Acessibilidade / Reportar erro

AS PEQUENAS ESCOLAS CRISTÃS DE LA SALLE: ORGANIZAÇÃO E TRABALHO NOS PRIMEIROS ANOS DE FUNDAÇÃO

LAS PEQUEÑAS ESCUELAS CRISTIANAS DE LA SALLE: ORGANIZACIÓN Y TRABAJO EN LOS PRIMEROS AÑOS DE FUNDACIÓN

RESUMO:

Utilizando-se das obras legadas por La Salle, de seus comentadores, bem como de pesquisadores sobre esse período e sobre a educação, o que se propõe neste trabalho é a apresentação, por meio de tais fontes, de sua proposta pedagógica de caráter reformista, porém, correspondente com as necessidades sociais que paulatinamente se apresentavam naquele contexto. Asseguradas pelas políticas do rei Luís XIV, as Pequenas Escolas Cristãs, fundadas por Jean-Baptiste de La Salle, bem como as demais instituições católicas encontravam espaço para a promoção de sua pedagogia de cunho cristão, com a evidência de que, nas Pequenas Escolas, o ensino apresentava sinais de modernidade até então nunca vistos em outras instituições de ensino confessional. Como guia espiritual e intelectual de um grupo de mestres consagrados, La Salle proporcionou o acesso indiscriminado de alunos às suas escolas, alfabetizando em francês e formando leigos para a condução de suas classes, o que popularizou o seu trabalho e as regras de civilidade cristã escritas por ele e lidas amplamente. Todos esses fatores contribuíram para o surgimento de uma educação que, priorizando as camadas mais pobres da sociedade, buscou conciliar em seu método os tradicionais preceitos religiosos com as demandas da sociedade burguesa de seu tempo. O resultado de seu trabalho pode ser compreendido a partir do alcance popular ao conhecimento da leitura e escrita, o que lhes permitiu trabalho e desenvolvimento nas modernas demandas que o contexto social exigia.

Palavras-chave:
educação; La Salle; Pequenas Escolas Cristãs; França; século XVII

RESUMEN:

Utilizando las obras legadas por La Salle, de sus comentaristas, así como investigadores de este período y de la educación, lo que se propone en este trabajo es la presentación, a través de dichas fuentes, de su propuesta pedagógica de carácter reformista, no obstante, correspondiente a las necesidades sociales que fueron apareciendo paulatinamente en ese contexto. Aseguradas por la política del rey Luis XIV, las Pequeñas Escuelas Cristianas, fundadas por Jean-Baptiste de La Salle, así como otras instituciones católicas encontraron espacio para la promoción de su pedagogía cristiana, con la evidencia de que, en las Pequeñas Escuelas, la enseñanza mostró señales de modernidad nunca antes vistos en otras instituciones de enseñanza confesional. Como guía espiritual e intelectual de un grupo de maestros consagrados, La Salle facilitó el acceso indiscriminado de los alumnos a sus escuelas, alfabetizó en francés y capacitó a laicos para la conducción de sus clases, lo que popularizó su obra y las reglas escritas del civismo cristiano escritas por él y leídas ampliamente. Todos estos factores contribuyeron al surgimiento de una educación que, priorizando las camadas más pobres de la sociedad, buscó conciliar en su método los preceptos religiosos tradicionales con las exigencias de la sociedad burguesa de su tiempo. El resultado de su trabajo puede entenderse desde el alcance popular hasta el conocimiento de la lectura y la escritura, lo que les permitió trabajar y desarrollarse en las exigencias modernas que demandaba el contexto social.

Palabras clave:
educación; La Salle; Pequeñas Escuelas Cristianas; Francia; siglo XVII

ABSTRACT:

Using the works of La Salle, his commentators, and researchers on this period and education, this work aims to present his pedagogical proposal of a reformist nature, which, however, corresponded to the social needs that gradually appeared in that context. Ensured by the policies of King Louis XIV, the small Christian Schools, founded by Jean-Baptiste de La Salle, and other Catholic institutions found space for promoting their Christian pedagogy. In the Small Schools, teaching showed signs of modernity never before seen in other confessional teaching institutions. As a spiritual and intellectual guide of a group of consecrated masters, La Salle provided students with indiscriminate access to their schools, teaching them to read and write French, and training lay people to conduct classes. These actions popularized his work and the Christian civility rules he wrote and were widely read. All these factors contributed to the emergence of an education that, prioritizing the poorest layers of society, sought to reconcile in its method the traditional religious precepts with the demands of the bourgeois society of its time. The result of his work can be understood based on the popular reach of reading and writing, which allowed them to work and develop amidst the modern demands required by the social context.

Keywords:
education; La Salle; Small Christian Schools; France; 17th century

INTRODUÇÃO

Neste artigo temos por objetivo discorrer a respeito da organização e do trabalho promovidos pelas Pequenas Escolas Cristãs, fundadas pelo cônego Jean-Baptiste de La Salle em 1694, na França. A partir dos comentadores que pesquisam acerca desse período, iniciamos o texto apresentando o modo como as políticas promovidas pelo rei Luís XIV favoreceram o fortalecimento de instituições católicas de ensino por toda a França, a partir da revogação do Edito de Nantes. Este ato garantiu a ascensão de grupos religiosos como o dos Irmãos Lassalistas, dedicados exclusivamente à educação, sobretudo a dos mais pobres.

Em continuidade, examinamos a proposta de ensino presente nas primeiras Pequenas Escolas Cristãs de La Salle, a partir de manuais de educação como também de seus escritos e de pesquisas sobre seu trabalho, indicando fatores e características que fizeram de suas recomendações para as escolas um projeto pedagógico moderno. Apesar do caráter confessional, há indicativos de que sua metodologia e organização se alinhavam às necessidades emergentes de uma sociedade burguesa que descobria novos instrumentos de trabalho e formas de manutenção da vida. O projeto lassalista de ensino contribuiu para a expansão de tal ideal.

