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QUALIDADE DA EDUCAÇÃO INFANTIL: AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA COM BASE NA DOCUMENTAÇÃO - ENTREVISTA REALIZADA COM TULLIA MUSATTI E MARIACRISTINA PICCHIO

QUALITY OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION: PARTICIPATORY EVALUATION BASED ON DOCUMENTATION - INTERVIEW CONDUCTED WITH TULLIA MUSATTI AND MARIACRISTINA PICCHIO

Nesta entrevista, Tullia Musatti e Mariacristina Picchio, pesquisadoras italianas do Consiglio Nazionale delle Ricerche (CNR), em Roma, dialogam, sobre suas pesquisas e ideias acerca da qualidade dos serviços educacionais para as crianças pequenas na Itália. Ter ido ao encontro de ambas foi uma oportunidade ímpar e um grande privilégio. Agradeço-lhes a recepção amistosa e generosa, ao longo de uma tarde no CNR. Agradeço também à Donatella Savio a mediação para que esse encontro tenha acontecido.

Desenvolvido desde fins dos anos 1990, o trabalho de Tulia Musatti e de Mariacristina Picchio no ISTC/CNR, voltado à pesquisa-ação em parceria com entidades públicas de oferta educativa para crianças e suas famílias, nos traz uma visão particular acerca da avaliação educacional. Desvela a articulação da avaliação com as dinâmicas institucionais cotidianas, com as práticas e experiências educativas de unidades de creche e pré-escola, como manifestação curricular, sobretudo na ambiência micro-estrutural e nas vinculações internas aos sistemas locais e regionais na Itália. A entrevista aqui apresentada não abrange as muitas ações de ambas as pesquisadoras, mas permite um contato mais íntimo com algumas de suas ideias e realizações na interface entre avaliação, qualidade e educação infantil.

Para conhecermos um pouco de Tullia e Mariacristina trago a seguir, na forma de breve currículo, um pouco da trajetória profissional de cada uma.

Tullia Musatti - T. M. - exerceu a Direção de Pesquisa no Istituto di Scienze e Tecnologie della Cognizione (ISTC) do Consiglio Nazionale delle Ricerche (CNR). Coordenou o grupo de pesquisa Desenvolvimento Humano e Sociedade, no qual continua desenvolvendo pesquisas sobre socialização de crianças a partir dos primeiros meses e sobre os processos de desenvolvimento e aprendizagem nos primeiros anos de vida. Entre seus principais temas de pesquisa estão: as interações entre coetâneos, as explorações dos objetos pelas crianças com menos de 3 anos, a brincadeira de faz-de-conta, a vida cotidiana dos bebês e de crianças bem pequenas nas creches e em família. Publicou inúmeros livros e artigos sobre desenvolvimento e educação da primeiríssima infância. Participou de diferentes grupos de trabalho e projetos em colaboração com administrações públicas italianas para a reorganização de serviços educacionais e sociais, assim como para a implementação de um sistema de avaliação participativa da qualidade desses serviços. Em fevereiro de 2013, Tullia Musatti participou de uma mesa-redonda intitulada “La valutazione della qualità nei servizi educativi per l’infanzia in Italia: esperienze e prospettiva”, no Seminario Internazionale “La qualità dei servizi educativi per l’infanzia in Italia e in Brasile: orientamenti politici ed esperienze di valutazione”, promovido pelas professoras Anna Bondioli e Donatella Savio (Università Degli Studi di Pavia) em parceria com as professoras Gizele de Souza e Catarina Moro (Universidade Federal do Paraná). Além disso, a pesquisadora tem publicações no Brasil, em português (GIANDOMENICO; PICCHIO, MUSATTI, 2018GIANDOMENICO, Isabella Di; PICCHIO, Mariacristina; MUSATTI, Tullia. Avaliando a qualidade dos serviços para a infância: uma abordagem participativa. Pro-Posições, Campinas, v. 29, n. 2, p. 117-136, Aug. 2018.; MUSATTI, 2003MUSATTI, Tullia. Programas educacionais para a pequena infância na Itália. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 24, p. 66-77, Dec. 2003.; MUSATTI, 1998MUSATTI, Tullia. Modalidades e problemas de processo de socialização entre crianças na creche. In: MANTOVANI, Susanna; BONDIOLI, Anna. Manual de Educação Infantil : de 0 a 3 anos uma abordagem reflexiva. Porto Alegre: Artmed, 1998. ; STAMBAK; RAYNA; MUSATTI, 2011STAMBAK, Mira; RAYNA, Sylvie; MUSATTI, Tullia et al. Os bebês entre eles: descobrir, brincar, inventar juntos. Campinas: Autores Associados, 2011.) dentre sua extensa produção científico-acadêmica.

