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SENSIBILIDADE POLÍTICA E PERFORMATIVIDADE DA EDUCAÇÃO ÉTICA

SENSIBILIDAD POLÍTICA Y PERFORMATIVIDAD DE LA EDUCACIÓN ÉTICA

RESUMO:

Foucault dizia que governar é moldar a conduta dos indivíduos: mais amplamente, afirma Michel Feher, modos de governo específicos instituíram ao longo da história diferentes representações da condição humana, moldando valores, aspirações e modos de ser. Ora, a sensibilidade própria ao neoliberalismo se caracteriza pelo reforço do narcisismo, pela pouca atenção ao outro, de quem se espera que ratifique a apreciação positiva que se tem de si. Pela indiferença. O artigo analisa a resposta que Judith Butler e Athena Athanasiou oferecem para esse quadro, a partir de uma crítica radical da teoria do reconhecimento e, é claro, da figura do proprietário, «sujeito soberano e unitário», que pensa ter segurança e conforto assegurados. Propõe ainda que sua defesa da performatividade política da situação de precariedade - condição que, afinal, todos partilhamos - abre caminho para pensarmos a educação ética na atualidade.

Palavras-chave:
Precariedade; Performatividade política; Educação ética; Michel Feher; Athanasiou & Butler

RESUMEN:

Foucault decía que gobernar es dar forma a la conducta de los individuos: de manera más amplia, agrega Michel Feher, modos específicos de gobierno han instituido, a lo largo de la historia, diferentes representaciones de la condición humana, configurando valores, aspiraciones y formas de ser. La sensibilidad inherente al neoliberalismo se caracteriza por el refuerzo del narcisismo, por la poca atención al otro, por la indiferencia. El artículo pretende presentar la respuesta que ofrecen Judith Butler y Athena Athanasiou a este marco, basada en una crítica radical de la teoría del reconocimiento y de la figura del propietario, «sujeto soberano y unitario», que cree tener seguridad y comodidad aseguradas. Pretende también proponer que su defensa de la performatividad política de la situación de precariedad - condición que, al fin y al cabo, todos compartimos - sin duda abra el camino para pensar la educación ética hoy.

Palabras clave:
Precariedad; Performatividad política; Educación ética; Michel Feher; Athanasiou y Butler

ABSTRACT:

Foucault said that governing is shaping the conduct of individuals: more broadly, says Michel Feher, specific modes of government have established throughout history different representations of the human condition, shaping values, aspirations, and ways of being. Now, the sensitivity inherent to neoliberalism is characterized by the reinforcement of narcissism, by little attention to the other, by indifference. The article presents the answer that Judith Butler and Athena Athanasiou offer to this framework, based on a radical critique of the theory of recognition and the figure of the owner, «sovereign and unitary subject», who thinks he has assured safety and comfort. Their defense of the political performativity of the precarious situation - a condition that, after all, we all share - opens undoubtedly the way for thinking about ethical education today.

Keywords:
Precarity; Political performativity; Ethical Educacion; Michel Feher; Athanasiou & Butler

Alguém que se sinta sempre surpreso com a existência de fatos degradantes, alguém que continue a sentir-se decepcionado (e até incrédulo) diante de provas daquilo que os seres humanos são capazes de infligir, em matéria de horrores e de crueldades a sangue-frio, contra outros seres humanos, ainda não alcançou a idade adulta em termos morais e psicológicos. Ninguém, após certa idade, tem direito a esse tipo de inocência, a essa superficialidade, a esse grau de ignorância ou amnésia. Existe, agora, um vasto repertório de imagens que torna mais difícil a manutenção dessa deficiência moral. Deixemos que as imagens atrozes nos persigam. Mesmo que sejam apenas símbolos e não possam, de forma alguma, abarcar a maior parte da realidade a que se referem, elas ainda exercem uma função essencial. As imagens dizem: é isto o que seres humanos são capazes de fazer - e ainda por cima voluntariamente, com entusiasmo, fazendo-se passar por virtuosos. Não esqueçam. (SONTAG, 2003SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras/kindle, 2003., s/n.)1 1 As traduções de originais em inglês ou francês citados no presente artigo foram realizadas pela autora.

Mas nós nos esquecemos! E a denegação, a decepção, o susto frente à maldade no mundo são os sintomas desse abandono da realidade, dessa superficialidade que implica indigência ética e nos assegura uma (falsa) boa consciência. Se o farisaísmo que consiste em encontrar a virtude de sua tribo na condenação da tribo do outro é uma atitude multimilenar, há momentos da história em que ele se torna um alerta: é quando se descobre que essa fuga pela hipocrisia já ameaça a própria sobrevivência da sociedade, de seus laços, de seus projetos. Vivemos, sem dúvida, um desses momentos, quando a política parece perder totalmente seu poder de sensibilização e sua performatividade, empurrando os sujeitos para um isolamento cada vez mais radical. Tempos de um formidável desafio para a reflexão e a prática da formação humana - e é para a elucidação de algumas das dimensões desse desafio, que ajudam a definir os termos de uma educação ética na atualidade, que o presente artigo gostaria de contribuir.

LIÇÕES DE INDIFERENÇA

Quando, no início dos anos 1960, Hannah Arendt publicou a célebre análise em que afirmava a «banalidade do mal» (ARENDT, 1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém [1963] São Paulo: Cia. das Letras, 1999.),2 2 O livro Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963, tinha como base os artigos escritos por Arendt em 1961, na qualidade de correspondente do jornal The New Yorker. ela estava, sob pretexto de cobertura jornalística do julgamento do carrasco nazista Eichmann, desenvolvendo uma tese filosófica de pesadas implicações: «o mal não tem raízes» (ARENDT, 1996ARENDT, Hannah. Considérations morales. Paris: Payot & Rivage poche, 1996., p. 57), ousara concluir a filósofa, depois de observar, dia após dia, o comportamento do criminoso diante do tribunal. Pois o que ela vira nesse símbolo das enormes atrocidades do regime a que servira fielmente, não era nem a figura monstruosa do mal absoluto, nem a tresloucada irracionalidade do fanatismo: apenas uma figura comum, um ser insípido, destituído de qualquer traço de singularidade, a desfiar lugares-comuns e clichês

