação de ressignificação de um postulado dos currículos críticos, que convoca a escola e a Educação Física a promover uma leitura crítica da realidade.

No encalço das veredas abertas por Foucault, “ler a realidade” não mais denotaria o desvelamento das verdades que refletem essa realidade e que estariam encobertas, mas a compreensão dos processos que a produziram tal como ela se apresenta. Já não se trata de buscarmos desnudar quais seriam as narrativas verdadeiras ou falsas acerca das práticas corporais, mas de interrogarmos as formas pelas quais essas narrativas se tornaram verdadeiras/falsas, que efeitos elas produzem e de que modo estamos posicionados nesses jogos de veridicção. Adotemos, como exemplo, a generificação do futebol (sobretudo o brasileiro), um tema bastante recorrente nas aulas de Educação Física. Há uma diferença substancial entre uma atitude que analisa essa generificação pelo viés do verdadeiro x falso - ou do bem x mal - e uma outra que se pergunta pelo como o futebol tornou-se uma prática generificada.

No primeiro caso, a imagem discursiva que anuncia que “futebol é coisa de homem” seria uma imagem distorcida, que leva ao engano, a uma falsa compreensão sobre essa prática corporal. Uma atitude crítica, então, traduzir-se-ia pela capacidade de retirar do futebol a cortina que ofusca a sua verdadeira imagem, livrando-se também das amarras de poder que sustentariam essa cortina. Numa outra chave de compreensão, o que interessa é entender quais foram as condições que fizeram com que a vinculação entre os homens e o futebol funcionasse como verdade. Nessa chave, a imagem discursiva “futebol é coisa de homem” não é tida como falsa ou mentirosa; ela é tão verdadeira quanto outras que, porventura, profiram que “futebol é coisa de mulher” ou que “futebol é coisa tanto de mulher quanto de homem”, na medida em que nenhuma delas é o reflexo da essência supostamente pré-existente de uma realidade, mas todas se configuram como formas distintas de produzir aquilo que apreendemos como realidade. Observemos uma passagem do relato Quando o familiar se mostra estranho: um olhar diferente para o futebol,10 10 Trabalho concretizado no ano de 2013. A opção pelo estudo do futebol se deu após a professora constatar que essa era uma das práticas mais presentes na comunidade. Além disso, ela também levou em conta o fato de que, naquela turma, o esporte ainda não havia sido tematizado. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/teses/Dayane_Nyna_01.pdf. Acessado em: 05 nov. 2017. que documentou a tematização desse esporte com uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental, em uma escola estadual da cidade de São Paulo.

Para que a narrativa única sobre o futebol, alicerçada na crença de que esse esporte é uma prática do universo masculino, fosse problematizada, a professora selecionou três vídeos: o primeiro trazia uma reportagem exibida pela Rede Globo, na qual uma menina de quinze anos, que faz embaixadinha, visita o centro de treinamento do Grêmio porto-alegrense. Além de trazer uma figura feminina realizando movimentos próprios do futebol, a matéria a coloca numa condição de quem ensina os jogadores que revelam não dominar essa habilidade tanto quanto ela. O segundo mostrava mulheres realizando embaixadinhas, e o terceiro trazia os melhores momentos do jogo de futebol feminino Brasil x Estados Unidos, os quais destacam a figura da atleta Marta. A jogadora foi lembrada por uma aluna, que trouxe para o conhecimento dos colegas o programa de televisão intitulado “Menino de Ouro”, de que a futebolista participou. Nele, ensinou alguns movimentos para três meninos, tendo sido premiado com o troféu “Menino de ouro” aquele que apresentou melhor desempenho. A leitura dos vídeos provocou certo estranhamento com relação às habilidades reveladas pelas mulheres dos filmes. A professora, percebendo a surpresa, perguntou: as mulheres não sabem ou não conseguem jogar futebol? Por que as nossas meninas não desenvolveram habilidades semelhantes às das mulheres dos vídeos? Essas perguntas foram acompanhadas pelas provocações à turma: E ensinar, será que apenas os meninos sabem? Quanto tempo vocês acham que a jogadora que aparece no vídeo treina para conseguir esta performance? As respostas dos alunos revelaram que aquilo que parecia verdade sobre o futebol não se apresenta tão verdadeiro assim, seus modos de significar foram desestabilizados (RELATO 4).