Mariacristina Picchio - M. P. - pesquisadora junto ao ISTC-CNR e colaboradora no grupo de pesquisa Desenvolvimento Humano e Sociedade. Desenvolve pesquisas sobre: processos de socialização na primeira infância; avaliação da oferta educativa para as crianças pequenas; formação inicial e continuada dos educadores de creches; relações entre educadores e famílias, com atenção especial sobre famílias de imigrantes. Também contribuiu para a implementação de um sistema de avaliação participativa da qualidade dos serviços de educação infantil, baseado na documentação, e participou de diversos projetos de pesquisa-ação em parceria com municípios. Realiza e supervisiona atividades de formação profissional voltadas a educadores/professores e coordenadores pedagógicos de educação infantil em várias regiões e cidades italianas. Participa como coordenadora italiana da European Early Childhood Education Research Association (EECERA).

C. M. Gostaria que vocês nos contassem sobre a trajetória acadêmica em pesquisas e consultorias acerca de avaliação da qualidade em educação infantil.

T. M. (rindo) Como sou mais velha, estou nessa área há mais tempo. Começamos a falar sobre a qualidade no início dos anos 90. Aqui na Itália, participei de um grupo de profissinoais, junto ao Istituto Degli Innocenti, de Firenze, para escrever as primeiras definições de indicadores de qualidade. Ao mesmo tempo, eu também fazia parte de um grupo europeu. Participei de um seminário internacional a esse respeito e, em seguida, fiquei interessada, acima de tudo, acerca da qualidade em serviços integrados. E assim, me inseri em um grupo da região da Umbria, em Perugia, o qual estava envolvido na realização da avaliação de todos os serviços para crianças e adolescentes, que tinham sido criados e sustentados por uma lei que saiu em 1997, a lei 285 (ITÁLIA, 1997ITALIA. Legge 28 agosto 1997, n. 285, “Disposizioni per la promozione di diritti e di opportunità per l’infanzia e l’adolescenza”. 28 agosto 1997,). Lá nós fizemos um trabalho interessante e eu acompanhei os serviços para crianças pequenas. Depois também Mariacristina Picchio veio a integrar as atividades comigo, não apenas para trabalhar na forma de avaliar esses serviços, pensando não só o processo de avaliação, mas também toda a sistemática organizacional, quem deles participativa e como participava e fazia o seu trabalho e quais eram as finalidades. Por isso dizemos que buscávamos “colocar em pé” um sistema de avaliação no qual intervinham coordenadores e educadores, a nível regional. A Umbria é uma região pequena, poucas províncias e poucos habitantes, não muitos serviços, portanto, trabalhamos ao nível da região e não ao nível de distrito ou província. Assim, após desenvolvermos este sistema e seus instrumentos, fizemos um primeiro trabalho para o qual começamos a elaborar instrumentos de documentação que permitissem, dessem base, para uma avaliação participativa de qualidade. Então, nos envolvemos, em Roma com uma atividade semelhante, sempre em serviços integrados do município de Roma. E mais tarde, a partir de 2002-2003, o município de Roma finalmente começou a ocupar-se ativamente da educação infantil. Lá já tinha muitas creches, mas ainda havia longas filas de espera e com esse impulso também começaram a fazer conveniamentos. Com isso, também o atendimento às crianças de até 6 anos passou a estar nesse horizonte de trabalho.

M. P. ... estabeleceram a função do coordenador pedagógico, que não existia antes...

T. M. e, nessa altura, fomos convidadas a integrar uma comissão para estabelecer um sistema de avaliação, monitoramento e acompanhamento desses serviços e fizemos um trabalho por cinco/seis anos...

