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APRESENTAÇÃO - DOSSIÊ EDUCAÇÃO, SAÚDE, RECREAÇÃO: PROCESSOS HISTÓRICOS

PRESENTATION - EDUCATION, HEALTH AND RECREATION: HISTORICAL PROCESSES

Parece indiscutível, atualmente, o fato de que o corpo se tornou um objeto de estudo que extrapola os domínios das tradicionais ciências biológicas. Se ainda no século XVI elas foram responsáveis por sua transformação em algo passível de ser estudado (Sant’Anna, 1993SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpo e História. Cadernos de Subjetividade, v.1, n.1, 1993, p. 243-266.; Silva, 1999SILVA, Ana Márcia. O corpo do mundo: reflexões acerca da expectativa de corpo na Modernidade. Tese [doutorado] - Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1999.; Soares e Terra, 2007SOARES, Carmen Lúcia; TERRA, Vinícius Demarchi Silva. Lições de anatomia: geografias do olhar. In. SOARES, Carmen Lúcia. Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação. Campinas: Autores Associados, 2007.; Terra, 2007TERRA, Vinícius Demarchi Silva. Memórias anatômicas. Tese &$91;Doutorado] - Faculdade de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2007.), hoje o corpo constitui a centralidade de numerosas pesquisas nas áreas de ciências humanas e sociais. Segundo Denise Sant’Anna (1993)SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpo e História. Cadernos de Subjetividade, v.1, n.1, 1993, p. 243-266., se hoje os estudos sobre o corpo são algo frequente nessas áreas, e em especial na história, é porque as pesquisas e proposições de autores como os pertencentes à terceira geração dos Annales, de Michel Foucault ou mesmo de Norbert Elias contribuíram para a compreensão de que nossos gestos, gostos, tolerâncias sensibilidades não são dados pela natureza, mas produtos de processos históricos que incidem diretamente sobre o corpo. Afinal, como afirma Carmen Soares (2001SOARES, Carmen Lúcia. Corpo, conhecimento e educação: notas esparsas. In. SOARES, Carmen Lúcia. Corpo e história. Campinas: Autores Associados, 2001., p.110),

os corpos são educados por toda realidade que os circunda, por todas as coisas com as quais convivem, pelas relações que se estabelecem em espaços definidos e delimitados por atos de conhecimento. Uma educação que se mostra como face polissêmica e se processa de um modo singular: dá-se não só por palavras, mas por olhares, gestos, coisas, pelo lugar onde vivem.

Neste sentido, podemos dizer que o corpo é um objeto de intervenção. Ora interpelado diretamente pela ciência, ora pela pedagogia, e ora por esforços conjuntos dessas duas esferas, o corpo tornou-se o objeto de práticas cujo principal objetivo era educá-lo, e, assim, transmitir-lhes “valores e normas, difundindo significados e sentidos que implicam a elaboração de comportamentos e atitudes aceitos socialmente” (Soares, 2014SOARES, Carmen Lúcia. Educação do corpo. In. GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Dicionário Crítico de Educação Física. Ijuí: Unijuí, 2014, p. 219-225., p.220). Neste processo, diferentes formas de intervenção foram estabelecidas tendo em vista diferentes finalidades, que transitam desde a manutenção dos níveis de saúde da população ao controle e à criação de divertimentos considerados “adequados” a jovens e adultos.

Este dossiê reúne um conjunto de pesquisas históricas cujo objeto central de investigação é o corpo e suas relações com a educação, a saúde e a recreação. Os artigos analisam as diversas formas de intervenção pedagógica, criadas ao longo dos séculos XIX e XX em diferentes sociedades, para se educar o corpo, seja no âmbito educativo formal ou fora dele. Os artigos, produzidos por docentes de Alemanha, Brasil, França, Suécia e Uruguai analisam como distintas práticas corporais, tais como a ginástica, jogos ao ar livre e esporte, foram utilizadas com finalidades de educação, saúde e recreação em diferentes contextos, seja a partir de ações governamentais que compreendiam estas práticas como meios educativos, de promoção de saúde ou de divertimentos regrados, ou a partir de ações de determinados indivíduos que se dedicaram à disseminação dessas práticas em outros países.