Decerto que a disposição das relações de poder, na sua conexão com os regimes discursivos, faz com que a imagem do futebol como uma prática masculinizada prevaleça, provisoriamente, sobre outras. Mas isso não quer dizer que quando seu predomínio for posto em xeque e, por hipótese, revertido, nós nos defrontaremos com uma imagem verdadeira ou com a representação fidedigna do futebol, nem que essa reversão deixará de ser da ordem do poder. Aqui, ler criticamente a realidade, em vez de aludir a uma revelação da verdade das coisas condicionada pela supressão do poder, implica adentrar a arena das verdades em voga com um ato permanente de problematização, que não perde de vista os distintos modos pelos quais está imbricado, sempre, em relações de poder.

Logo, não se trata da oposição entre verdade e mentira (o futebol é isso e não aquilo), mas do jogo incessante entre verdades que se hibridizam e se reformulam ao quererem se validar. Irônica e tragicamente, talvez, é justamente o fato de que esse jogo não tem um ponto final ou um vencedor cabal (não haverá uma imagem definitiva das relações de gênero no futebol) que nos permite entrar nele para interpelar e tentar modificar aquelas verdades que julgamos que precisam ser alteradas (como a de que futebol é coisa de homem), com a premissa de que, em qualquer caso, estamos em face de uma vontade de verdade.

Já no que se refere à própria noção de currículo, agir criticamente em relação aos dispositivos curriculares da Educação Física sugere que os reconheçamos como instrumentos condutores de condutas e produtores de sujeitos e, ao mesmo tempo, que os encaremos como um problema perpétuo, incessantemente por se resolver, cujas soluções serão sempre incertas, transitórias, sem nenhuma garantia derradeira.

QUINTA PISTA: O CURRÍCULO (DA EDUCAÇÃO FÍSICA) COMO UMA POSSÍVEL HETEROTOPIA

O alento suscitado ao debate curricular pela estratégia filosófica de Foucault pode nos levar, enfim, ao seu conceito de heterotopia. Para Foucault (2001FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: MOTTA, M. B. (Org.). Ditos e Escritos III - Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 411-422.), utopias e heterotopias compartilham entre si a característica de se constituírem como espaços que contrapõem os posicionamentos de outros espaços com os quais se relacionam. Mas existe entre elas uma diferença fundamental: enquanto a contraposição das utopias anuncia um futuro ainda sem lugar, abstrato, as heterotopias são concretas, identificáveis, situadas no presente. Heterotopias dizem respeito a

[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis (FOUCAULT, 2001FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: MOTTA, M. B. (Org.). Ditos e Escritos III - Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 411-422., p. 415).

Ao nos reportarmos a esse conceito foucaultiano, sinalizamos a possibilidade de que as práticas curriculares da Educação Física sejam miradas como potenciais heterotopias. Essa não é, em si, uma proposição original, já que outros autores, como Gallo (2013GALLO, S. Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In: GRUPO TRANSVERSAL. (Org.). Educação menor: conceitos e experimentações. Curitiba: Prismas/Appris, 2013, p. 75-88.), já nos incentivaram a produzir heterotopias no espaço escolar. O que alvitramos é levar esse incentivo adiante, fomentando-o no interior dos contornos da Educação Física escolar.

Um currículo heterotópico é uma prática que contesta posicionamentos. É uma prática de resistência e liberdade intrínseca e não externa ao poder, que recusa o instituído, mas coexiste com ele e trava lutas dentro dele para, quem sabe, produzir outros possíveis espaços-tempos, erigidos no presente e encharcados na sua incerteza.

Num excerto do registro Dançando pelo Brasil,11 11 Experiência produzida em 2013, com base nas relações entre dança e diversidade cultural brasileira. Naquele ano letivo, o corpo docente da escola havia definido que essa dimensão da diversidade seria adotada como tema orientador do trabalho a ser realizado em todas as áreas de conhecimento. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/teses/relato_danca_jacque.pdf. Acessado em: 05 nov. 2017. que documenta a experiência de tematização das danças com as turmas do 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola estadual localizada na cidade de São Paulo, essa noção de heterotopia parece ser acionada.