M. P. E agora, nos últimos seis anos, alguns dos procedimentos de documentação que temos utilizado também foram incluídos em um percurso de análise da qualidade da experiência oferecida às crianças em serviços educacionais, no âmbito de uma colaboração com a cidade de Pistoia, com a qual historicamente sempre houve um trabalho particularmente muito intenso. Neste caso, cabe sublinhar que este percurso, intentava mais precisamente a análise da qualidade da experiência, através de instrumentos e de documentação que de alguma forma se encontram no sistema de avaliação. Mais recentemente, o município de Parma nos pediu para acompanhá-los e ajudá-los a construir um sistema de avaliação da qualidade das creches, geridas diretamente pelo município (ao contrário de Roma, em que eram conveniadas) e para superar, por assim dizer, um modelo de avaliação que eles usaram, que, infelizmente, se espalhou em muitos contexto, com base no conceito de qualidade ISO 9000, que basicamente é concebido em um modelo de avaliação de outros tipos de serviços, tendo, inclusive, nascido como um sistema para, acima de tudo, avaliar empresas.

C. M. Este não é um modelo que se volta inclusive à certificação das creches e pré-escolas? Soube que em algumas realidades é utilizado em processos de credenciamento dos estabelecimentos de educação infantil.

M. P. Exatamente! O município de Parma, apesar de ter tentado fazer um trabalho para readequar tais procedimentos, tanto quanto possível, mesmo com um grande esforço e muito trabalho para tentar tornar razoáveis esses procedimentos ISO, entendeu que o resultado foi basicamente insignificante. Constituíram-se processos que não foram funcionais para apoiar um percurso de melhoria de qualidade, que deveria ser o principal objetivo de um processo de avaliação. Por isso, em seguida, nos pediram para ajudá-los a construir este sistema, e nos últimos seis anos, também temos trabalhado com o município de Parma.

C. M. Neste período em que vocês vêm trabalhando com a rede municipal de Parma, quais foram as mudanças nos procedimentos? Fez-se uso de algum instrumento de avaliação ou elaborou-se localmente algum instrumento?

M. P. Podemos dizer que uma característica da nossa abordagem tem sido sempre trabalhar para uma contextualização dos instrumentos de avaliação, tendo em mente, digamos assim, a arquitetura institucional do contexto para o qual nos mudamos, com o qual estamos trabalhando. Ou seja, como, em cada contexto, as responsabilidades são distribuídas em relação aos serviços educacionais, quais figuras estão envolvidas. Pois, a exemplo, em Roma havia diferentes figuras de coordenação que eram basicamente enquadradas da mesma forma, colocadas em níveis diferentes, precisamente porque Roma é uma grande cidade. Portanto, por um lado, era preciso contextualizar de fato, quero dizer, ter em mente o que é, o que existe, como intervir e como participar; por outro, esse contexto nos convoca a refletir quais os papéis implicados, como envolvê-los, e pensar os instrumentos ad hoc, considerando a perspectiva de cada ator. Ou seja, embora os aspectos a serem avaliados nos diferentes serviços fossem os mesmos, nós pensamos instrumentos diferentes, dependendo dos papéis. Pois, uma coisa é intervir com professores/educadores que, obviamente, estão diretamente envolvidos na relação com as crianças e suas famílias; outra é envolver um coordenador pedagógico que, digamos, tem uma perspectiva e um papel diferentes a respeito do trabalho. Por isso sempre tentamos construir instrumentos que levem em conta essa diversidade de papéis e sempre tentamos discuti-los com os profissionais, não simplesmente deixando-os nas suas mãos, dizendo para usá-los. Mas, fazendo de fato um trabalho de acompanhamento, para tentar ver se eles seriam de alguma forma instrumentos funcionais para suas atividades profissionais e para promover processos de melhoria.

C. M. Pela forma como se apresenta no seu relato, você diria que o percurso avaliativo também se constituía em percurso formativo para os participantes envolvidos?

M. P. Exatamente. Na intenção de definir os procedimentos utilizados, formação é uma das nossas palavras de ordem, bem como contextualização, no sentido de que possam ser sustentáveis para educadores e coordenadores, exequíveis. É um desafio e creio que temos obtido sucesso pelos retornos que temos tido. Sempre temos buscado fazer este trabalho de acompanhamento de e com todas as figuras; em situações nas quais, por exemplo, não foi possível realizar - sobretudo nos contextos mais amplos - um trabalho de acompanhamento dos educadores, o fizemos através dos coordenadores pedagógicos.