…o que me surpreendia no culpado era uma evidente falta de profundidade, a tal ponto que não se podia remontar o mal incontestável que organizava seus atos até o nível mais profundo de suas raízes ou motivos. Os atos eram monstruosos, mas o responsável (…) era absolutamente ordinário, como todo mundo, nem demoníaco nem monstruoso. Não havia nele traço nem de convicções ideológicas sólidas, nem de motivações especificamente malignas, e a única característica notável que se identificava em sua conduta (…) era uma ausência de pensamento. (ARENDT, 1981ARENDT, Hannah. La vie de l’esprit. Paris: PUF, 1981., p. 21)

Alguns discordam hoje da interpretação que Arendt forneceu para as motivações de Eichmann - ou para sua ausência -, mas isso é de pouca importância, aqui. Se a análise que tanta polêmica despertou em sua época incomodava,3 3 «A ideia de que o mal possa ter triunfado no mundo por causa da banalidade ou da indiferença, do conformismo absoluto de um homem como Eichmann, foi percebida por numerosos leitores de Eichmann em Jerusalém (e por outros que não se preocuparam em o ler) como uma afronta à sua respeitabilidade», afirma o biógrafo Jerôme Kohn (2000, p. 13). não era por outra razão senão porque avançava uma hipótese aterradora, irrecebível: a de que o mal se ampara na indiferença profunda, na escrupulosa obediência, na passiva aceitação do que é apresentado, na cobiça venal por segurança e conforto. O mal não está longe, nas fronteiras da humanidade; ele está bem aí, circulando insidioso e invisível em nossas ações cotidianas. O mal nada cria, nada traz de novo, apenas reitera - ideias, sentidos, valores, expressões, comportamentos. O mal não tem raízes, porque é inteiramente marcado pelas circunstâncias, porque é circunstância. E a tese da banalidade do mal revela que ele se instala ali onde, justamente, o pensamento é rejeitado - que ele se alimenta da ausência do julgamento, da falta do hábito da reflexão, que só se forma pela cuidadosa educação; que ele se nutre da indiferença.

E é à indiferença que nosso mundo parece nos obrigar: que outra forma de suportar as imagens atrozes de crianças abatidas por mais uma batida policial violenta? Como absorver as diversas e repetidas evidências do pouco valor dado à vida dos negros, dos indígenas, dos despossuídos, dos forçados ao êxodo, dos excluídos, enfim? Como aceitar a acelerada destruição do planeta, condenado pela irracionalidade dos interesses econômicos? Como conviver com as manchetes que revelam a pura venalidade, o descaso, a corrupção, o cinismo e a crueldade daqueles que deveriam, justamente, cuidar do bem comum?

Nós mesmos, porém, nas grandes cidades, não estamos submetidos a um treinamento de insensibilidade? Como reagir em face do pedinte? O que fazer quando a guarda municipal destrói com requintes de perversa satisfação a mercadoria do ambulante? Como proceder ao ver uma pessoa sendo vítima de covarde agressão? E quando alguém pede socorro, acreditar ou não? Não podendo evitar totalmente esse tipo de situações, nos acostumamos, aos poucos, a fazer de conta que não estamos vendo, imaginando que qualquer gesto de solidariedade terá como consequência um risco inaceitável para nossa própria segurança.

E, de certa forma, é apenas natural que o humano tente se proteger da dor de ser exposto a uma realidade insuportável: contudo, o evitamento, contudo, produz a culpa, e o sentimento de impotência conduz à racionalização. Reservamos nossa empatia para poucos - porque se colocar no lugar dos outros parece ser uma missão quase suicida em nossa sociedade -, e talvez por isso Virginia Wolf (2019WOLF, Virginia. Três guinéus. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.) anunciasse o fracasso de nossas imaginação e empatia. Buscamos razões para não pensar - e, sobretudo, para não agir. Nossa passividade toma, então, a forma de «solidariedade», assegurando-nos de que, ao menos, não somos cúmplices daquilo que causou o sofrimento de outrem: «nossa solidariedade proclama nossa inocência, assim como proclama nossa impotência», destaca Sontag (2003SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras/kindle, 2003., s/n). É, entretanto, tênue a diferença entre a compaixão impotente e a passividade que embota o sentimento, como nos demonstram as intermináveis manifestações de apoio ou de repúdio ativadas pelas redes sociais, as petições que consolam nossa boa consciência sem necessariamente repercutir em mudanças, sem atingir qualquer performatividade. A racionalização imobiliza porque não é pensamento, mas tão somente um atalho que tenta precipitar uma conclusão favorável.

A reflexão que induz a sensibilidade política - o pensamento, tal como o definia Arendt - é outra coisa: é trabalhosa, é arriscada e, sobretudo, introduz-se como exercício da dúvida, da hesitação de que é capaz aquele que Isabelle Stengers denominou «o idiota»: alguém que hesita, que instala a dúvida, que cria o desconfortável interregno que obriga ao questionamento, expondo nossas firmes convicções acerca de nós mesmos, nossas certezas teóricas mais inquestionáveis. Pois até mesmo a melhor teoria serve de instrumento para a recusa do pensamento.