A coordenação e direção da escola concordaram com o meu plano de ensino, mas para alguns professores tudo ficou pior quando apresentei que entre os ritmos que estudaríamos estava o funk. Por diversos motivos, o funk não é bem visto por alguns grupos sociais, porém, no meu entendimento, ele é um ritmo que representa muito a região sudeste, pois São Paulo e Rio de Janeiro são grandes produtores dessa manifestação da cultura corporal, além do ritmo ser reconhecido mundialmente como um ritmo brasileiro. O trabalho não focaria apenas no ritmo funk, mas nas possibilidades de se dançá-lo.

[...]

Como o de costume, fui me apresentar aos pais e falar um pouco sobre o trabalho que realizaríamos nas aulas de Educação Física durante aquele semestre. Ao terminar a minha apresentação, logo uma mãe levantou a mão e perguntou: “Não vai ter esse negócio de funk aqui na escola, não é professora?”. E eu respondi que o ritmo funk é uma forma de expressão de um grupo social, que merece ser abordado na escola sim, e ainda afirmei que existe um grupo que constrói essa manifestação da cultura corporal que ajuda a compor a diversidade cultural brasileira. Dessa forma, a inclusão das possibilidades de se dançar o funk acrescentaria aos nossos estudos a possibilidade de conhecimento da diversidade cultural brasileira. Como o objetivo do trabalho não era aprofundar o estudo sobre o funk, expliquei um pouco aos pais sobre as diferenças existentes dentro desse ritmo, e que o que nós estudaríamos naquele momento seria uma vertente chamada Funk Comedi, onde as letras das músicas são apenas brincadeiras e não trazem palavrões, apelo sexual ou referência ao tráfico ou uso de drogas. Ao final da reunião, algumas mães da mesma sala me procuraram para dizer que eu estava certa, pois o ritmo funk está em toda a parte da sociedade e não há como fingirmos que ele não existe. Acredito que a fala dessas mães legitimaram um pouco mais o meu trabalho, e me ajudaram a enfrentar as posições contrárias à presença desse ritmo, que vinham de dentro da própria escola (RELATO 5).

Heterotopias curriculares podem ser associadas àquela forma de proceder que, nos termos de Lopes (2013LOPES, A. C. Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade & Culturas, n. 39, p. 7-23, 2013.), opera hoje não para alcançar no futuro identificações concebidas antecipadamente, que assume uma postura ético-política para inventar um presente que produzirá efeitos de futuro, os quais, por mais que se queira, não podem ser previstos. Elas são um aceno para que questionemos aqueles impulsos tão caraterísticos do debate curricular na Educação Física, que anunciam projetos de currículo sempre melhores, mais corretos e mais necessários dos que os que aí estão, mas igualmente encerrados em suas investidas dogmáticas e, em última análise, idealizados em um não-lugar. Um currículo heterotópico faz apostas, não decreta sentenças.

Por fim, para tentar expressar a relação aqui esboçada entre currículo e heterotopias, vale a pena recorrer às palavras de Larrosa (2011LARROSA, J. Dar a palavra. Notas para uma dialógica da transmissão. In: LARROSA, J.; SKLIAR, C. (Org.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2011. p. 281-295., p. 289) sobre uma outra relação, a da educação com o talvez:

[...] a educação tem a ver com o talvez de uma vida que nunca poderemos possuir, com o talvez de um tempo no qual nunca poderemos permanecer, com o talvez de uma palavra que não compreenderemos, com o talvez de um pensamento que nunca poderemos pensar, com o talvez de um homem que não será um de nós. Mas que, ao mesmo tempo, para que sua possibilidade surja, talvez, do interior do impossível, precisam de nossa vida, de nosso tempo, de nossas palavras, de nossos pensamentos, de nossa humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Munidos com o referencial foucaultiano, buscamos problematizar a questão curricular no âmbito da Educação Física. Ao adentrarmos o debate que circunscreve essa questão, nossa principal ferramenta de análise foi o conceito de dispositivo e as relações entre saber, poder e sujeito - ou entre verdade, governo e subjetivação - que nele se desdobram. Localizar os currículos da Educação Física na moldura da noção de dispositivo nos leva a pensá-los como artefatos que são sustentados por determinadas verdades e sustentadores dessas verdades; estão inscritos em processos de condução de condutas; projetam modos de ser e agir, atuando na produção de sujeitos e subjetividades.