T. M. Certamente, tudo isso tem uma valência formativa, no entanto, não é que nós os formamos na nossa abordagem, nós buscamos, procuramos juntamente a eles, ver como se pode fazer. Quero dizer, essa questão da contextualização significa que, por exemplo, enquanto para o município de Parma, há um grupo de jovens coordenadores, recentemente ingressos na profissão, que têm creches em seus encargos, temos trabalhado duro com o grupo de gestores na sua relação com as equipes educacionais, que, por sua vez, têm utilizado a análise de documentação e instrumentos de avaliação. Por outro lado, em Roma, onde havia tantos coordenadores contratados nos serviços privados e tantos coordenadores da província, buscamos justamente trabalhar na relação entre o coordenador do município e o coordenador das instituições conveniadas, que, por sua vez, na sequência, ativava formas de documentação nos serviços com os educadores.

C. M. Em relação aos instrumentos que geralmente são propostos por vocês para serem utilizados nesse percurso de discussão da qualidade educativa, pode-se afirmar que têm um cariz mais narrativo, sem atribuição de uma pontuação acerca da qualidade observada e vivenciada na realidade objeto da análise?

M. P. Sim, absolutamente!

C. M. Sempre os diferentes instrumentos têm mais ou menos o mesmo...

M. P. Em outras palavras, a ideia é que podemos então chegar a exprimir um julgamento sintetizado sobre os diferentes aspectos da qualidade do serviço, mas isso deve ser o resultado de um percurso que se põe em movimento, em discussão e, por isso, se move. E também, numa lógica mais analítica, em que primeiro documentamos o percurso. Por assim dizer, levamos em conta também a dimensão do processo, pois, na realidade, muitos instrumentos de avaliação usados no passado, serviam, de alguma forma, para “tirar uma foto” e atestar um estado de qualidade de serviço em um determinado momento. A nossa intenção, também, é dizer, que antes de você vir a expressar um julgamento de qualidade, você deve levar em conta, digamos, que a qualidade tem uma dimensão processual intrínseca e, portanto, para expressar esse tipo de julgamento sobre a qualidade, deve considerar esse aspecto. É necessário fazer uma análise desse processo e como ele é feito, munindo-se de instrumentos de documentação, de documentação narrativa. Outro aspecto que distingue nossa abordagem de outras, que também criam e utilizam determinados instrumentos, especialmente aquelas que se baseiam no uso de pontuação, é a assunção de que existe um modelo de bom funcionamento do serviço, definido a priori, para o qual o processo de avaliação vem para atestar a correspondência ou não-correspondência em relação a um nível ótimo, definido pelo instrumento. A nossa ideia é que, mesmo quando consideramos algumas práticas consolidadas e consideradas boas práticas, na cultura dos serviços educativos italianos, devemos sempre questioná-las na relação dialética com os efeitos que produzem sobre as experiências das crianças e seus familiares na instituição. E por isso, reafirmamos que se trata sobretudo de documentar. A partir da documentação da experiência que crianças e seus familiares têm na instituição. E, também documentar o que os adultos, os educadores fazem, em relação aos efeitos que produzem. É nessa articulação, segundo nosso entendimento, que se pode então expressar um julgamento de qualidade.

C. M. Na abordagem de avaliação proposta e desenvolvida por vocês, seria adequado supor que os educadores, professores envolvidos, fazem o papel de um avaliador interno e há também a figura de um avaliador externo, uma pessoa que não é da instituição, mas que expressa sua opinião e faz, também, um julgamento?

T. M. Sim, achamos isso. Entretanto, a questão, o desafio, é estabelecer uma dialética entre figuras diferentes. Uma avaliação externa serve e não serve. Cabe nos perguntarmos, um julgamento muito externo se embasaria em quê? Tal julgamento sobre uma criança ou sobre como um serviço está organizado seria pronunciado em correspondência a um modelo que se tem em mente. Seria legítimo fazê-lo. Mas, em nossa opinião isso seria pouco interessante. Ao invés disso, o interessante é ver que dialética se pode colocar em funcionamento entre diferentes pessoas que têm papéis diferentes. Assim, interessa, por exemplo, não apenas saber do grupo pelo seu coordenador; o importante é que haja um confronto a mais vozes. No caso de Parma, houve um confronto a partir da intervenção de vários coordenadores, horizontalmente, porque o grupo de coordenação é um, mas cada coordenador lida com diferentes instituições, cada um é responsável por um certo número de instituições.

C. M. Como seria essa dinâmica de trabalho para que as diferentes vozes dos participantes e interlocutores, no e do processo avaliativo, se revelassem?