Na sequência, ainda dispondo dos escritos de La Salle e de pesquisadores sobre o tema, ocupamo-nos em identificar os pormenores das atividades do padre fundador com os Irmãos na melhoria de suas habilidades como mestres, bem como na preocupação com uma educação de qualidade, atenta aos afazeres cotidianos da sala de aula. Esses cuidados na orientação e escrita de documentos e conselhos para as suas escolas lhes renderam popularidade, alcançando o gosto comum com seus manuais de educação e civilidade cristã. Analisamos que a promoção desse modelo de ensino rendeu amostras de uma educação para o trabalho que logo adiante seria o motor da sociedade burguesa e, então, apresentamos as considerações finais.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NA FRANÇA EM FINS DO SÉCULO XVII: UM ENSINO RELIGIOSO

Embora o processo de laicização da sociedade, do homem e das ciências na França tenha seu desenrolar histórico mais bem definido a partir de meados do século XVIII em diante, no campo pedagógico o perfil educacional vigente à época era o de uma orientação religiosa e cristã. O século XVIII é considerado o período das Luzes, e foi graças aos movimentos políticos, religiosos e pedagógicos nele produzidos, iniciados no século XVII, que esses ideais revolucionários, ancorados no apoio e na mobilização popular, vieram à tona em forma de revolução em fins do século XVIII (NUNES, 2018NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação no Século XVII. 2. ed.Campinas: CEDET, 2018.). A educação não ficaria de fora desse vasto processo de transformação social iniciada pelo Iluminismo, pois, juntamente com o direito, as leis e a geopolítica, ela possibilitou a efetivação das mudanças mais significativas do período.

Isso significa dizer que a experiência das escolas do século XVIII, ao mesmo tempo que produziram governantes ao estilo do Ancien Régime, também impulsionaram o surgimento de novos líderes populares que contestavam o modelo de educação predominante, de caráter eminentemente religioso. Pensadores iluministas como Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784) e Rousseau (1712-1778), ao discutirem acerca da educação da época, entendiam que o seu caráter religioso, além de interferir na promoção de um conhecimento autônomo, também privava o homem civil da possibilidade de questionamento sobre quem deveria se tornar (CAMBI, 1999CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.). Enquanto os métodos dessa educação religiosa correspondiam às expectativas da Igreja, particularmente estabelecidas pelo Concílio de Trento (1546-1563), os pensadores iluministas a classificavam como antiquada, incapaz de formar o homem para a atividade política, pois sua intenção era garantir que cada indivíduo permanecesse em seu lugar, sem qualquer alteração na ordem e na estrutura social, tendo em vista o fato de que o acesso à cultura letrada era privilégio de poucos. Esboçavam, assim, o ideário burguês da igualdade formal entre todos.

Não encaro como uma instituição pública esses estabelecimentos ridículos a que chamam colégios. Não levo em conta tampouco a educação da sociedade, porque essa educação, tendendo para dois fins contrários, erra ambos os alvos: ela só serve para fazer homens de duas caras, parecendo sempre tudo subordinar aos outros e não subordinando nada senão a si mesmos. Ora, essas demonstrações sendo comuns não iludem ninguém. São cuidados perdidos (ROUSSEAU, 1973ROUSSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973., p. 14).

Ocupavam espaço de relevante importância nesse modelo de educação religiosa e cristã os colégios dos padres da Companhia de Jesus, os jesuítas. Estes, apesar de suas numerosas fundações e trabalhos missionários, sabiam equalizar o seu método de ensino, sempre pautado por uma vigilante disciplina e que os igualava em qualquer canto do mundo, além do fato de serem os principais responsáveis pela educação dos nobres e burgueses, futuros mandantes naquela sociedade (MANACORDA, 2010MANACORDA, Mário Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010.). Em outras palavras, a educação cristã ensinada nos colégios da Companhia de Jesus estava presente por toda a Europa, o que fortalecia a influência da Igreja Católica nas instituições públicas e seus dirigentes, na cultura popular, bem como nos preceitos que norteavam a consolidação dos valores éticos e morais daquela sociedade.

O porquê de toda a autoridade e reconhecimento de escolas cristãs como a dos jesuítas, dos oratorianos e, posteriormente, dos lassalistas ao longo do século XVIII na França, pode ser explicado a partir da política existente no século XVII, conduzida, sobretudo, pelo governo de Luís XIV (1638-1715). Ele, o rei, era a própria representação do absolutismo, amante das guerras como instrumento de expansão de territórios e do poder da coroa francesa. Governou de modo imperioso, com poucos conselheiros e sem um primeiro-ministro, a fim de que nada nem ninguém lhe cobrisse o brilho que acreditava ter. Seu governo lhe rendeu a inegável fama de centralizador, pois, ao contrário de seus antecessores, intervinha diretamente nas decisões políticas e econômicas de seu país.

Luís costumava se envolver diretamente nos assuntos militares e, partindo do princípio de que a França estava personificada nele, passou a encarar como sua missão a imposição da influência francesa sobre todo o continente europeu. Essa atitude reforçava uma tendência estabelecida quando a França ditou os tratados de Vestfália e dos Pirineus aos países envolvidos na Guerra dos Trinta Anos, obtendo muitas concessões territoriais da Áustria e da Espanha (HORN, 1987HORN, Pierre L.Luís XIV. Coleção Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultura, 1987., p. 42).

