Acessibilidade / Reportar erro

NARRATIVAS DE LICENCIANDOS EM PEDAGOGIA SOBRE A MATEMÁTICA ESCOLAR E O DESAFIO DO FORMADOR 1 1 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil - Código de Financiamento 001.

NARRATIVAS DE ESTUDIANTES EN PEDAGOGÍA SOBRE MATEMÁTICAS ESCOLARES Y EL DESAFÍO DEL FORMADOR

RESUMO:

O texto é resultado de uma pesquisa-formação, no âmbito do grupo de pesquisa Hifopem, tendo os estudos biográficos como referencial teórico-metodológico. O objetivo do artigo é analisar como os futuros docentes se apropriaram/apropriam de conceitos matemáticos ao longo de sua trajetória escolar e acadêmica, e como suas representações relacionadas à matemática escolar e a seu ensino podem influenciar a elaboração de novas representações. Os dados foram produzidos por memorial de formação, narrativas pedagógicas e transcrição das reuniões do grupo de discussão-reflexão. Realizou-se uma análise narrativa com esses dados. A pesquisa revelou indícios de que os estudantes se apropriaram/se apropriam de conceitos matemáticos, em muitos casos, de maneira sofrida. O castigo e/ou o sentimento de impotência são os mais visíveis, criando representações de uma matemática escolar gélida, de difícil acesso, que poucos poderiam aprender e que trata unicamente de cálculos. Os estudantes se distanciaram da Matemática e acreditam que não conseguem ensiná-la. As pistas deixadas pelos licenciandos revelaram o tamanho do desafio que os formadores precisam enfrentar: provocar neles a tomada de consciência dos obstáculos advindos de sua formação matemática escolar para que as dificuldades sejam objeto de reflexão, superação e (re)significação durante sua formação acadêmica.

Palavras-chave:
disciplina matemática escolar; pesquisa-formação; formação de professores; educação matemática; curso de pedagogia

RESUMEN:

El texto es resultado de una investigación-formación, en el ámbito del grupo de investigación Hifopem, con estudios biográficos como referente teórico-metodológico. El objetivo del artículo es analizar cómo los futuros docentes se han apropiado/apropiado de conceptos matemáticos a lo largo de su trayectoria escolar y académica, y cómo sus representaciones relacionadas con las matemáticas escolares y su enseñanza pueden influir en la elaboración de nuevas representaciones. Los datos fueron producidos por memorial de entrenamiento, narrativas pedagógicas y transcripción de los encuentros de los grupos de discusión-reflexión. Con estos datos se realizó un análisis narrativo. La investigación reveló evidencias de que los estudiantes se apropiaron/se apropiaron de conceptos matemáticos, en muchos casos, de forma dolorosa. El castigo y/o el sentimiento de impotencia son los más visibles, creando representaciones de una matemática escolar fría, de difícil acceso, que pocos pueden aprender y que sólo se ocupa de cálculos. Los estudiantes se distanciaron de las Matemáticas y creen que no pueden enseñarlas. Las pistas dejadas por los estudiantes revelaron la magnitud del desafío que deben afrontar los formadores: sensibilizarlos sobre los obstáculos derivados de su formación matemática escolar para que las dificultades sean objeto de reflexión, superación y (re)significación durante su entrenamiento académico.

Palabras clave:
asignatura matemática escolar; investigación-formación; formación de profesores; educación matemática; curso de pedagogía

ABSTRACT:

The article presents parts of a research that aims to analyze how future teachers have learned mathematical concepts throughout their school and academic trajectory and how their representations related to school mathematics and its teaching can influence the elaboration of new representations. The text is the result of research-teacher education carried out by Hifopem research group, which used the biographical studies as the theoretical-methodological reference. Data were produced using memorials regarding education, pedagogical narratives, and transcription of the discussion-reflection group meetings. A narrative analysis was performed with these data. The research revealed evidence that students have often learned mathematical concepts painfully. Punishment and/or the feeling of impotence are the most visible and create representations of cold school mathematics, which is difficult to access, can only be learned by a few people, and only deals with calculations. Students have distanced themselves from Mathematics and believe they are not capable of teaching it. The clues given by the undergraduates have revealed the size of the challenge faced by educators: to make them aware of the obstacles arising from their school mathematics education to make these difficulties object of reflection, to be overcome and (re)signified during their academic education.