O Prof. Dr. André Dalben toma como objeto de suas análises a Escola de Aplicação ao Ar Livre que funcionou na cidade de São Paulo durante a década de 1940 e primeira metade dos anos 1950. A partir da análise de documentos oficiais e de fontes periodísticas, nos mostra como essa escola, idealizada pelo médico Edmundo Carvalho, se apropriou de distintos saberes médico-pedagógicos em circulação em âmbito nacional e internacional nesse período para se constituir em um importante cenário de inovação pedagógica na capital paulista, aliando práticas educativas a práticas de cura junto aos elementos da natureza. Dalben nos acerca da rede de sociabilidades de Edmundo Carvalho e do processo de constituição do movimento de Escolas ao Ar Livre no cenário internacional do início do século XX, que serviram como importantes antecedentes para fundamentar a proposta educativa da Escola de Aplicação ao Ar Livre de São Paulo, que se tornou um modelo de educação ao ar livre em São Paulo, servindo como campo de estágio para estudantes da Escola Normal e da Escola de Educação Física.

As práticas educativas em meio à natureza são também elemento central dos artigos da Profª. Drª. Carolina Nascimento Jubé e do Prof. Dr. Pierre Philllipe-Meden. Ambos pesquisadores analisam as influências da obra de Georges Hébert sobre as proposições de treinamento corporal e educação física voltadas para mulheres. Phillipe-Meden toma como objeto de sua pesquisa a “Palestra”, um centro de treinamento para mulheres, em Deauville (França). A partir de uma análise dos arquivos da Palestra e de publicações a seu respeito que circularam em revistas especializadas francesas do período, este autor demonstra como este espaço se transformou num importante centro de desenvolvimento das propostas naturistas de Hébert, especialmente relacionadas à educação física feminina, entre os anos de 1919 e 1925. Em seu artigo, Phillipe-Meden traz uma importante contribuição à compreensão do hebertismo ao colocar em evidência o trabalho de Yvonne Hébert como diretora dessa instituição que era definida como um “colégio de exercícios para mulheres e crianças”. Ao centrar-se no cotidiano da Palestra e nos trabalhos de Yvonne Hébert em sua direção, o autor nos proporciona uma compreensão mais aprofundada dos preceitos do Método Natural de ginástica a respeito da educação física feminina e nos instiga sobre a necessidade de pensar a ginástica natural centrando-se não mais com tanta força na figura de Georges Hébert, mas olhando para as “mulheres hebertistas” e às formas como elas compreenderam, trabalharam e repensaram este método de ginástica.

Jubé, por outro lado, se centra na análise da recepção da obra Muscle et beauté plastique, publicada por Hébert em 1909, tomando como principais objetos de análise dois manuais sobre ginástica feminina produzidos no Brasil nos anos 1930 e que claramente tomam as ideias do autor francês como fundamento para suas proposições, ainda que selecionando e limitando parte de proposta de Hébert segundo o que consideravam adequado à realidade brasileira. A autora parte de uma aprofundada análise das proposições de Georges Hébert acerca da educação do corpo feminino para, então, mostrar-nos como suas ideias foram apropriadas por autores brasileiros que do início do século XX que propuseram métodos nacionais de educação física para mulheres, como Rangel Sobrinho e Lotte Kretzschmar. Ao debruçar-se sobre essas obras brasileiras, observa que os autores se apropriaram das proposições de Hébert de maneira bastante seletiva, tomando dos escritos hebertistas apenas aqueles fundamentos que coincidiam com as virtudes físicas e morais consideradas “adequadas” para as mulheres brasileiras do início do século XX.

O método ginástico sueco e sua disseminação na América do Sul também constituem o problema central dos artigos escritos pela Profª. Drª. Andrea Moreno em colaboração com o Prof. Dr. Anderson da Cunha Baía e pela Profª. Drª. Patrícia Lorenzoni. Moreno e Baía concentram seus esforços na análise do Instituto Central de Ginástica de Estocolmo como espaço central de formação de indivíduos aptos a ensinar e divulgar a ginástica sueca, recebendo e enviando missões de estudiosos a diferentes países, como o Brasil. Os autores analisam as estratégias de divulgação da ginástica sueca e evidenciam o trabalho de Fritjof Detthow, professor formado pelo Instituto e que, ao chegar a São Paulo no início do século XX, atuou intensamente na divulgação da ginástica lingiana envolvendo-se com a organização de conferências e cursos para professores paulistas, com a produção de artigos de divulgação sobre a ginástica sueca em revistas especializadas e jornais, bem como atuando em instituição como a Escola Normal Caetano de Campos, apontando para a importante rede de sociabilidades que Detthow foi capaz de estabelecer na sociedade paulista.