Seus esforços foram, desde o princípio, para o fortalecimento de um governo centralizado em sua pessoa. Os avanços por ele conquistados trouxeram destaque à França, bem como o seu reconhecimento econômico e político por parte de outros países da Europa que, a partir de seu reinado, viam o país com outros olhos. Todo o seu trabalho para promover uma nação forte apresentava bons resultados, o que reafirmava ainda mais a sua altivez frente aos demais príncipes e governantes. Luís acreditava-se o único responsável por todo o sucesso do formato político que aos poucos a França ia assumindo, sendo o seu reinado um retrato de sua nobreza, “Afinal, ele era neto de Henrique IV, o rei que trouxera a paz à França depois das guerras religiosas que a dividiram; era também bisneto de Filipe II, e ainda tataraneto de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico.” (HORN, 1987HORN, Pierre L.Luís XIV. Coleção Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultura, 1987., p. 27). Apesar dos sacrifícios pagos pelos pobres e camponeses em função de seus ideais, o governo de Luís XIV parecia caminhar muito bem.

Em 1678, o Tesouro real estava novamente cheio, as manufaturas francesas eram exportadas pelo mundo, as colônias, sobretudo as americanas, prosperavam, a guerra contra a Espanha, o Império, a Holanda, a Dinamarca, a Suécia e a Inglaterra estavam ganha. Depois da morte de Mazarino, o rei governava como senhor absoluto (AMARAL, 2008AMARAL, Catarina Costa. A invenção da tolerância: política e guerras de religião na França do século XVI, 298 f. Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008., p. 246).

Sua autoridade não se limitava às questões políticas e temporais, mas também alcançava as de cunho religioso nas quais se impunha enquanto personificação do Estado, que tinha como meta a unificação da França. Com isso, fatores dissonantes como, por exemplo, a presença de mais de um ideal religioso, isto é, uma religião diferente da Coroa, ou então outro líder que não fosse ele, contrastavam com a intenção de promover uma nação pautada pelos ideais comuns, com um único rei, uma só lei e uma só religião. Em outras palavras, para o rei não poderia haver ninguém que estivesse acima dele.

O Rei não queria ser ofuscado por outro primeiro-ministro e por isso reinaria sem ninguém nesse cargo. Após a morte de Mazarin, o fato de não haver um homem da Igreja num alto posto também significava que a França passaria a ver no rei, e não no papa, o seu líder (HORN, 1987HORN, Pierre L.Luís XIV. Coleção Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultura, 1987., p. 35).

Apesar dos avanços econômicos e políticos alcançados em seu governo, os conflitos entre protestantes e católicos ainda eram uma constante. Atos de perseguição e tortura praticados uns contra os outros, mas sobretudo contra as comunidades protestantes, resultaram na drástica diminuição de seus grupos de seguidores e numa contínua guerra civil. Tais enfrentamentos inviabilizavam o projeto unificador de Luís XIV, ao mesmo tempo que exigiam que uma nova política de enfrentamento por parte do rei a respeito da liberdade religiosa fosse tomada. Frente a tal cenário, foi abolido o Edito de Nantes, promulgado em 1598 pelo seu avô, o rei Henrique IV (STEGMANN, 1979STEGMANN, André. Édits de Guerre de Religion. Paris: J. Vrin, 1979.).

O Edito de Nantes permitia a liberdade de culto aos cidadãos franceses protestantes, também conhecidos como huguenotes, o que trouxe, por um curto período, paz entre católicos e protestantes no país. No entanto, no dia 18 de outubro de 1685, o édito foi revogado e substituído pelo Edito de Fontainebleau, tornando novamente a fé católica a única religião permitida em território francês.

Apesar de tal iniciativa derivar da singular devoção de Luís XIV à fé católica, a revogação do Edito de Nantes foi um ato político. Por ele se reestabeleceu na França a primazia dos princípios católicos, o que impactou diretamente nas políticas institucionais, nos valores morais presumidamente religiosos, na cultura cristã que se fortalecia e, definitivamente, no modelo de educação que, a partir daquele ato, poderia ser ofertada (HORN, 1987HORN, Pierre L.Luís XIV. Coleção Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultura, 1987.). Isso explica o porquê de o século XVIII ser repleto de instituições de ensino católicas: a partir de suas ideologias oficialmente reconhecidas e apoiadas pelo rei, as Ordens e Congregações religiosas tinham permissão para atuar livremente por todos os setores sociais, inclusive na educação.

[...] a dos jesuítas é a ordem religiosa que, pondo em prática coerentemente os princípios da Contrarreforma, desenvolve um sistema orgânico de instrução que se afirma de maneira expansiva em escala mundial e lança os fundamentos da escola moderna, laica e estatal. [...] Nesse sentido, compreende-se a instituição por parte da Companhia de inúmeros colégios para religiosos, depois abertos também aos leigos, em grande parte da Europa e do mundo, que se tornam, assim, o instrumento mais eficaz para a elaboração de uma nova forma de cultura mais próxima dos princípios da Igreja católica (CAMBI, 1999CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999., p. 261).

Apesar de também existirem escolas laicas no período, as instituições religiosas eram maioria. O Edito de Fontainebleau, além de promover a expulsão dos protestantes franceses de seu país, também fortaleceu com incentivo ideológico as escolas católicas em suas atividades pedagógicas, cada qual com o seu carisma e público-alvo a ser atendido, porém sempre em conformidade com os ensinamentos católicos. Sem a concorrência de grupos protestantes, a educação ficou a cargo das congregações religiosas católicas, algumas fundadas especificamente com o propósito de ensinar classes sociais específicas. Assim, a educação religiosa na França dividiu-se em dois segmentos principais: as escolas primárias de caráter assistencial, ofertadas às classes mais pobres, e os colégios secundaristas, responsáveis por formar os nobres e futuros dirigentes sociais (ARIÈS, 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.; MANACORDA, 2010MANACORDA, Mário Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010.). No caso das Escolas Cristãs promovidas por La Salle e seus mestres, estas se enquadravam no primeiro segmento.