Dessa forma, o idiota se contrapõe diretamente à figura do especialista, que, em seu apego à teoria, acaba por se fazer incapaz de reflexão: é que, tendendo a definir cada situação como um simples caso particular de uma determinação mais geral, a teoria acaba por «impedir que seus representantes sejam obrigados a pensar que esse caso os coloque em risco». (DO VALLE, 2019DO VALLE, Lílian. O idiota, o especialista e o diplomata: reflexões sobre o cosmopolitismo e sobre a prática da formação humana. Educação & Sociedade, vol. 40, n. 146, 2019. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302019000100804&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt [Acesso em04/02/2019.]
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
, s/n; cf. STENGERS, 2007STENGERS, Isabelle. La proposition cosmopolitique. LOLIVE et al. L'émergence des cosmopolitiques. Paris: La Découverte, 2007, p. 45-68 A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 442-464, abr. 2018. Disponível em Disponível em http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/145663 . Acesso em 04/02/2019.
http://www.revistas.usp.br/rieb/article/...
)

Seria mais fácil acreditar, como o fizeram os modernos, na onipotência das luzes da razão, não fossem os múltiplos testemunhos do contrário. A começar pelo de Arendt, que «se horrorizou com a facilidade com a qual certos membros da comunidade intelectual se deixaram levar pela onda avassaladora do nacional-socialismo sem mesmo tentar se opor a ele». (KOHN, 2000KOHN, Jerôme. Introduction à Hannah Arendt. La philosophie de l’existence et autres essais. Paris: Payot, 2000., p. 10) Longe de prevenir a apatia e a insensibilidade, a atividade teórica havia conduzido muitos dos «pensadores profissionais» com quem convivia a se retirar da convivência comum; entretidos pela nobre busca da verdade universal, esses especialistas de fato passaram a desenvolver uma espécie de resistência à experiência corriqueira, um desprezo pelos acontecimentos e pelos exemplares que encarnavam o ideal abstrato que estudavam.

Não é decerto a teoria, em si, a responsável por isso, assim como não se pode culpar a pletora de informações que nos chegam na atualidade, nem a influência das redes sociais. Tampouco faz sentido lidar com a questão como se dependesse tão somente do impulso individual. Nosso modo de ser é, antes de qualquer outra coisa, moldado pela forma como nos constituímos como sociedade. Essa «socialização espontânea» se realiza indiscriminadamente nas relações sociais, nos fazeres do dia a dia, nas práticas e nos comportamentos instituídos como «normais» e «aceitáveis». É a ela que a educação deve fazer frente, fazendo-se instrumento para a construção de uma nova sensibilidade, uma nova performatividade política; mas, para isso, é preciso poder entender como se instala e se manifesta na atualidade essa socialização espontânea.

A PEDAGOGIA NEOLIBERAL DA APRECIAÇÃO DE SI

Que nos perdoem os que querem definir limites estritos separando educação e socialização, socialização e performatividade - e, assim, educação e política: a profunda crise das instituições e da lógica da representação em nosso país (e, a bem da verdade, em todo o mundo) sugere a importância de nos indagar sobre as condições de performatividade de ações que visem estabelecer novos rumos para a vida coletiva. E aquelas relacionadas de forma mais geral à formação humana e especialmente à educação ética despontam sem qualquer dúvida como centrais nesse cenário: não fosse por outra razão, para responder à pedagogia informal que vem sendo incessantemente praticada, espontânea e intencionalmente, no seio da sociedade.

Seguindo o caminho aberto por M. Foucault, para quem governar consiste em moldar e regular a conduta dos indivíduos, Michel Feher vem se dedicando, desde os anos 2000, a estabelecer a correlação entre modos de governo específicos e as diferentes representações da condição humana que eles instituíram, à medida que cuidavam de controlar o que consideram ser as «más inclinações» e estimular o que definem como disposições aceitáveis por parte de seus governados. É, assim, indiretamente, toda uma pedagogia do poder que Feher põe em evidência. Começando pelo século V de nossa era, Feher analisou as formas de sociabilidade dominantes em três períodos históricos, identificando as vias pelas quais o poder desenvolve sua ação formadora: identifica, primeiramente, a «condição agostiniana», cuja pastoral impõe no mundo cristão os valores da caridade e da humildade como freios ao orgulho e à concupiscência; em seguida, após essa dominação de mais de um milênio, a «condição liberal», que, abandonando o apelo religioso, em vez de lutar contra, passou a contar com a força da cobiça e com as astúcias da razão instrumental para impelir os indivíduos a descobrir as vantagens da livre negociação, da acumulação e do investimento, que temperavam os excessos da incessante busca pela satisfação pessoal e da luta desmedida por seus interesses individuais. Feher, porém, reservou, evidentemente, sua atenção para a realidade atual, analisando os traços distintivos da «condição neoliberal» e disposto a «inventariar os recursos psíquicos que as políticas geralmente associadas ao neoliberalismo - desregulamentação dos fluxos de capitais e de engenharia financeira, flexibilização do mercado de emprego, substituição tendencial do crédito para os benefícios sociais etc. - acabam por definir nas populações que elas visam». (FEHER, 2015FEHER, Michel. Don, échange, partage: esquisse et croisement de deux projets. Mouvements des idées et des lutes, «Essai & Débat», 26/05/2015. Disponível em Disponível em https://mouvements.info/don-echange-partage-esquisse-et-croisement-de-deux-projets/ [Acesso em11/04/2020.]
https://mouvements.info/don-echange-part...
, s/n)

O liberalismo havia convertido a piedade cristã, remédio para a remissão das faltas devidas ao pecado original, em uma forma de humanismo que valorizava a empatia e a gratuidade - restritas, entretanto, ao círculo da intimidade caseira… É a subjetividade própria ao que Feher (2015FEHER, Michel. Don, échange, partage: esquisse et croisement de deux projets. Mouvements des idées et des lutes, «Essai & Débat», 26/05/2015. Disponível em Disponível em https://mouvements.info/don-echange-partage-esquisse-et-croisement-de-deux-projets/ [Acesso em11/04/2020.]
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, s/n) denominou «egoísmo esclarecido». O neoliberalismo, quanto a ele, busca «suprimir a clivagem entre o ser íntimo e o empresário», tornando homogêneos os princípios em ambas as esferas. (FEHER, 2007FEHER, Michel. S’apprécier, ou les aspirations du capital humain. Raisons Politiques, Paris, n. 28, nov., s/p, 2007., p. 21). De forma que o sujeito neoliberal já não é um consumidor, mas um produtor, um empresário de si mesmo: é o reino da lógica do «empreendedorismo», elevada à condição de virtude máxima do etos neoliberal, que conhecemos tão bem. (p. 21)