T. M. Então, o bom seria você poder colocar em prática uma comparação e uma análise de documentação cruzada. Já existe um olhar externo, mas é muito importante o olhar consciente interno, através de uma documentação inteligente. Ou seja, mais do que uma dialética entre dentro e fora, interessa ativar uma dialética intersubjetiva em todos os níveis; para isso é importante que a documentação, em cada instituição, seja sempre elaborada em um confronto intersubjetivo. Por isso mesmo o “diário semanal” nunca deve ser o resultado da observação de uma educadora, deve ser o fruto de uma discusão, elaborado e redigido em conjunto.

C. M. A avaliação da criança acontece nesse sentido? O modo como o trabalho se desenvolve e como se produz a documentação, prevê falar, registrar sobre cada criança no “portfólio” ou em outro tipo de documentação feita no entrelaçamento com a avaliação do contexto?

T. M. Não exatamente. Enfrentamos, anos atrás, com a rede municipal de Pistóia, o fato de fazer uma documentação em portfólio, dentro de uma iniciativa mais de investigação do que de intervenção, que não foi sustentável. Assim, o que nós pensamos, mas não abordamos como um procedimento específico, é que seria necessário haver uma avaliação periódica de cada criança. Mas, o primeiro passo seria buscar entender como é a experiência de todo o grupo de crianças e, por consequência, de cada criança dentro do grupo. Qual é a qualidade dessa experiência? A expressão “avaliação de contexto” eu não gosto tanto. A gente não pensa apenas no contexto que está ao redor, nós também pensamos sobre o que as crianças fazem, o que recebem e, portanto, todas e cada criança. Com a equipe de coordenação de Parma também desenvolvemos documentação específica a respeito de como a criança vive sua vida diariamente nas unidades de creche, buscando o ponto de vista profissional, das educadoras, sobre o dia a dia da criança.

M. P. Essa abordagem busca “olhar para todas as crianças”, tanto quanto a cultura dos nossos serviços educacionais defende. Diferente de outras situações externas ao nosso país, que propõem avaliar as crianças com relação aos estágios de desenvolvimento, ou aos desempenhos que as crianças, ao final de um dado período de atendimento, demonstrem. Dessemelhante disso, avaliamos a experiência da criança, sim. O que ela faz na instituição, levando em consideração todos os aspectos e implicações que afetam todas as crianças. E isso é algo que dizemos que une um pouco, não é nossa abordagem exclusivamente, caracteriza-se como de toda a nossa cultura (italiana) dos serviços de educação e cuidados às crianças pequenas. É um elemento, um pilar, de qualquer sistema de avaliação de serviços educacionais e, isso é muito importante.

C. M. Acima de tudo, penso que, quando falamos sobre a experiência educativa como “foco” do processo avaliativo, temos um entrelaçamento com o currículo. Como vocês vêm essa relação com o currículo, não no sentido de conteúdo, mas como prática educativa cotidiana com as crianças em creche?

T. M. Realmente, estão entrelaçados. Porque ao compor uma documentação acerca do que a criança faz, há toda uma documentação sobre a cotidianeidade da criança, as oportunidades de conhecer e as dinâmicas da socialização...

M. P. ... modalidades de participação nos diferentes momentos do cotidiano.

T. M. ... e isso dizemos que é a parte do currículo. Escrevemos um texto, no qual contamos com a participação de Donatella Giovannini (pedagoga de Pistoia), que se baseia na reflexão sobre as primeiras experiências de alguns anos atrás com o “diário semanal”, pois precisamente através de uma leitura do diário os próprios educadores desenvolvem um currículo, que não é um currículo a priori sobre o programa, mas um currículo que se encaixa na vida cotidiana (PICCHIO; GIOVANNINI; MAYER; MUSATTI, 2012PICCHIO, Mariacristina; GIOVANNINI, Donatella; MAYER, Susanna; MUSATTI, Tullia. Documentation and analysis of children’s experience: an ongoing collegial activity for early childhood professionals. Early Years: An International Journal of Research and Development. Feb. 2012. ).

M. P. É o que se define como “currículo emergente”, creio eu. Ou seja, sobretudo numa perspectiva na qual as propostas, entendidas não apenas no sentido estrito como a atividade que o adulto oferece diretamente à criança; mas, proposta em um sentido mais amplo do termo. Ajustada, de tempos em tempos, de acordo com, como as crianças daquele ano letivo em específico, de determinado grupo, com suas características e com seus modos de interagir com o contexto, com seus interesses emergentes, a partir dos quais construímos o currículo. Por isso, não é definido a priori, deve ser contextualizado em relação às características do grupo que você recebe a cada ano.