Keywords:
school mathematics discipline; research-teacher education; teacher education; mathematics education; pedagogy course

INTRODUÇÃO

Este texto é um recorte de uma pesquisa de doutorado (MOURA, 2019MOURA, Jónata Ferreira; NACARATO, Adair Mendes. Narrativas revelando projetos de si na trajetória de formação docente. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, Salvador, v. 4, n. 12, p. 1125-1140, set./dez. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/6019 . Acessado em:15 nov. 2020.
https://www.revistas.uneb.br/index.php/r...
) que teve como foco a matemática escolar e a formação acadêmica2 2 Acreditamos que o termo formação inicial não seja plausível para determinar o início da formação de um profissional da Educação, haja vista seus anos de escolarização básica serem sua primeira formação. Assim, entendemos que um curso em nível superior é mais uma das etapas da formação desse profissional, por isso usamos a expressão formação acadêmica. de futuros pedagogos de uma universidade federal do Nordeste brasileiro. O objetivo do artigo é analisar como os futuros docentes se apropriaram/apropriam de conceitos matemáticos ao longo de sua trajetória escolar e acadêmica, e como suas representações relacionadas à matemática escolar e a seu ensino podem influenciar a elaboração de novas representações.

Os dados foram produzidos pelo primeiro autor, aqui nomeado como professor-pesquisador, docente da turma de um curso de Pedagogia, e analisados com a ajuda da segunda autora. Realizamos uma pesquisa-formação (JOSSO, 2010aJOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Tradução Albino Pozzer. Revisão Maria Helena Menna Barreto Abrahão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010a., 2010bJOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução José Claudino e Júlia Ferreira. Revisão científica Maria da Conceição Passeggi e Marie-Christine Josso. 2. ed. rev. e ampl. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010b.) que tem os estudos biográficos como referencial teórico-metodológico. Utilizamos o memorial de formação (PRADO; SOLIGO, 2007PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura. Memorial de formação: quando as memórias narram a história da formação... In: PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura (org.). Porque escrever é fazer história: revelações, subversões, superações. Campinas: Alínea, 2007. p. 45-59.), as narrativas pedagógicas (PRADO; FERREIRA; FERNANDES, 2011UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia. São Luís: UFMA, 2007.) e as transcrições das reuniões do grupo de discussão-reflexão como dispositivos para a produção dos dados. Além disso, fazemos uma análise narrativa (BOLÍVAR, 2012BOLÍVAR, Antonio. Dimensiones epistemológicas y metodológicas de la investigación (auto)biográfica. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; PASSEGGI, Maria da Conceição (org.). Dimensões epistemológicas e metodológicas de pesquisa (auto)biográfica. Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNER, 2012. p. 27-70. t. I.).

Nas seções que seguem, apresentamos a metodologia da pesquisa, além de uma breve discussão sobre a narrativa e a disciplina matemática escolar. Depois, analisamos as narrativas dos estudantes sobre a matemática escolar e o desafio do formador diante delas. Por fim, expomos nossas considerações sobre a investigação.

METODOLOGIA DA PESQUISA

A investigação que gerou este artigo é do tipo pesquisa-formação3 2 We believe that the term initial education (pre-service) is not plausible to determine the beginning of the formation of an education professional, given that their years of basic education are their first formation. Therefore, we understand that a higher education course is another step in the education of this professional, which is why we use the expression academic education. , a qual concebe que os sujeitos envolvidos estão em aprendizagem e, por meio da experiência vivida, tomam consciência do que são e do papel que podem exercer na sociedade. No entendimento de Josso (2010aJOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Tradução Albino Pozzer. Revisão Maria Helena Menna Barreto Abrahão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010a., 2010bJOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução José Claudino e Júlia Ferreira. Revisão científica Maria da Conceição Passeggi e Marie-Christine Josso. 2. ed. rev. e ampl. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010b.), a pesquisa-formação favorece o despertar do pesquisador e dos sujeitos envolvidos na pesquisa em relação a suas fragilidades, a suas intencionalidades e às (in)constâncias dos desejos e dos projetos de vida.