Em um famoso ensaio sobre as origens do liberalismo, C. B. MacPherson havia caracterizado a subjetividade liberal como a do «individualismo possessivo»4 4 Segundo Étienne Balibar (2010), se o conceito não foi inventado por MacPherson (1962), em The political theory of possessive individualism, pelo menos foi a partir daí que ela passou a ter o destaque que ganhou em seguida. O próprio termo «individualismo», como Balibar relembra, foi inventado no início do século XIX, com o sentido pejorativo que carregava a ideia de egoísmo. que caracteriza o sujeito como «proprietário de si mesmo». Para o liberalismo, o indivíduo é aquele que, essencialmente, se define como

proprietário de sua própria pessoa ou capacidades, nada devendo, por isso, à sociedade. O indivíduo não era visto nem como um todo moral, nem como parte de um todo social maior, mas como um dono de si mesmo. Tendo a propriedade se tornado, para mais e mais homens, crucial para a própria definição de sua liberdade e a perspectiva concreta de realização de suas potencialidades, ela acabou projetada na natureza do indivíduo. O indivíduo, pensava-se, é livre uma vez que é proprietário de sua pessoa e de suas capacidades. A essência humana é estar livre da dependência dos outros, sendo a liberdade uma função da posse. (MACPHERSON, 1962MACPHERSON, Crawford Brough. The political theory of possessive individualism. Oxford: Oxford University Press,1962. [ed. bras. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1979], p. 3)

O neoliberalismo radicaliza o sentido dessa propriedade: o declínio do trabalhador livre corresponde à subjetividade própria à noção de capital humano,5 5 (...) consiste em um estoque de competências modificado por tudo que me afeta e pelo que efetuo; (b) a noção de que tudo que ganho - salários, dividendos de investimentos, favores, oportunidades - não são mais do que os juros do capital em que me constituo; (c) a valorização de meu capital não mais se mede apenas em termos monetários, mas assume formas variadas. (Feher, 2007, p. 18) pela qual o indivíduo é levado a investir na valorização de seus próprios recursos, capacidades e «competências». Vindos do liberalismo clássico, alguns valores que resistiam a qualquer cálculo de interesse - como a solidariedade, a justiça, a partilha - tornaram-se agora obsoletos, tudo se dobrando à busca da valorização de si (FEHER, 2007GUMBRECHT, Hans Ulrich. A produção da presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2010., p. 21).6 6 Essa é a vitória do sentimento que Jean-Jacques Rousseau (s/d, v. III., p. 156) havia apelidado de «amor-próprio», nocivo porque curiosamente feito de narcisismo exacerbado e dependência da opinião de outrem.. A vida do sujeito se converte em uma grande estratégia visando à construção da autoestima: «cada uma de suas condutas e cada acontecimento que o afeta, nos mais diversos registros existenciais, são suscetíveis de levá-lo a se apreciar ou a se depreciar» (id.), de modo que todos eles condicionam a seleção de condutas e modelos de autoestima, definindo igualmente suas prioridades, suas aspirações e escolhas estratégicas.

Eis como o neoliberalismo introduz, conclui Feher, uma nova forma de sociabilidade, caracterizada pela legitimação da necessidade de se apreciar, pela exploração do narcisismo e pela pouca atenção ao outro - de quem o indivíduo espera, no entanto, que ratifique a avaliação que ele tem de si próprio. Junto a esse extraordinário reforço do narcisismo vêm, obviamente, o relaxamento moral, o paternalismo institucional e o apelo redobrado ao consumo. E a adesão, consciente ou velada, ao modo de vida, aos valores e aspirações moldadas por governos que praticaram e continuam praticando o que A. Mbembé (2018MBEMBÉ, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.) denominou necropolítica.7 7 O termo aparece pela primeira vez em Mbembé (2016, p. 29-60).

A pedagogia neoliberal inunda as mentes de palavras e expressões dúbias, que tanto servem ao marketing mais empedernido quanto são despudoradamente vendidas como receitas de uma «educação para o sucesso»: «empreendedorismo», «dar o seu melhor», «saber se valorizar», «buscar seu lugar», «ser dono de seu corpo»… Repare-se a extraordinária força de que se reveste essa modelagem, por toda parte ativa na sociedade, e que invade o campo educacional propondo mais do que seus slogans, sua lógica de competitividade e egocentrismo. Sua força, todavia, é também sua maior fraqueza: aprisionando o sujeito na solidão de seu narcisismo, que cedo ou tarde a melancolia ou o rancor virão habitar, ela nada pode contra a vida coletiva - essa mesma que a educação pode construir como hábito na vida dos sujeitos desde a mais tenra idade. E não seria esse o melhor nome para uma educação ética na atualidade?

NEOLIBERALISMO E OS LIMITES DO RECONHECIMENTO: A PERFORMATIVIDADE POLÍTICA

Em um belo livro intitulado Dépossession, Judith Butler e Athena Athanasiou (2016) se dedicam, justamente, à crítica desse «sujeito soberano e unitário» que a Modernidade inventou, com o auxílio da filosofia e da doutrina liberal, e que passou a se constituir no tipo antropológico característico do capitalismo: o indivíduo que, como vimos, se define como «proprietário de sua própria pessoa e de suas capacidades» - o que significa que ele «por isso nada deve à sociedade… [já que ] a liberdade existe como exercício de posse» (MACPHERSON, 1979MACPHERSON, Crawford Brough. The political theory of possessive individualism. Oxford: Oxford University Press,1962. [ed. bras. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1979], p. 15). Esse sujeito é a encarnação das políticas que praticam a exclusão sumária daqueles que nada possuem ou que foram alienados do que era seu - já que «onde não há posse de bens, não pode haver tampouco indivíduo» (p. 22). Na raiz histórica da organização social que é a nossa, repousa, portanto, esse pobre, mas efetivo silogismo, pelo qual se nega aos despossuídos sequer o direito ao reconhecimento do valor de sua existência.