C. M. Há alguma especificidade na documentação proposta por vocês que a singulariza e diferencia de outro modos de se compor uma documentação pedagógica?

M. P. Essa pergunta é fundamental, pois a documentação que propomos é um pouco diferente do que comumente se encontra na Itália. Quando se fala sobre a documentação, geralmente se pensa na documentação pedagógica de Reggio Emilia. Pensamos e propomos uma documentação que tem alguns aspectos em comum com a ideia subjacente à documentação pedagógica de Reggio Emilia, mas que é diferente, ao mesmo tempo. Porque o que propomos não é documentar experiências feitas por um grupo de crianças ou pelas crianças individualmente, o que entendemos como experiências circunscritas, embora a documentação pedagógica reggioemiliana seja sempre feita com continuidade. Nossa ideia é que essa documentação de tipo narrativo seja construída pela equipe educativa que documenta a cotidianidade da experiência.

C. M. E o instrumento é o diário?

M. P. Sim, mas não é o único.

T. M. Por exemplo, por vários anos, em Pistoia, estamos fazendo uma coisa muito bonita, não porque somos nós que fazemos, mas muito bonita porque são eles que fazem. E nós gostamos muito de participar desse trabalho. É uma reflexão, seguindo as vertentes temáticas, isto é, cada vez nos concentramos em um aspecto ou outro, nos diferentes grupos das creches e depois trocamos a reflexão cruzada com base no “diário semanal”, acrescida de uma coleção de fotos que as educadoras fazem para enriquecer os registros, e então constroem as reflexões das documentações narrativas e surgem coisas maravilhosas.

C. M. Eu imagino... porque algumas coisas não são percebidas contemporaneamente, ao mesmo tempo em que elas estão acontecendo...

M. P. Sim, você tendo a oportunidade de ter um tempo, de rever, de olhar de novo, de refletir a respeito.

T. M. ... se distanciando ainda mais da ideia de currículo tradicional. Nessa abordagem as educadoras revelam reflexões sistemáticas que as crianças levam adiante, apoiadas pelas educadoras, em relação aos fenômenos físicos, o gelo, a água que vira gelo, as medidas, a natureza, a luz e a escuridão, o vento, que são coisas muito bonitas.

M. P. E que não surgem de propostas definidas a priori pelos professores, pelos educadores, mas justamente a partir da observação das crianças.

C. M. Acaba sendo um modo de cultivar a atenção ao que as crianças desvelam, que acaba por também desvelar na professora uma sensibilização, uma sensibilidade que vem ao encontro dessa possibilidade...

T. M. Sim, pois a intenção é ativar uma reflexividade da parte dos educadores que se torna uma capacidade de refletir observando no imediato; e de fato despontam muitas coisas belas.

M. P. Talvez não tenhamos demarcado este aspecto da observação, mas na base de todos os nossos procedimentos de documentação existe precisamente a ideia sobre a importância de assumirmos, digamos assim, uma postura observadora.

T. M. Um dos instrumentos chave que propomos, é um instrumento projetado para um observador interno-externo, como uma coordenadora pedagógica, mas que também pode ser usado entre educadores que têm responsabilidades por diferentes grupos de crianças é o “relatório de observação”, que implica, de parte desse observador, um longo momento de observação focalizada, tendo em mente uma grade de questões, para depois redigir uma narração analítica por pontos.

M. P. Não se trata de uma crônica do que foi observado.

T. M. Não é facilmente realizável e é de difícil sustentação, porque compromete um dia de observação e, logo depois, meio dia para sua interpretação. Portanto, não é tão sustentável, nesse sentido. Porém, sempre que o fazem e principalmente quando o fazem conjuntamente - o coordenador de uma instituição junto com um coordenador de outra instituição - se mostram sempre entusiasmados, porque dizem que assumem um ponto de vista, precisamente, sobre a realidade cotidiana da criança, que é diferente daquilo que estão acostumados a olhar, em geral mais relacionado à dinâmica, às escolhas e estratégias organizacionais, ou momentos isolados quando há algum problema.

C. M. Será que esses profissionais reconhecem, identificam que estão em uma ação que os torna pesquisadores? Isso faz sentido para vocês?