Na pesquisa-formação, as experiências ao longo da vida das pessoas ajudam a construir sua identidade e sua subjetividade, porque as histórias de vida são encaradas como projetos de conhecimento, como construção e invenção de si, visto que a formação supõe transformação e mudança, subentende o movimento de olhar para si através do outro e a partir das escritas de si, em um trabalho individual e coletivo. Esse cenário é entendido por Josso (2010bJOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução José Claudino e Júlia Ferreira. Revisão científica Maria da Conceição Passeggi e Marie-Christine Josso. 2. ed. rev. e ampl. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010b., p. 71) como pesquisa-formação, “porque a atividade de pesquisa contribui para a formação dos participantes no plano das aprendizagens reflexivas e interpretativas e toma lugar, no seu percurso de vida, como um momento de questionamento retroativo e prospectivo sobre seu(s) projeto(s) de vida e sua(s) demanda(s) de formação atual.”

Os dados foram produzidos com 11 discentes de uma universidade federal do Nordeste brasileiro durante os 2 últimos anos do curso de Pedagogia que realizavam. Os estudantes foram acompanhados nas disciplinas de Fundamentos e Metodologias de Ensino de Matemática, Fundamentos e Metodologias de Ensino de Ciências, Estágio em Docência de Disciplinas Pedagógicas (na educação infantil) e Estágio em Magistério de Anos Iniciais I e II do Ensino Fundamental. Para a produção dos dados, utilizamos o memorial de formação, as narrativas pedagógicas e a transcrição das reuniões do grupo de discussão-reflexão.

Os memoriais de formação são considerados um gênero textual inscrito no conjunto de trabalhos das Ciências Sociais e Humanas que indica as histórias de vida como objeto de investigação de muitas áreas a partir dos anos 1970. Em nosso caso, eles são fontes ricas de testemunhos dos licenciandos em Pedagogia inseridos em situações em que pensam e falam sobre suas experiências durante a realização de seu curso acadêmico.

Segundo Prado e Soligo (2007PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura. Memorial de formação: quando as memórias narram a história da formação... In: PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura (org.). Porque escrever é fazer história: revelações, subversões, superações. Campinas: Alínea, 2007. p. 45-59.), o memorial de formação é um gênero textual que comporta o discurso narrativo, descritivo e argumentativo, embora predomine o discurso narrativo. Ele é circunstanciado e analítico bem como trata do processo de formação do sujeito narrador em determinado período. Por isso, é fundamental o uso das narrativas para compor esse material.

As narrativas pedagógicas, intimamente relacionadas aos memoriais de formação, possuem aspectos distintos destes, porque se dedicam a temas curtos sobre um lugar da formação do sujeito. Podem tratar somente dos primeiros anos de escolarização, de um curso específico realizado ou, ainda, de algum momento da formação acadêmica que o sujeito experienciou. Para Prado, Ferreira e Fernandes (2011PRADO, Guilherme do Val Toledo; FERREIRA, Cláudia Roberta; FERNANDES, Carla Helena. Narrativa pedagógica e memoriais de formação: escrita dos profissionais da educação?Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 12, n. 26, p. 143-153, set./dez. 2011. Disponível em:Disponível em:https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24216 . Acesso em: 15 dez. 2018.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, p. 145), as narrativas pedagógicas são “textos predominantemente narrativos e autobiográficos, escritos para compartilhar lições aprendidas a partir da experiência, da reflexão sobre a experiência, da observação da prática dos pares, da discussão coletiva, da leitura, do estudo e da pesquisa.”