Mas o que fazer da ideia de que somos proprietários de nossa própria pessoa? Seriam as pessoas espécies de bens que podem ser possuídos, e seríamos apenas capazes de compreender essa formulação jurídica sem a realidade histórica da escravidão e das formas de individualismo possessivo que pertencem ao capitalismo? (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 14)

A relação entre esse sujeito soberano e o colonialismo é evidente, mas somente perceptível pela ótica do dominado: pois a ilusão da liberdade ofusca no proprietário a reflexão sobre sua condição e sobre as implicações de seus atos. Assumindo esse ponto de vista, as autoras pretendem colocar em questão essa concepção colonial de subjetividade humana que, ancorada na valorização da soberania, do território e da propriedade, tem como contrapartida a sistemática expropriação daqueles que, ontem como hoje, estão condenados ao exílio, à perda de sua terra ou de sua comunidade, que são submetidos à desapropriação de seu próprio corpo, à violência militar ou econômica, à pobreza, à precarização de suas vidas. (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 9)

Esse terrível, ainda que tão naturalizado, regime de injustiças transformado em direito do Estado de decidir quem e como matar é mantido, diz Athena Athanasiou, graças à intensa «bioprodutividade performativa» do neoliberalismo, capaz de «tornar possíveis modos de subjetividade e de inculcar fantasmas normativos e efeitos de verdade sobre a “vida boa” dos sujeitos proprietários…» (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 35). O neoliberalismo realiza, assim, a produção e a gestão de formas de vida adaptadas à sua contínua reprodução, inculcando modelos psíquicos, econômicos e políticos de existência e aniquilando outros, considerados agora disfuncionais… A governamentalidade neoliberal se sustenta por essa pedagogia que implica a formação de humanos inclinados a manter aspirações favoráveis e sensíveis à constante repressão das aspirações consideradas prejudiciais ao status quo.

A posse de si, de seu próprio corpo, não seria, contudo, uma das grandes ilusões divulgadas pelo modo de ser liberal? «Nós reivindicamos a posse de nossos corpos, embora reconheçamos que não podemos jamais os possuir.» E isso porque «nossos corpos vão além de nós…», implicando-nos nos processos sociais pelos quais somos expostos, despossuídos, atraídos e tocados, afetados e capazes de afetar. Somos despossuídos, argumenta Butler, pelas mesmas «potências normativas que organizam a distribuição desigual das liberdades, quer se trate de deslocamentos territoriais, de dessecamento dos meios de subsistência, do racismo, da pobreza, da misoginia, da homofobia ou da violência militar». (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 56)

Partindo, pois, elas também, da tese foucaultiana de que governar é moldar e gerir as subjetividades, as autoras chamam a atenção para os efeitos nefastos das normas raciais, de gênero e sexuais hegemônicas, que definem um «aparelho de reconhecimento» que «não cessa de trabalhar para englobar, arbitrar e mercantilizar a “diferença” e, assim, despolitizar e legitimar a configuração desigualitária dos sujeitos, das vidas e do mundo» (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 63).

Por isso mesmo, as autoras denunciam a índole conformista e normatizadora que acompanha a chamada teoria do reconhecimento e sua forma de buscar anexar os domínios da subjetividade e das relações humanas, impondo-lhes, sob pretexto de «tolerância», os limites da aceitação possível. A esse respeito pondera Athena Athanasiou:

…não temos necessidade da criação de identidades tolerantes e toleradas, susceptíveis de integrar o mercado do reconhecimento, mas, ao contrário, da desestabilização dos ideais reguladores que constituem o horizonte dessa susceptibilidade. (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 74-75)

A noção de reconhecimento - que, como sustentou A. Kojève (1947KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947.), se origina em Hegel, no contexto da discussão sobre a «luta pelo reconhecimento» (Anerkennung) - é, no entanto, diretamente tributária do ambiente mental do idealismo alemão em que o filósofo viveu (Honneth, 2002HONNETH, Axel. La lutte pour la reconnaissance. Paris: Cerf, 2002., p. 232). Retomada na atualidade por autores como Axel Honneth (2002) e Charles Taylor (1994TAYLOR, Charles. Multiculturalisme. Paris: Aubier, 1994.), ela mantém sua influência em análises sobretudo inspiradas na filosofia alemã contemporânea. Por isso mesmo, Athanasiou observa que, partindo de uma concepção abstrata de humano preexistente, a definição clássica da política do reconhecimento conduz ao ocultamento das relações de poder. Tomando, portanto, a noção a contrapelo, Athanasiou a relaciona à própria viabilidade da vida, para melhor pensar a forma como as relações de poder acabam por definir antecipadamente quem será reconhecido como sujeito humano «viável e reconhecível» e quem não o será - destituído, então, de toda inteligibilidade (Anerkennung). Pois, lembra Butler, desde muito Frantz Fanon (1952FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Paris: Seuil, 1952., p. 190) demonstrou que não há, no contexto da colonialidade, qualquer possibilidade de reconhecimento daqueles que são mantidos na subalternidade.

Posto que está relacionado também à simples sobrevivência, o reconhecimento é, entretanto, uma reivindicação que não pode ser afastada; tem-se, então, um impasse: a ausência total de reconhecimento coloca a existência em risco, mas as condições do reconhecimento liberal não deixam também de se constituir em perigo não menos efetivo para a sobrevivência. Situação paradoxal, que impele Butler a indagar como se sobrevive ao reconhecimento liberal… (Butler & Athanasiou, 2016, p. 74-75) Não se trata de uma pergunta retórica; não são poucos os casos em que as «exceções julgadas abjetas» pelo discurso normativo oficial dão lugar a uma poderosa autoconstrução, que as autoras chamam de poética de si excepcional. Os exemplos são inúmeros, que Athanasiou e Butler examinam nas lutas políticas anticapitalistas, como o Occupy e a primavera árabe, na marcha de imigrantes ilegais nos USA, em 2006, nas manifestações da arte de filiação queer… A autoconstrução a que se referem opera na plena inteligibilidade, convertendo a abjeção em performatividade. Está claro, no entanto, que, no extremo oposto da pretensa - e sempre pretenciosa - soberania que o sujeito neoliberal reivindica para si, essa poética de si não se inventa individualmente: só no âmbito da coletividade se podem instituir novas formas de inteligibilidade, que subvertem os mandamentos da «normalidade» social. (p. 66)