Com o currículo da Educação Física colocado em perspectiva, forjamos cinco pistas que, quiçá, podem ajudar a redimensionar as formas vigentes com que têm sido concebidas e encaminhadas as práticas curriculares do componente. A enumeração dessas pistas não remete a uma organização linear ou progressiva. São pistas que se intercomunicam e interconectam em diferentes direções, e essa conexão se manteria tomando-se qualquer uma delas como marco de saída.

Se entrecruzamos as pistas com fragmentos de experiências vivenciadas por professores que põem em ação o currículo cultural, não foi com o intuito de dizer que essas experiências correspondem a um modo exemplar de se ensinar Educação Física na escola, tampouco de sugerir o arquétipo de uma suposta e pretensa “pedagogia foucaultiana”. Afinal de contas, não nos parece possível, e é preciso que se deixe claro, arquitetar um caminho pedagógico aludindo a presumíveis recomendações de um pensador que se mostrou completamente avesso a fornecer respostas sobre como proceder. Porquanto em Foucault não há certezas acabadas, verdades permanentes ou princípios universais, seria no mínimo imprudente assumir uma atitude que pretende anunciar como se deve ensinar Educação Física na escola a partir de seu legado. Não é a isso, portanto, que se referem as pistas e o diálogo que tentamos travar entre elas e os excertos dos relatos docentes. Diligenciando-nos para escapar do risco de protagonizarmos mais um modo messiânico de endereçamento ao currículo da Educação Física (sem sabermos, porém, se fomos exitosos nessa tarefa), ensejamos, tão somente, promover o encontro entre elementos de caráter diverso, tensionando-os, a fim de que eles nos encorajem a duvidar de nossas convicções. Um gesto inquiridor, não prescritivo. Um ponto de partida que dá vazão a outras possibilidades de experimentação curricular, sem, contudo, prenunciar de antemão aonde se vai chegar.

As análises e formulações foucaultianas ancoram-se num exercício inquietante de suspeita sobre o próprio pensamento. Assim, elas nos servem de instrumento para produzirmos um questionamento intermitente em relação ao currículo da Educação Física, num movimento que o mantenha sempre aberto à criação de experiências novas, ímpares, contingentes e, enfim, imponderáveis. E talvez haja, nas narrativas dos professores aqui reportadas, traços desse ato recalcitrante, realizado por práticas curriculares que se esforçam para liberar-se das malhas discursivas que as enredam, ainda que seja para se ligarem a outras.