LA SALLE E AS PEQUENAS ESCOLAS

Uma novidade em termos de pedagogia surgiu no século XVII, que foi a experiência das Escolas Cristãs dirigidas desde o seu início, entre 1679 e 1680, pelo cônego João Batista de La Salle e o mestre Adriano Nyel. La Salle, fundador da Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs, mais conhecidos no Brasil como Irmãos Lassalistas, oficializou o trabalho da comunidade no ano de 1694, porém sem a presença de seu colaborador Nyel, que havia abandonado o projeto para descansar em sua velhice. Ariès os define como o “apostolado educacional” que surgiu no final do século XVII na França, tendo como público-alvo de todos os seus esforços educacionais os filhos dos pobres e artesãos (ARIÈS, 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.). As Escolas Cristãs ocupavam-se dessa realidade social: um período em que o índice de pobreza na França era alto e se evidenciava pelo número de mortos e famintos.

Do ponto de vista demográfico (a França) era o país mais povoado da Europa, com cerca de vinte milhões de habitantes, dos quais 80% viviam no meio rural, embora já se verificasse um constante aumento demográfico nas cidades. A expectativa de vida era muito baixa e a mortalidade infantil altíssima (LEUBET; PAULY; SILVA, 2016LEUBET, Ângelo E.; PAULY, Evaldo L.; SILVA, Valdir L. Contribuições de João Batista de La Salle para a constituição da escola moderna. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 4, p. 32-63, out./dez. 2016., p. 38).

Numa época em que sequer se cogitava a possibilidade de uma educação pública unificada e universalizada, a abertura de escolas cristãs fazia contraste em relação às demais instituições. O ensino promovido nas “pequenas escolas”, como eram conhecidas, era estruturado numa proposta de ensino polivalente, isso porque os mestres participavam de um projeto de educação declaradamente cristão e que em 1686 resultou nos primeiros votos de obediência por parte dos principais Irmãos, provavelmente os diretores das escolas (VALLADOLID, 2012aLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.). Ao mesmo tempo, acumulavam em seu repertório pedagógico o uso de instrumentos que estivessem à disposição para garantir o aprendizado, fossem religiosos ou não, como é o caso de os mestres serem orientados por La Salle a ensinarem, por meio da leitura de registros em pergaminhos ou outros papéis escritos à mão, todos aqueles que estivessem avançados no aprendizado da escrita (LA SALLE, 2012aLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.). Isso significava duas coisas: a primeira, que parte da educação oferecida nas Pequenas Escolas Cristãs se utilizava de instrumentos seculares para a alfabetização; e a segunda, que a língua utilizada para tal ensino era o francês e não mais o latim, como era costume nas instituições confessionais tradicionais.

Tais posicionamentos em relação ao modelo de ensino presente em suas escolas evidenciavam um perfil ideológico e institucional distinto, capaz de incomodar. Isso ocorria porque, além de uma proposta de alfabetização original, o perfil de alunos atendidos pelas Escolas Cristãs também fugia à regra. Todas as classes sociais eram acolhidas em suas escolas, apesar de os Irmãos terem como missão institucional o atendimento educacional aos filhos dos pobres e artesãos - não que não houvesse outras escolas para pobres nesse período; o que não havia eram as classes nas quais estes pudessem ser educados junto com os nobres. A novidade desagradava tanto aos Mestres Calígrafos, principal grupo responsável pelo ensino daqueles que podiam pagar por suas aulas, quanto aos párocos das igrejas, que viam o número de alunos de suas turmas diminuir conforme as escolas cristãs iam surgindo.

Essa decisão de acolher pobres e ricos na mesma escola foi uma carga muito penosa que La Salle e os primeiros Irmãos tiveram que enfrentar, praticamente durante toda a vida de La Salle, pois, por conta do acesso de todas as crianças às escolas paroquiais lassalistas, houve descontentamento, principalmente dos Mestres Calígrafos, e também dos párocos, que financiavam a abertura e manutenção de escolas em suas paróquias. As paróquias possuíam um catálogo das crianças pobres, e os Irmãos Lassalistas criaram o próprio critério de seleção dos alunos (TAGLIAVINI; PIANTKOSKI, 2014TAGLIAVINI, João V.; PIANTKOSKI, Marcelo A. João Batista de La Salle (1651-1719): um silêncio eloquente em torno do educador católico que modelou a escola moderna. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 13, n. 53, p. 16-40, 2014. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640191 . Acesso em: 20 jan. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 19).

Gradualmente as escolas se tornavam mais conhecidas e mais solicitadas pelo reino. Em menos de cinco anos, desde a fundação da primeira escola, mais sete foram fundadas por La Salle e administradas pelos Irmãos, o que exigia maior número de mestres para atender a essa demanda que estava aumentando. Como não podia contar com bons professores, tendo em vista a escassez desses profissionais e a falta de formação adequada, La Salle inaugurou, em 1686, na cidade de Reims, uma casa religiosa destinada especificamente à formação dos novos mestres, inicialmente com apenas três jovens candidatos (VALLADOLID, 2012aLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.). Até o ano de sua morte, as Escolas Cristãs estavam presentes em 27 cidades da França (NUNES, 2018NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação no Século XVII. 2. ed.Campinas: CEDET, 2018.).

A formação de novos mestres foi uma das principais contribuições de La Salle, não somente para as suas escolas, mas para a história da educação como um todo. Numa época em que a formação de professores se destinava aos sacerdotes e estes se ocupavam com as universidades, ou então em países como a Inglaterra, onde essa profissão era odiosa e servia de refúgio àqueles que fracassavam em outras funções, La Salle protagonizou na França o primeiro registro de uma escola de formação docente destinada a leigos. Além disso, num período em que o ensino era ofertado conforme as particularidades de cada indivíduo e/ou instituição que o administrasse, a profissão de professor se via desacreditada, e sua prática se resumia a uma atividade secundária.