Tem-se, desse modo, que, do fracasso do reconhecimento do despossuídos de tudo - nacionalidade, cidadania, território, bens materiais, corpo… - emerge a ocasião para a ruptura com o sujeito soberano e para o desenvolvimento de uma sensibilidade (responsiveness) e de uma capacidade de resposta (response-ability) que constituem, finalmente, a política. (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 64)

É Athanasiou quem sintetiza:

Uma leitura precipitada provavelmente postularia uma distinção simplista entre uma poiética de si centrada no sujeito e uma ética do reconhecimento centrada, pelo contrário, no outro. A poiética de si, porém, não se refere ao «eu» mais do que o reconhecimento diz respeito «ao outro». A poiética de si não concerne apenas ao «eu» - como é o caso do individualismo heroico e autossuficiente ou da fórmula liberal alternativa «Tudo é possível!» - ela aparece como uma oportunidade performativa em um processo aberto de autoformação socialmente reguladora pelo qual, em várias circunstâncias, o eu luta contra no seio de e contra as normas que o constituem. Tais lutas não podem ser conduzidas senão por intermédio de e com outras pessoas, segundo modalidades que nos abrem aos outros (e sobretudo a outros eus), a eus deixados para trás, que não podem ser integrados em tipologias ontoepistemológicas do eu próprio e proprietário. A poiética de si parece-me ser, assim, como ética, uma possibilidade a partir da qual o eu é despossuído de sua relação soberana, por meio da abertura de uma relação com a alteridade. (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 66-67)

A ESCOLA DA SENSIBILIDADE

Este breve percurso por algumas análises acerca das formas como o neoliberalismo fabrica sensibilidades, moldando valores, aspirações e modos de ser, mostra-se particularmente importante porque, ainda muito influenciadas pelo cognitivismo que, nos discursos, todos rejeitam, a reflexão e a prática da educação não tiram as consequências devidas da ascendência que o capitalismo mantém sobre vida social, via a formatação de indivíduos mais ou menos dóceis, capazes de aderir, em todo ou em parte, fervorosa ou inconscientemente, ao credo neoliberal.

Cabe, assim, mais frequentemente à psicanálise, à filosofia ou à teoria política a análise desse poderoso fenômeno pelo qual se dá a modelagem de subjetividades. Essa é, contudo, evidentemente uma questão que interessa de modo direto à área da formação humana: longe do ideal moderno de uma «sociedade educativa» nos moldes apolíneos da democracia grega, desde cedo somos socializados para os valores e aspirações próprios ao neoliberalismo; opera-se, no mundo que compartilhamos, a reprodução em grande escala de um tipo de indivíduo narcisista, indiferente à sorte dos outros e à destruição do planeta, complacente com as injustiças e com a violência da necropolítica, pronto a colocar sua ânsia de sucesso na frente de qualquer outro valor.

Diante desse quadro de dimensões mundiais, estampado na ascensão de líderes autoritários e brutais, na vitória do utilitarismo grosseiro, no avanço do irracionalismo, na agudização das disparidades econômicas e no martírio institucional de imigrantes, de indígenas, de negros, de gays, o que pode a formação humana? Como oferecer resistência, estimulando valores que se contraponham ao individualismo doentio, à passividade endêmica, à indiferença em relação aos outros? Ou, para retomar a indagação de Butler e Athanasiou: afinal, «o que torna a sensibilidade [a “responsiveness”] política possível?» - interrogação que, traduzida nos termos mais diretos de nossos interesses, se declinaria como: «afinal, o que torna a educação ética capaz de preparar a performatividade política?»

Uma parte da resposta que as autoras fornecem se refere à forma como a condição de precariedade impele à vida política: expropriadas, deslocadas, colonizadas, perseguidas, inviabilizadas, às populações dos que vivem nas franjas dos privilégios da cidadania resta apenas a «mise-en-scène e [a] mise-en-œuvre de uma corporeidade publicamente exposta» (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 138). Em outras palavras, para esses, a política é um lugar da mais extrema vulnerabilidade, pois é com seu corpo que reclamam visibilidade e, nesse exercício, apresentam outra definição para o que hoje se chama, por força de um enorme eufemismo, de «espaço público». Colocando-se em risco, os precários ressignificam o sentido e a repartição do público e do privado, sem esquecer as regras tradicionais de participação, de divisibilidade, de parcialidade, de pertencimento, de relacionamento e de coabitação, para maior incômodo e desespero daqueles que veem nas exclusões apenas instrumentos de defesa de suas regalias. Pois qualquer ameaça de maior visibilidade dos «inconvenientes», de «ocupação» do público - ainda que seja sob a forma de simples trânsito, e não, como tantas vezes, como manifestação dos corpos que se recusam a não ocupar qualquer espaço - é recebida com repulsa, com medo e, portanto, com muita violência.

Nessa acepção, portanto, a despossessão é uma condição a que se é submetido, e se pode dar lugar à resistência e construção de uma performatividade coletiva, ela não deixa por isso de indicar uma condição de grande sofrimento - de modo que jamais poderia se constituir em ideal político - como, em tempo, Butler & Athanasiou (2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 7)observam.

Mais do que «conteúdos» e valores abstratos, a educação ética deveria, pois, cuidar da construção diária de vínculos de solidariedade entre os alunos, enfatizar a cada atividade a instituição do sentimento da coletividade. Ousemos tomar a sério a injunção de Bruno Latour (2017LATOUR, Bruno. Où atterrir? Comment s’orienter en politique. Paris: La Découverte, 2017. [Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020]): é preciso que nos aterremos! Enquanto a ética se pensar em termos de valores universais, desencarnados, que nada dizem da experiência vivida pelos sujeitos, ela estará a serviço de um idealismo impotente e autocentrado, e não poderá se fazer prática de reflexão e de abertura para a comunidade. Condição social, a despossessão é sofrimento comum da maioria dos alunos das escolas públicas no país, que pode ser entendida como modo do fracasso e da intimidação, da pura abjeção e do emudecimento ou, ao contrário, como força de determinação da descoberta da performatividade e da capacidade de resistência dos coletivos humanos.