Depois dos dados produzidos, realizamos uma análise narrativa. Esse tipo de análise dialoga com pesquisas biográficas, pois o trabalho do pesquisador é configurar os elementos dos dados em uma história que os unifica, dar significado e sentido a eles, com o objetivo de expressar de modo autêntico a vida individual, sem manipular a voz dos sujeitos da investigação.

Uma das principais características desse tipo de análise de dados, segundo Bolívar (2012BOLÍVAR, Antonio. Dimensiones epistemológicas y metodológicas de la investigación (auto)biográfica. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; PASSEGGI, Maria da Conceição (org.). Dimensões epistemológicas e metodológicas de pesquisa (auto)biográfica. Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNER, 2012. p. 27-70. t. I., p. 42, tradução nossa), é apresentar “a experiência humana concreta como uma descrição das intenções mediante uma sequência de eventos em tempos e lugares na qual os relatos biográfico-narrativos são os meios privilegiados de conhecimento/investigação.”4 4 “La experiencia humana concreta como una descripción de las intenciones, mediante una secuencia de eventos en tiempos y lugares, en donde los relatos biográfico-narrativos son los medios privilegiados de conocimiento/investigación.” Ao olhar para os textos dos 11 estudantes que aceitaram participar desta pesquisa, tivemos a difícil tarefa de (re)ler as narrativas e analisar até que ponto elas são compreensíveis para nós, levando em consideração o contexto temporal e espacial dos narradores e nos concentrando nas atitudes, nos sentimentos e nas decisões que eles expressam nas narrativas.

Neutralidade não existe na análise narrativa. Tivemos a difícil tarefa da vigilância epistemológica para não silenciar as vozes dos narradores, muito menos usá-las como uma simples transcrição de dados para justificar ou defender nossas ideias, porque - como alertam Bolívar, Domingo e Fernández (2001BOLÍVAR, Antonio; DOMINGO, Jesús; FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfica-narrativa en educación: enfoque y metodología. Madrid: La Muralia, 2001., p. 114, tradução nossa) - “o assunto está em não sacralizar os relatos, tampouco assimilá-los aos tradicionais modos paradigmáticos de conhecer.”5 5 “el asunto se juega entre no sacralizar los relatos, ni tampoco asimilarlos a tradicionales modos paradigmáticos de conocer.”

Por isso, na análise narrativa, o interesse não está em olhar as histórias de vida e formação de cada um dos 11 estudantes e depois generalizá-las para criar categorias. O foco está em ver as pertinências dos relatos dentro do espaço-tempo e do meio sociocultural dos quais os discentes fazem parte para, então, criar uma narrativa do grupo, uma vez que os sujeitos desta pesquisa pertencem a um grupo com condições sociais específicas: estudantes de um curso de Pedagogia de uma universidade federal do nordeste brasileiro.

Para isso, construímos unidades integradas de significado (BOLÍVAR, 2012BOLÍVAR, Antonio. Dimensiones epistemológicas y metodológicas de la investigación (auto)biográfica. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; PASSEGGI, Maria da Conceição (org.). Dimensões epistemológicas e metodológicas de pesquisa (auto)biográfica. Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNER, 2012. p. 27-70. t. I.), pois o importante na análise narrativa são os mundos vividos pelos sujeitos da pesquisa, os sentidos singulares que expressam e suas lógicas particulares de argumentação impressas em suas narrativas (BOLÍVAR; DOMINGO; FERNÁNDEZ, 2001BOLÍVAR, Antonio; DOMINGO, Jesús; FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfica-narrativa en educación: enfoque y metodología. Madrid: La Muralia, 2001.). Dentre as unidades integradas de significado, trazemos para este artigo a que trata das rememorações das aulas da matemática escolar, das aulas de Fundamentos e Metodologias de Ensino de Matemática e dos estágios na formação acadêmica.