Algumas escolas eram gratuitas, mantidas por uma paróquia, por uma municipalidade ou governo da cidade ou ainda algum benfeitor, que garantiam seus custos atendendo alunos pobres; outras eram pagas, destinadas a famílias que podiam pagar professores. [...] Com relação à realidade dos mestres da época, havia uma grande escassez de pessoas disponíveis para o ofício e aqueles que, efetivamente, atuavam no magistério não possuíam formação profissional adequada. Além disso, os mestres da época realizavam outras atividades profissionais, e não perseveravam, principalmente por ser o magistério uma atividade muito desvalorizada na sociedade. (LEUBET; PAULY; SILVA, 2016LEUBET, Ângelo E.; PAULY, Evaldo L.; SILVA, Valdir L. Contribuições de João Batista de La Salle para a constituição da escola moderna. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 4, p. 32-63, out./dez. 2016., p. 39).

O projeto de formação de mestres leigos criado por La Salle, além de ser pioneiro na história da educação, era também uma novidade naquilo que se referia ao estilo de vida consagrada, assumido por ele e pelos Irmãos. Com um formato religioso inovador, a Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs era e ainda é formada exclusivamente por leigos consagrados, ou seja, aqueles que não se ordenam sacerdotes. Esses homens, livres das funções do altar, do atendimento aos sacramentos e das visitas à comunidade, poderiam se ocupar integralmente com a sua formação acadêmica e com o trabalho nas escolas (NUNES, 2018NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação no Século XVII. 2. ed.Campinas: CEDET, 2018.).

Sem a necessidade de se preocupar com questões ligadas ao planejamento e sustentação de um lar, ou então com o dispêndio de tempo e dinheiro com aquisições de bens e planos individuais, o estilo de vida consagrada dos mestres-irmãos era um sinal das mudanças sociais e religiosas que gradualmente surgiam. A partir da profissão dos votos de castidade, pobreza e obediência, esses mestres se uniam a um ideal religioso, porém não clerical, ao mesmo tempo que se comprometiam exclusivamente com o trabalho pedagógico. Essa disposição voluntária compreendida pelo cristianismo como vocação representava um novo segmento congregacional religioso, bem como um modelo de educação com professores dedicados exclusivamente à sua profissão e formados para exercer estratégias e modalidades próprias do ensino escolar.

Sobre as lições aplicadas nas primeiras Escolas Cristãs, estas se desdobravam em nove classes que deveriam ser aprendidas pelos alunos, sendo as primeiras delas classificadas em três estágios de conhecimento. Da primeira à terceira lição, a leitura do primeiro livro era silabada; da quarta até a quinta lição, utilizando o segundo livro, era acrescentada à silabação a soletração. Já na sexta lição, com o uso do terceiro livro, aprendia-se a ler com pausas, ficando a sétima e oitava lição para a leitura do Saltério e da Civilização Cristã. Por fim, a nona lição era destinada exclusivamente a uma outra atividade: aprender a escrever (MANACORDA, 2010MANACORDA, Mário Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010.).

Esta última lição era inédita para os currículos das escolas confessionais e fora trazida pelos mestres lassalistas. Suas escolas incorporavam como parte integrante de seu currículo não somente a leitura, mas também a escrita, permitindo que o seu aprendizado ocorresse sequencialmente como última lição. Essa definição de ensino cumpria com a necessidade moderna da educação, possibilitando uma formação, nesses termos, integral e vantajosa para o sujeito que saía apto para uma “[...] aculturação religiosa e moral e uma pré-aprendizagem das profissões artesanais mercantis” (MANACORDA, 2010MANACORDA, Mário Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 282-283). Assim estruturado, esse modelo de ensino oferecia instrumentos teóricos capazes de serem úteis frente às novas exigências sociais e econômicas, permitindo que os sujeitos, sobretudo os mais pobres, tivessem acesso a saberes além do currículo proposto, bem como uma profissão futura que lhes permitisse sobreviver.

O trabalho dos Irmãos Lassalistas em suas escolas deu-se a partir dos propósitos idealizados por seu fundador e em conformidade com os ensinamentos da fé católica. Foi o que escreveu La Salle em seu testamento, ao afirmar total submissão à Igreja, tanto de sua parte quanto da dos Irmãos da Sociedade das Escolas Cristãs, que dela jamais deveriam se apartar (LA SALLE, 2012aLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.). No entanto, vê-se em seu trabalho com os pobres aquilo que fugia à regra e não se encontrava comumente nas demais escolas conduzidas por religiosos. Em outras palavras, na proposta pedagógica de La Salle, “[...] o velho e o novo se misturam de maneira singular” (MANACORDA, 2010MANACORDA, Mário Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 286). Essa característica fazia de suas escolas locais de oportunização para ascensão social.

É o caso, por exemplo, da escolha de La Salle em priorizar que a alfabetização ocorresse em francês. Fugindo à tradição presente nas escolas elementares de primeiramente ensinar o aluno a ler textos em latim e, posteriormente, na língua materna, La Salle adotou o método contrário, alterando a ordem de ensino em suas escolas. Tal posicionamento foi questionado, em 1701, por Dom Godet de Marais (1647-1709), Bispo de Chartres, que não concordava com o método de ensino dos Irmãos (VALLADOLID, 2012aLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.). Em resposta aos seus questionamentos, La Salle escreveu uma memória em favor da literatura em francês, na qual elencou suas justificativas para aderir, nos primeiros estágios de formação, ao ensino da língua materna. Um dos trechos dessa memória se apresenta da seguinte forma:

Assim sendo, eis os inconvenientes que resultam caso se inicie ensinando-lhes a leitura pelo latim: retiram-se antes de haver aprendido a ler em francês ou de saber fazê-lo corretamente. Ao deixá-la, só sabem ler imperfeitamente o latim e, em pouco tempo, esquecem o que sabiam, donde resulta que nunca saberão ler nem em latim nem em francês. Por último, o inconveniente mais pernicioso é que quase nunca aprendem a doutrina cristã (LA SALLE, 2012aLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a., p. 32).