Em um segundo sentido, entretanto, as autoras relembram que a despossessão é condição comum da existência humana - já que, como já afirmava Platão, estar em vida consiste em «afetar e se deixar afetar» (PLATON, 2008PLATON. Le sophiste. Œuvres complètes. Paris: Flammarion, 2008., p. 1849). Apesar do enorme esforço que realiza o sujeito neoliberal para se afirmar como soberano e íntegro, para proteger o que pensa ser suas posses legítimas e invioláveis, a existência é frágil, exposta a riscos incontornáveis; apesar da ilusão de autossuficiência, ser humano é já, desde o primeiro dia de vida senão antes, se envolver em um processo de socialização que obriga a estar implicado na vida dos outros e pela vida dos outros (CASTORIADIS, 1992CASTORIADIS, Cornelius. O Estado do sujeito, hoje. Encruzilhadas do labirinto, III - O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 2011). É essa realidade que o narcisismo moral acredita poder negar, buscando constituir-se em um eu invulnerável e insensível - em suma, em um «corpo indiferente», como observou Nadia Yala Kisukidi (2017KISUKIDI, Nadia Yala. Lætitia africana. Philosophie, décolonisation et mélancolie. MBEMBÉ, A. & SARR, F. (dir.) Écrire l’Afrique-Monde. Dakar: Jimsaan, 2017.), próprio daqueles que fazem do individualismo possessivo seu modo de ser, e assim só sentem o que pensam ser sua verdade, seu interesse, sua paixão. Diferentemente dos corpos forçados a opor uma resistência plural e performativa às técnicas, normas e estratégias de seu submetimento e aniquilação,8 8 «Existe», observa Butler (2015, p. 15), «uma resistência corpórea plural e performativa em ação que mostra como os corpos estão sendo acionados por políticas sociais e econômicas que estão dizimando seus meios de subsistência. Esses corpos, entretanto, ao mostrar essa precariedade, também estão resistindo a esses mesmos poderes; eles promovem uma forma de resistência que pressupõe vulnerabilidade de um tipo específico e se opõe à precariedade» (BUTLER, 2015, p. 15). o corpo indiferente é aquele que não constituiu nenhuma sensibilidade política, porque recusa sua vulnerabilidade, ou tenta dela se proteger ao máximo; é assim que, «onde quer que as pessoas se sintam seguras… [elas] hão também de se sentir indiferentes» (SONTAG, 2003SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras/kindle, 2003., s/n.). Por isso, também nesse sentido mais amplo, a sensibilidade política é a capacidade de pensar o ser em comum; não é uma forma abstrata de analisar, não é a posse de uma soma de conhecimentos nem a habilidade de proferir belos discursos, mas um modo de ser caracterizado pela abertura ao outro resultante do fato de se habitar um cosmo necessariamente habitado pela multiplicidade. Como, porém, ser despossuído do (fantasma) de seu eu soberano, que impele o sujeito a uma incessante fuga para fora do mundo - do único mundo que habita e que compartilha com os outros humanos?

Se uma alternativa pode ser oferecida à socialização neoliberal, ela está diretamente relacionada à tomada de consciência de sua própria fragilidade, da provisoriedade de tudo que se tem por posse, por segurança, por sólida aquisição.

O humano sempre é o que sobrevém do fato de suas múltiplas vulnerabilidades - tanto pelo fato de suas relações com os outros quanto de sua exposição às forças normativas que organizam as matrizes sociais, políticas e culturais da humanidade. (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 36)

Nossa humanidade é vacilante não porque um pluriverso de diferenças abala e põe em risco nossas certezas e posses, mas porque essa é nossa condição primordial. São muitas as circunstâncias que nos relembram dessa realidade, hoje potencializadas pelo surto epidêmico tão inesperado quanto indomável, pelo descontrole ambiental, pela instabilidade econômica e política. E é especialmente com nossos corpos que o apreendemos.

Desde cedo aprendemos, muito infelizmente, a extrema fragilidade de nossas existências, de nosso mundo; mas o risco é que, seguindo o movimento dominante, se pretenda buscar um refúgio ilusório no narcisismo, no isolamento da resposta individual, apostando na posse antecipada de um sucesso sempre adiado e, para isso, despregando os pés do chão, abandonando todo contato com a Terra que habitamos.

Não é decerto inútil salientar que muitas vezes o trabalho da educação alimenta esse tipo de atitude - ao dar sobrevida a uma noção de humanidade soberana, definida pela posse do mundo e de tudo que aí vive; ao pretender remediar a insegurança e o sofrimento daqueles que lhe são confiados, alimentando falsas expectativas de sucesso individual e de plena realização.

Também aqui, a educação ética retira do trabalho coletivo a força para instalar os sujeitos em «outra cena» em que já não se é o centro:

Quando, independentemente de nossa vontade, se é tocado pelo que se vê, que se sente ou se compreende, se é transportado para outra cena, outro mundo social de que não se é mais o centro. Essa forma de despossessão pode dar lugar a uma forma de sensibilidade que permite a ação e a resistência… (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 8).

Vivida no isolamento, a consciência da precariedade é uma condenação de que não se escapa; mas, enfrentada pela perspectiva de uma coletividade, ela pode, paradoxalmente, nos libertar da passividade e do sentimento imobilizante de impotência; desfazendo-nos dos devaneios de poder e de soberania, ela é ocasião para um deslocamento crítico que traz à luz a perecibilidade de nossas certezas, a instabilidade de nosso conforto e nossa profunda dependência dos outros no que concerne a nossa existência e nosso destino. Obrigando-nos a um devir sensível e atento aos outros, a precariedade faz-se potência de agir, performatividade que, no entanto, não é possessão de um só indivíduo, mas se realiza como prática coletiva de consolidação de uma disposição afetiva que é sempre abertura e exposição sensível ao outro:

É a noção de «disposição» - com todas as suas implicações de engajamento afetivo, de cuidado, de risco, de excitação, de exposição e de imprevisibilidade - que faz a relação entre performatividade e precariedade. (BUTLER & ATHANASIOU, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 97).