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  • VEIGA-NETO, A.; REICH, T. L. Esquecer Foucault? Campinas, Pro-Posições, v. 25, n. 2, p. 67-82, maio/ago. 2014.
  • VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. 2. ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  • 1
    Metáfora construída por Friedrich Nietzsche em O crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo, cuja primeira impressão em alemão data de 1888.
  • 2
    Sandra Corazza (2002)CORAZZA, S. M. Pesquisa-ensino: o “hífen” da ligação necessária na formação docente. Araucárias: Revista do Mestrado em Educação da FACIPAL, Palmas, PR, v. 1, n. 1, p. 7-16, 2002. cunhou o termo “artistagem”. Artistar é uma estética, uma ética e uma política a se inventar junto a uma educação que procura “[...] o não sabido, o não olhado, o não pensado, o não sentido, o não dito” (p. 14). A pesquisa, o trabalho do professor com seus orientandos e alunos, dá-se nas zonas fronteiriças, na penumbra da cultura, nas tocas mais estranhas da linguagem. Como em todo o desenvolvimento de uma arte, artistar a educação implica entregar-se ao caos para extrair dali matérias para criações. Trata-se de “arriscar-se, assumir o risco da morte, que é estar viva/o, sem se considerar um produto acabado” (p. 15).
  • 3
    Veiga-Neto (2016)VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. 3. ed.Belo Horizonte: Autêntica , 2016., valendo-se da proposta de Miguel Morey, prefere chamar esses domínios de ser-saber, ser-poder e ser-consigo.
  • 4
    Embora este texto não se detenha naquilo que a maioria dos especialistas designa como fases ou etapas do pensamento de Foucault - arqueologia, genealogia e ética -, convém ressaltar que o uso da noção de dispositivo coincide com a fase genealógica.
  • 5
    Os livros História da Sexualidade II: o uso dos prazeres (FOUCAULT, 2014cFOUCAULT. M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. São Paulo: Paz e Terra, 2014c.) e “História da Sexualidade III: o cuidado de si” (FOUCAULT, 2014dFOUCAULT. M. História da sexualidade III: o cuidado de si. São Paulo: Paz e Terra , 2014d.), publicados em 1984, bem como os registros dos cinco últimos cursos ministrados no Collège de France (FOUCAULT, 2010aFOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito: curso no Collège de France (1981-1982). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010a., 2010bFOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Martins Fontes, 2010b., 2011FOUCAULT, M. A coragem da verdade: curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Martins Fontes , 2011., 2014bFOUCAULT, M. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Marins Fontes, 2014b., 2016), na década de 1980: “Do governo dos vivos” (1979-1980), “Subjetividade e verdade” (1980-1981), “A hermenêutica do sujeito” (1981-1982), “O governo de si e dos outros” (1982-1983) e “A coragem da verdade” (1983-1984), também conhecido como “O governo de si e dos outros II”.
  • 6
    http://www.gpef.fe.usp.br
  • 7
    Trabalho desenvolvido entre os meses de fevereiro e maio do ano de 2016. A GR foi escolhida como tema a partir das indicações do Projeto Político Pedagógico da escola, pelo fato de essa prática ainda não ter sido estudada pela turma em outro momento e por conta de um incômodo do professor ao se ver questionado por um grupo de alunas sobre as razões de as práticas corporais tematizadas anteriormente pertencerem, predominantemente, ao universo masculino. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/semef2016/visemef_arquivos/Textos%20completos/jorge_ginastica.pdf. Acesso em 05 nov. 2017.
  • 8
    rabalho realizado no primeiro semestre do ano de 2016. A seleção da prática corporal a ser tematizada ancorou-se, fundamentalmente, na constatação de que havia um grande número de academias de luta nos entornos da comunidade e de que várias crianças eram ou tinham sido praticantes de caratê. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/semef2016/visemef_arquivos/Textos%20completos/luiz_alberto.pdf. Acessado em 05 nov. 2017.
  • 9
    Trabalho realizado durante o ano de 2015, tendo como ponto de partida a tematização de brincadeiras de corrida, definidas a partir das respostas dos alunos a um questionamento inicial da professora sobre as brincadeiras que costumavam realizar. Posteriormente, os rumos conferidos ao processo pelos registros das crianças acabaram por desdobrá-lo ao estudo de algumas danças. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/semef2016/visemef_arquivos/Textos%20completos/aline_corridas.pdf. Acessado em: 05 nov. 2017.
  • 10
    Trabalho concretizado no ano de 2013. A opção pelo estudo do futebol se deu após a professora constatar que essa era uma das práticas mais presentes na comunidade. Além disso, ela também levou em conta o fato de que, naquela turma, o esporte ainda não havia sido tematizado. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/teses/Dayane_Nyna_01.pdf. Acessado em: 05 nov. 2017.
  • 11
    Experiência produzida em 2013, com base nas relações entre dança e diversidade cultural brasileira. Naquele ano letivo, o corpo docente da escola havia definido que essa dimensão da diversidade seria adotada como tema orientador do trabalho a ser realizado em todas as áreas de conhecimento. Relato disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/teses/relato_danca_jacque.pdf. Acessado em: 05 nov. 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2018
  • Aceito
    01 Dez 2018
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