Em seus argumentos, é possível identificar que a sua preocupação com o ensino em francês era centrada na possibilidade de permitir que, mesmo após encerrarem o ciclo da escolarização elementar, os alunos pudessem dar continuidade às práticas rituais da fé católica que lhes haviam sido ensinadas. O cuidado de La Salle em garantir que cada um dos que frequentassem as Pequenas Escolas fossem educados de acordo com os ensinamentos da fé católica era evidente em todos os seus escritos.

LA SALLE E O IDEAL DE VIDA DOS IRMÃOS E DAS ESCOLAS CRISTÃS

A começar pelo Guia das Escolas Cristãs que foi escrito por La Salle em 1702 e impresso em 1720, fica evidente como seriam as Escolas Cristãs em seu interior, conforme era o seu desejo. Nesse documento, observamos o detalhamento presente nas recomendações feitas pelo padre fundador, no intuito de que fossem fielmente cumpridas e não incorressem em erros.

O zelo por uma formação adequada de mestres-irmãos e, consequentemente, a oferta de um ensino de qualidade para a comunidade eram atenções que permeavam os objetivos de La Salle em seu trabalho e que são notórias em seu Guia. Este documento nos faz lembrar da Ratio Studiorum (1599), documento dos padres jesuítas que também trazia de maneira pormenorizada os rumos que deveria seguir a educação presente em seus colégios (FRANCA, 1952FRANCA, Leonel (S.J.) O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952.). Contudo, as indicações encontradas nos documentos lassalistas revelam os encargos com a instrução numa perspectiva ainda mais detalhada.

Podemos citar como exemplo a seguinte orientação: no Guia das Escolas Cristãs, a maneira como deveria ser realizada a tarefa do professor de, em sala de aula, molhar a pena no tinteiro. Ele prescreveu que, ao praticar tal atividade, esta deveria ser feita com discrição, a pena deveria ter molhada somente a ponta e, ao sacudi-la, nunca se o fizesse no chão. Na segunda parte do texto, vemos a defesa das virtudes do corpo: para manter os educandos em estado de graça e pureza, era dever do mestre vigiar para que evitassem o contato com meninas, não cruzassem as pernas e tampouco se tocassem por debaixo das roupas (LA SALLE, 2012bLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume III. Canoas: Unilasalle, 2012b.).

Mais que fundador de uma sociedade e de escolas de mestres-irmãos, La Salle foi responsável pela edificação do aporte teórico que as movia e lhes dava significado. A partir da condução espiritual e intelectual da qual encontramos registros nos documentos por ele escritos, ocorreu gradualmente não apenas o crescimento das Escolas Cristãs, mas também a influência do padre fundador na vida do povo francês. Assim como no século XVI os ensinamentos e valores pontuados por Erasmo de Roterdão (1466/69-1536) se tornaram populares e inspiraram o comportamento das pessoas, o mesmo ocorreu com os escritos de La Salle, que iam além das escolas e casas religiosas e se faziam conhecidos no meio do povo que os utilizava como manuais de urbanidade (ARIÈS, 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.). A obra em questão é: Regras do Decoro e da Urbanidade Cristãos. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1703 e ganhou muita popularidade, a ponto de ser reimpresso em diversas outras ocasiões.

Em vida do Fundador, esse livro teve cinco edições: 1703 (Troyes), 1708 (Paris), 1713 (Troyes?), 1715 (Ruão) e 1716 (Troyes). As duas últimas e, provavelmente, também a anterior, foram editadas em caracteres normais, o que, como já visto, significa que já transcendiam o âmbito das Escolas Cristãs (VALLADOLID, 2012bLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume III. Canoas: Unilasalle, 2012b., p. 322).

Uma das interpretações do motivo de suas obras terem repercutido positivamente na comunidade externa se dá pelo fato de que, ao invés de se ocupar com preceitos institucionais, La Salle apresentou um verdadeiro curso de etiqueta, com claras indicações de comportamento a serem seguidas em ocasiões diversas. Assim, muitas das orientações encontradas nessa obra que popularmente era lida como um manual de civilidade não se limitavam ao ambiente escolar, podendo ser exercidas em outras circunstâncias, por outras pessoas que não fossem os alunos ou os Irmãos. O gênero dos livros de civilidade era importante porque fazia vislumbrar uma possibilidade de ascensão social pelo estudo e pela leitura (ARNAUT DE TOLEDO, 2008ARNAUT DE TOLEDO, Cezar de Alencar. Civilidade, puerilidade e educação. In: MACHADO, Maria Cristina Gomes; OLIVEIRA, Terezinha. Educação na história. São Luís: UEMA, 2008. p. 209-228.).

Do levantar-se até a hora de se deitar, as roupas a serem usadas, a moda a ser seguida conforme a idade e a classe social, a maneira de se pôr, servir-se e se retirar da mesa, a higiene pessoal, os variados modos de como saudar e cumprimentar as pessoas e tantos outros pormenores estão descritos nas Regras do Decoro e da Urbanidade Cristãos, conforme vemos no trecho abaixo:

Apenas deitado, é preciso cobrir todo o corpo, fora o rosto, que sempre deve ficar descoberto. Tampouco se deve tomar postura alguma inconveniente, com a desculpa de maior comodidade, nem permitir que o pretexto de dormir melhor se sobreponha ao decoro. Não é cortes dobrar as pernas, mas deve-se estendê-las, e convém deitar-se ora de um, ora de outro lado, pois não é apropriado dormir deitado de bruços (LA SALLE, 2012bLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume III. Canoas: Unilasalle, 2012b., p. 360).