Resta, porém, saber como mobilizar essa disposição afetiva que, por tudo e em tudo, contraria o etos instituído, inaugurando novas práticas de inteligibilidade e de reconhecimento não baseadas na posse e na indiferença, mas no cuidado e na responsabilidade… Parece evidente que, dada sua amplitude, esse desafio não compete apenas à escola; se, entretanto, como acreditamos, ela pode ser um dos primeiros e mais efetivos instrumentos colocados a serviço dessa mudança, então lhe cabe, além do esforço de autoquestionamento de seu profundo idealismo, reagir à «perda do mundo» que Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. A produção da presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2010., p. 9) identifica em nossa tradição - devida à desmedida valorização da dimensão cognitiva em detrimento do sensível - e que implica a incapacidade de lidar com o que se apresenta à nossa frente, «diante de nossos olhos e no contato com o corpo». (p. 9)

É nesse ponto que a referência à arte é fundamental; entendendo o corpo e a dimensão dos sentidos como plataformas necessárias ao voo da razão, como simples etapas para o domínio instrumental da cognição, os esquemas antropológicos herdados privaram a prática pedagógica de seu potencial de performatividade, restringindo sua efetividade no processo de socialização dos sujeitos. Esse não foi - et pour cause! - o caso das artes… Infelizmente, porém, dado o contexto em que as «artes do corpo» (aí incluídas tanto a chamada educação artística quanto a educação física) foram admitidas na escola, seu papel é, na maioria dos casos, apenas acessório, à sombra das matérias «importantes», que se adequam melhor ao pragmatismo ambiente. Elas teriam, no entanto, muito a contribuir, já do ponto de vista pedagógico, uma vez que, convocando necessariamente a experiência dos sentidos, elas reintroduzem o corpo, a exigência de ouvir os testemunhos dos sentidos, de lidar com sujeitos encarnados, que manifestam em suas reações sempre imprevisíveis a diversidade de modos de ser que, de outra maneira, estaria encoberta pelo formalismo didático. As artes do corpo, contudo, devem ser tomadas como muito mais do que um recurso didático; elas amparam a construção de um tipo diferente de socialização, abrindo espaço para a possibilidade de construção de novas relações com o mundo e com os outros e, talvez, de instalação de uma disposição de abertura e reconhecimento do diverso. É necessariamente o corpo que permite a aproximação daquilo que, do estrangeiro, nos expõe à sua beleza, à sua humanidade singular, à sua presença provocativa e incômoda. Em suma, as artes do corpo obrigam a um movimento para fora de si e, assim, inauguram a experiência da vulnerabilidade - uma forma suave de despossessão.

Ser despossuído pela presença do outro e por nossa própria presença ao outro é a única maneira de estarmos presentes uns nos outros. (BUTLER, 2016BUTLER, Judith & ATHANASIOU, Athena. Dépossession [2013]. Paris: Diaphanes, 2016., p. 23).

Habitar o mundo; fazer-se corpo, fazer corpo com tudo que leva a ver que a existência, finalmente, sempre nos supera e nos aguarda ali onde não esperamos.

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DOI: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/3491

REFERÊNCIAS

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  • 1
    As traduções de originais em inglês ou francês citados no presente artigo foram realizadas pela autora.
  • 2
    O livro Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963, tinha como base os artigos escritos por Arendt em 1961, na qualidade de correspondente do jornal The New Yorker.
  • 3
    «A ideia de que o mal possa ter triunfado no mundo por causa da banalidade ou da indiferença, do conformismo absoluto de um homem como Eichmann, foi percebida por numerosos leitores de Eichmann em Jerusalém (e por outros que não se preocuparam em o ler) como uma afronta à sua respeitabilidade», afirma o biógrafo Jerôme Kohn (2000, p. 13).
  • 4
    Segundo Étienne Balibar (2010), se o conceito não foi inventado por MacPherson (1962), em The political theory of possessive individualism, pelo menos foi a partir daí que ela passou a ter o destaque que ganhou em seguida. O próprio termo «individualismo», como Balibar relembra, foi inventado no início do século XIX, com o sentido pejorativo que carregava a ideia de egoísmo.
  • 5
    (...) consiste em um estoque de competências modificado por tudo que me afeta e pelo que efetuo; (b) a noção de que tudo que ganho - salários, dividendos de investimentos, favores, oportunidades - não são mais do que os juros do capital em que me constituo; (c) a valorização de meu capital não mais se mede apenas em termos monetários, mas assume formas variadas. (Feher, 2007, p. 18)
  • 6
    Essa é a vitória do sentimento que Jean-Jacques Rousseau (s/dROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes [1755]. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, (s/d)., v. III., p. 156) havia apelidado de «amor-próprio», nocivo porque curiosamente feito de narcisismo exacerbado e dependência da opinião de outrem..
  • 7
    O termo aparece pela primeira vez em Mbembé (2016MBEMBÉ, Achille. Nécropolitique. Raisons Politiques, n. 21, v. 1. Paris: Presses de Sciences Po, 2016, p. 29-60. [Disponível em: https://www.cairn.info/revue-raisons-politiques-2006-1-page-29.htm]).
    https://www.cairn.info/revue-raisons-pol...
    , p. 29-60).
  • 8
    «Existe», observa Butler (2015BUTLER, Judith. Rethinking vulnerability and resistance. Vulnerability in resistance. Durham/London: Duke University Press, 2015., p. 15), «uma resistência corpórea plural e performativa em ação que mostra como os corpos estão sendo acionados por políticas sociais e econômicas que estão dizimando seus meios de subsistência. Esses corpos, entretanto, ao mostrar essa precariedade, também estão resistindo a esses mesmos poderes; eles promovem uma forma de resistência que pressupõe vulnerabilidade de um tipo específico e se opõe à precariedade» (BUTLER, 2015, p. 15).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

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