T. M. Sim, eles estão cientes disto.

M. P. Depois viram, inclusive, que este instrumento se mostrou adequado para outras fnalidades. Na pesquisa sobre crianças... Fizemos junto com a Universidade Milano-Bicocca, com o grupo de Susanna Mantovani, Chiara Bove, Piera Braga, dividimos o país em grupo, porque senão seria muito caro e visitamos 40 instituições fazendo isso (MUSATTI, 2015MUSATTI, Tullia. Il progetto Insieme: perché una ricerca sui Centri per bambini e famiglie? Rivista Italiana di Educazione Familiare, n. 2 - 2015, pp. 13-32, 2015.).

C. M. Conversamos sobre aspectos bastante interessantes do trabalho que realizam e acerca de suas ideias, certamente precisaríamos de outras tardes para falar sobre muitos outros. Contudo, para irmos finalizando, perguntaria se há algo mais que gostariam de dizer sobre sua abordagem de avaliação que por ventura não tenhamos mencionado?

T. M. Se você (M. P.) quiser falar sobre a qualidade percebida pelos pais...

M. P. Sim, é um aspecto sobre o qual não falamos. Pensamos que há diferentes maneiras de envolver os pais, e isto é algo muito, definitivamente, importante. Pensamos que há tantas maneiras de solicitar uma reflexão por parte dos pais... É fundamental que a gente envolva os pais para fazer julgamentos sobre as coisas para as quais tenham competência. Eles, por exemplo, sabem se o filho deles está ou não está bem, mas não sabem se o espaço é bem ou mal organizado; podem nos dizer se é acolhedor para eles, mas não que o “canto da cozinha” deveria ficar ali ou lá. Eles devem dizer coisas a partir do seu papel de pais.

T. M. Inclusive reconhecendo que eles não estão envolvidos apenas como usuários do ponto de vista da criança. Mas, também diretamente, por isso podemos perguntar sobre como eles se sentem em relação à instituição, se sentiram-se bem-vindos, se sentem-se acolhidos, se temos nos comunicado bem com eles, entre outras questões. Esse momento de avaliação por parte dos pais se torna um elemento importante na avaliação global e do percurso educativo da instituição. De outro lado, também cultiva uma reflexividade nos pais sobre a qualidade do serviço, e ainda se torna uma oportunidade para reprojetar, para enfrentar de maneira nova a relação com os pais. Assim, em minha opinião, há muitas funções na avaliação da qualidade e esta tem muitas facetas. Em cada processo singular é necessário encontrar novamente no interior do percurso, sua sustentabilidade, factibilidade, porque senão, ao fazer coisas insustentáveis, você as faz apenas uma vez e, depois não as faz mais.

C. M. Quero agradecer-lhes pela disponibilidade em conceder parte do tempo de vocês para socializar seu trabalho.

REFERÊNCIAS

  • GIANDOMENICO, Isabella Di; PICCHIO, Mariacristina; MUSATTI, Tullia. Avaliando a qualidade dos serviços para a infância: uma abordagem participativa. Pro-Posições, Campinas, v. 29, n. 2, p. 117-136, Aug. 2018.
  • ITALIA. Legge 28 agosto 1997, n. 285, “Disposizioni per la promozione di diritti e di opportunità per l’infanzia e l’adolescenza”. 28 agosto 1997,
  • MUSATTI, Tullia. Il progetto Insieme: perché una ricerca sui Centri per bambini e famiglie? Rivista Italiana di Educazione Familiare, n. 2 - 2015, pp. 13-32, 2015.
  • MUSATTI, Tullia. Programas educacionais para a pequena infância na Itália. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 24, p. 66-77, Dec. 2003.
  • MUSATTI, Tullia. Modalidades e problemas de processo de socialização entre crianças na creche. In: MANTOVANI, Susanna; BONDIOLI, Anna. Manual de Educação Infantil : de 0 a 3 anos uma abordagem reflexiva. Porto Alegre: Artmed, 1998.
  • PICCHIO, Mariacristina; GIOVANNINI, Donatella; MAYER, Susanna; MUSATTI, Tullia. Documentation and analysis of children’s experience: an ongoing collegial activity for early childhood professionals. Early Years: An International Journal of Research and Development. Feb. 2012.
  • STAMBAK, Mira; RAYNA, Sylvie; MUSATTI, Tullia et al. Os bebês entre eles: descobrir, brincar, inventar juntos. Campinas: Autores Associados, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2018
  • Aceito
    04 Nov 2018
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