Num cerimonial completo de prescrições de civilidade, o texto ainda caracteriza o modo cortês de como um cristão deveria ser simples e atento à limpeza em seu vestir e no uso de objetos como luvas, sapatos, bengala e chapéu. Há nele orientações de como se deveria entrar numa casa a qual se visita, quais assuntos eram pertinentes de serem abordados e até mesmo como deveria ser o riso de um cristão (LA SALLE, 2012bLA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume III. Canoas: Unilasalle, 2012b.). Ariès é categórico ao afirmar que o manual de educação de La Salle se destinava mais aos pais que aos próprios alunos das escolas, isso quando levamos em consideração as orientações nele dispostas, isto é, o seu conteúdo, pois este não se referia diretamente à criança em si (ARIÈS, 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.). Isso explica o porquê de essa obra ter ido além das Escolas Cristãs e alcançado o público em geral. O sucesso da prescrição de comportamentos era sinal das profundas transformações pelas quais passava a sociedade francesa (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.).

La Salle evidenciou em seu manual de educação e civilidade um projeto de ensino aristocrático, isto é, com acentuada preocupação em reproduzir os costumes e interesses pertinentes à nobreza, da qual ele e sua família faziam parte. Os valores por ele propostos não pertenciam à realidade da grande maioria da população francesa, tampouco daqueles aos quais suas escolas atendiam. Apesar disso, seus textos eram lidos, aceitos e largamente praticados.

As Règles de la biensèance et de la civilité chrétienne, destinadas às escolas cristãs de meninos, de São João Batista de La Salle, publicadas em 1713, seriam reeditadas ao longo de todo o século XVIII e mesmo no início do século XIX: foi um livro durante muito tempo considerado clássico e cuja influência sobre os costumes foi sem dúvida considerável (ARIÈS, 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986., p. 147).

De fato, não é de se estranhar que tais valores morais tenham sido utilizados como base para o ensino ofertado nas Escolas Cristãs. Pertencer à nobreza e ser reconhecido socialmente por possuir um título, terras e prestígio era o desejo de muitos, sobretudo dos novos burgueses e comerciantes, que cada vez mais se enriqueciam com o seu trabalho (CORBELLINI, 2002CORBELLINI, Marcos Antônio. A sociedade das escolas-cristãs. França 1679 a 1719: contribuição para novos olhares sobre sua origem, 229 f. Tese (Doutorado em Educação). São Leopoldo: UNISINOS, 2002.). É compreensível que esse modelo de ensino tenha norteado todo o aspecto pedagógico presente nos documentos das Pequenas Escolas, bem como no agir de La Salle e de cada mestre-irmão.

A ação diretiva do padre fundador sobre o Instituto dos Irmãos e as escolas é incontestável, no entanto, não foi determinante. Sua educação e o legado aristocrático de sua família fizeram-no um líder religioso, mas também um intelectual de sua época. Até aqui, não haveria novidades, uma vez que La Salle nada mais foi que o reflexo da educação que recebeu ao longo de sua vida acadêmica, uma educação elitista, iniciada com os estudos elementares (1661-1667), sequenciados pela Filosofia (1667-1669) e Teologia (com início em 1669). Contudo, foi a partir da relação com os primeiros mestres das escolas, ignorantes e mal formados, como também pelo convívio com os filhos dos pobres e artesãos que ele se viu capaz de ressignificar não apenas o seu próprio projeto de vida, a ponto de renunciar ao canonicato e aos seus bens pessoais, mas remodelar tanto o arquétipo pedagógico de uma escola confessional como o eclesiástico de uma comunidade religiosa católica.

Dois "mundos" se moveram em espaços e tempos diferentes e até antagônicos e se encontraram no decorrer desse processo de criação da Sociedade das Escolas cristãs. Foram concepções de pessoa e de vida, comportamentos e atitudes relacionais, valores e práticas religiosas e sociais, posição de cada um na estrutura social, posição de cada um no interior da Sociedade nascente, concepção de educação e ensino, pessoas com características culturais diferentes, que coincidiram no tempo e no espaço e que viveram conflitos e tensões e mútua colaboração, consolidando gradualmente uma Sociedade com especificidade original e com uma identidade nova dentro do contexto social e eclesial da época (CORBELLINI, 2002CORBELLINI, Marcos Antônio. A sociedade das escolas-cristãs. França 1679 a 1719: contribuição para novos olhares sobre sua origem, 229 f. Tese (Doutorado em Educação). São Leopoldo: UNISINOS, 2002., p. 128-129).

Esse “encontro” fez das Escolas Cristãs e do formato de vida religiosa dos Irmãos um projeto reformista, no qual as necessidades dos tempos se incorporaram às tradições de uma religião e vice-versa. Desse modo, não seria correto afirmar que a proposta de ensino lassalista se limitou a uma educação cristã, pois ela foi instrumento de secularização e popularização dos saberes a partir de seus métodos de ensino. Assim como as obras de La Salle que eram destinadas inicialmente à formação de seus alunos, mas que, com o tempo, ganharam a simpatia e a adesão popular, o plano de educação promovida por ele e pelos mestres-irmãos foi além dos seus interesses evangelizadores. Como resultado de uma educação moderna e organizada, as Escolas Cristãs, ao ofertarem o aprendizado da leitura e da escrita na língua materna, concomitantemente possibilitaram autonomia para que os sujeitos buscassem novas oportunidades de emprego no comércio, na vida militar, nas finanças e na arquitetura (NUNES, 2018NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação no Século XVII. 2. ed.Campinas: CEDET, 2018.).