Patrícia Lorenzoni também analisa a presença da ginástica sueca em terras brasileiras, concentrando-se nos entrecruzamentos entre um projeto de nação positivista brasileiro dos inícios do século XX e o indigenismo. A partir de uma coleção de fotografias que mostram crianças indígenas praticando a “ginástica sueca”, identificada no acervo do Museu do Índio (Rio de Janeiro), a pesquisadora analisa como a ginástica lingiana reverbera no projeto positivista de construção da nação brasileira entre os anos de 1900 e 1920. Colocando em cena aspectos como masculinidade, colonialismo e a então aspiração do governo brasileiro à obtenção de uma integração nacional, Lorenzoni mostra como os postulados da ginástica sueca reverberaram nos intentos do governo brasileiro de “nacionalizar” suas populações indígenas.

Por fim, também a ginástica alemã é tomada como elemento de análise pelo Prof. Dr. Michael Krüger e Dr. Lothar Wieser e pela Profª. Drª. Evelise Amgarten Quitzau. Krüger e Wieser analisam o processo de constituição da ginástica na Alemanha do século XIX e o processo de transferência cultural desta prática no contexto brasileiro, a partir da análise das sociedades ginásticas teuto-brasileiras, construindo um panorama sobre seu desenvolvimento e uma breve análise sobre a recuperação dessas sociedades no período pós-Segunda Guerra. A partir de documentos originais dos clubes analisados, compilados em arquivos alemães e brasileiros, os autores identificam personagens e marcos importantes no desenvolvimento das sociedades ginásticas teuto-brasileiras, seus vínculos com organizações ginástico-desportivas alemãs e as contribuições que os indivíduos pertencentes a este grupo de imigrantes tiveram no desenvolvimento da cultura física nos locais em que se estabeleceram.

Quitzau, por sua vez, também toma as sociedades de ginástica teuto-brasileiras como objeto de estudos, entretanto, centra suas análises nas discussões específicas sobre ginástica e esporte como elementos de educação da juventude e de manutenção da identidade teuto-brasileira, limitando-se ao período anterior à Segunda Guerra. A partir dos documentos produzidos por estas associações, a autora demonstra como o processo de inserção das práticas esportivas no âmbito das sociedades ginásticas teuto-brasileira transita de uma desconfiança inicial a uma ampla aceitação nos anos 1930, em um movimento bastante similar ao que ocorreu nas sociedades ginásticas da Alemanha. No Brasil, este processo de assimilação do esporte entre os teuto-brasileiros veio acompanhada de discussões a respeito de sua adequação, especialmente desde um ponto de vista educativa, que se vinculava também ao fato de ser um produto originariamente não-alemão. Neste sentido, Quitzau demonstra que, ainda que tenha sido amplamente aceitado e difundido, o esporte manteve-se apenas como um “complemento” ao Turnen, este sim uma prática adequada aos objetivos destas instituições de educação física e moral de seus associados, vinculada à manutenção da noção de germanidade.

Ao trabalharem a partir de diferentes perspectivas teóricas e constituírem corpus documentais bastante variados, os artigos reunidos nesse dossiê representam, portanto, um conjunto de pesquisas historiográficas sobre a educação, a saúde e a recreação que contribuem para fomentar o debate a respeito das intervenções pedagógicas sobre o corpo, bem como para o desenvolvimento e aprofundamento de diálogos acadêmicos internacionais.

REFERÊNCIAS

  • SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpo e História. Cadernos de Subjetividade, v.1, n.1, 1993, p. 243-266.
  • SILVA, Ana Márcia. O corpo do mundo: reflexões acerca da expectativa de corpo na Modernidade. Tese [doutorado] - Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1999.
  • SOARES, Carmen Lúcia. Corpo, conhecimento e educação: notas esparsas. In. SOARES, Carmen Lúcia. Corpo e história. Campinas: Autores Associados, 2001.
  • SOARES, Carmen Lúcia; TERRA, Vinícius Demarchi Silva. Lições de anatomia: geografias do olhar. In. SOARES, Carmen Lúcia. Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação. Campinas: Autores Associados, 2007.
  • SOARES, Carmen Lúcia. Educação do corpo. In. GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Dicionário Crítico de Educação Física. Ijuí: Unijuí, 2014, p. 219-225.
  • TERRA, Vinícius Demarchi Silva. Memórias anatômicas. Tese &$91;Doutorado] - Faculdade de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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