Junta-se a essa ideia o fato de que a ampliação do acesso à leitura e escrita aos mais pobres poderia possibilitar a formação de cidadãos mais críticos, inclusive sobre as verdades religiosas que lhes eram impostas. Foi o que não tardou a acontecer ao longo do século XVIII, não que as Pequenas Escolas tivessem sido responsáveis pelas revoltas populares que logo atingiriam o Estado e a Igreja; porém, é certo que a educação, já no século XVII à disposição do povo, era capaz de gerar novas ideias e concepções daquilo que lhes parecesse expressão da justiça e da verdade eterna. Seu projeto educacional era adequado ao projeto burguês de não separação entre os homens simplesmente em razão de seu nascimento, como era determinado no Antigo Regime. O projeto burguês de sociedade previa que os homens deveriam se diferenciar pela educação, pela formação e, posteriormente, pela propriedade (MARX, 1983MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (5 volumes).). Educar também significava, naquela época, formar e enformar o novo indivíduo, adequado à disciplina do trabalho feito coletivamente nas fábricas, que seria necessário logo a seguir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A primazia das instituições católicas de ensino na França, em meados do século XVII em diante, ocorreu em consequência da anulação do Edito de Nantes, proibindo que religiões protestantes continuassem a ser praticadas por todo o país. Consequentemente, enquanto esses grupos se rendiam às imposições reais, comunidades religiosas católicas se apropriavam desse território em diversas frentes, dentre elas a educação. Nesse cenário se consolidaram Congregações como a dos Irmãos Lassalistas, com suas Pequenas Escolas Cristãs.

A proposta apresentada por La Salle trazia em seu contexto pedagógico e estrutural práticas que se evidenciavam como inéditas em instituições de ensino confessionais. O aprendizado da leitura e da escrita em francês, a formação de leigos para o trabalho como docentes, bem como a criação de classes mistas frequentadas por todos, independentemente de sua classe social, são alguns exemplos manifestos de sua organização nos primeiros anos de fundação. Tais indicativos de mudanças geraram certos inconvenientes para as Pequenas Escolas, sobretudo o descontentamento de párocos e dos Mestres Calígrafos, que viam suas aulas cada vez mais vazias enquanto seus alunos optavam por frequentar as turmas de La Salle.

De caráter aristocrático, a educação ofertada nas escolas lassalistas priorizava um ensino moralizante e reformista, sabendo-se que tais lições não se restringiam às crianças, mas indiretamente alcançavam as suas famílias. Dessa forma, o processo de catequização lograva sucesso alcançando as camadas mais pobres, desde as novas até as antigas gerações. A abrangência do trabalho das escolas de La Salle é confirmada pela popularidade de suas Regras do Decoro e da Urbanidade Cristãos, manual de civilidade que ultrapassava o cotidiano das escolas e se introduzia na vida das pessoas comuns com ensinamentos de etiqueta necessários à edificação de um bom cristão.

Dessa forma, o trabalho de La Salle e de seus Irmãos nos primeiros anos de fundação de suas escolas pode ser compreendido como um novo ideário de educação que despontava. Vinculadas aos preceitos que correspondiam às necessidades da Coroa e da Igreja Católica no século XVII, porém dispostas a se utilizarem de novos instrumentos para promover a educação, as Pequenas Escolas guiadas pelo projeto burguês de La Salle percebiam as premências de sua época e buscavam responder às suas demandas, o que fomentaria a secularização e a necessidade da educação como instrumento principal para a sociedade do trabalho que se apresentaria mais adiante.

REFERÊNCIAS

  • AMARAL, Catarina Costa. A invenção da tolerância: política e guerras de religião na França do século XVI, 298 f. Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008.
  • ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família 2. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
  • ARNAUT DE TOLEDO, Cezar de Alencar. Civilidade, puerilidade e educação. In: MACHADO, Maria Cristina Gomes; OLIVEIRA, Terezinha. Educação na história São Luís: UEMA, 2008. p. 209-228.
  • CAMBI, Franco. História da Pedagogia São Paulo: UNESP, 1999.
  • CORBELLINI, Marcos Antônio. A sociedade das escolas-cristãs França 1679 a 1719: contribuição para novos olhares sobre sua origem, 229 f. Tese (Doutorado em Educação). São Leopoldo: UNISINOS, 2002.
  • ELIAS, Norbert. A sociedade de corte Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • FRANCA, Leonel (S.J.) O método pedagógico dos jesuítas Rio de Janeiro: Agir, 1952.
  • HORN, Pierre L.Luís XIV Coleção Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultura, 1987.
  • LA SALLE, São João Batista de. Obras Completas Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.
  • LA SALLE, São João Batista de. Obras Completas Volume III. Canoas: Unilasalle, 2012b.
  • LEUBET, Ângelo E.; PAULY, Evaldo L.; SILVA, Valdir L. Contribuições de João Batista de La Salle para a constituição da escola moderna. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 4, p. 32-63, out./dez. 2016.
  • MANACORDA, Mário Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
  • MARX, Karl. O Capital São Paulo: Abril Cultural, 1983. (5 volumes).
  • NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação no Século XVII 2. ed.Campinas: CEDET, 2018.
  • ROUSSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973.
  • STEGMANN, André. Édits de Guerre de Religion Paris: J. Vrin, 1979.
  • TAGLIAVINI, João V.; PIANTKOSKI, Marcelo A. João Batista de La Salle (1651-1719): um silêncio eloquente em torno do educador católico que modelou a escola moderna. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 13, n. 53, p. 16-40, 2014. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640191 Acesso em: 20 jan. 2021.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640191
  • VALLADOLID, José María. Introdução geral. In: LA SALLE, São João Batista de. Obras Completas Volume I. Canoas: Unilasalle, 2012a.
  • VALLADOLID, José María. Introdução geral. In: LA SALLE, São João Batista de. Obras Completas. Volume II- A. Canoas: Unilasalle, 2012b.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2022
  • Aceito
    21 Mar 2023
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antonio Carlos, 6627., 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil, Tel./Fax: (55 31) 3409-5371 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revista@fae.ufmg.br