A seguir, apresentamos uma breve discussão sobre a narrativa e a disciplina matemática escolar. Depois, analisamos os depoimentos dos 11 estudantes da investigação sobre a matemática escolar e o desafio do formador diante dela.

A NARRATIVA E A DISCIPLINA MATEMÁTICA ESCOLAR

A narrativa é uma forma rudimentar de comunicação humana; por meio dela, as pessoas contam suas histórias, lembram-se de suas experiências, encontram possíveis explicações para elas. Com a narrativa, as pessoas rememoram o que aconteceu e atribuem sentido à experiência, uma vez que narrar é a forma elementar de comunicação humana. Bolívar, Domingo e Fernández (2001BOLÍVAR, Antonio; DOMINGO, Jesús; FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfica-narrativa en educación: enfoque y metodología. Madrid: La Muralia, 2001.) asseveram que uma das tarefas da narrativa é ajudar o humano a melhorar o que sabe e não prescrever o que tenha que fazer, contribuindo na compreensão, na análise e na interpretação dos sucessos particulares. Olhando para o ensino, a narrativa rompe com a concepção de racionalidade técnica, dirigindo-se à natureza contextual, peculiar e complexa dos processos educativos, tendo importância o que os docentes pensam nesse processo, que sempre inclui, além dos aspectos técnicos, dimensões morais e éticas, emotivas e políticas.

Tratando das características de uma narrativa, Bruner (1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.) nos ajuda a pensar dizendo que ela é diacrônica. Esse traço é regido pelo tempo humano, e não pelo tempo do relógio, ou seja, “é o tempo cuja significação é determinada pelo significado atribuído aos eventos em seu próprio ritmo.” (BRUNER, 1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991., p. 6). Nele, também há particularidade, vínculos de estados intencionais; por isso, o foco está na interpretação, a qual “está relacionada com as razões das coisas acontecerem e não com suas causas.” (BRUNER, 1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991., p. 7). Ademais, nessa construção, vemos a “composicionalidade” hermenêutica, como diz Bruner (1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.), de um modo interpretativo de processar conhecimento ao contar uma história e ao compreendê-la como uma história. Percebemos também: canonicidade e violação; referencialidade, relacionada à verossimilhança que constitui as narrativas, e não à verificabilidade, como sugere a tradição racionalista ou empirista; genericidade; normatividade, que é a condição fundadora da narrativa, pois viola a expectativa convencional de discurso, uma vez que “muda com as preocupações do momento e das circunstâncias que cercam sua produção” (BRUNER, 1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991., p. 15); sensibilidade de contexto e negociabilidade; e acréscimo narrativo, que cria “algo bastante variado chamado de ‘cultura’ ou ‘história’ ou, mais livremente, ‘tradição’.” (BRUNER, 1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991., p. 17).

Entendendo essas características como uma expressividade do humano, Delory-Momberger (2006) afirma que o sujeito se institui no discurso, compreendendo-se como um projeto de si mesmo. Isso é possível devido à narrativa, que dá forma à vivência e à experiência das pessoas, por isso “é a narrativa que faz de nós o próprio personagem de nossa vida, é ela enfim que dá uma história à nossa vida: nós não fazemos a narrativa de nossa vida porque nós temos uma história; nós temos uma história porque nós fazemos a narrativa de nossa vida.” (DELORY-MOMBERGER, 2006DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, maio/ago. 2006. Disponível em:Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a11v32n2.pdf . Acesso em: 28 set. 2014.
http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a11v32...
, p. 363, grifos da autora).

Comungando com a ideia de Delory-Momberger (2006)DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, maio/ago. 2006. Disponível em:Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a11v32n2.pdf . Acesso em: 28 set. 2014.
http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a11v32...
, acreditamos que a narrativa reúne, organiza e aborda de modo temático as ocorrências da existência do humano; dá sentido e significado a uma vivência multiforme, heterogênea, polissêmica. Assim, compreendemos as histórias de vida e formação como metodologia de pesquisa-formação, isto é, como metodologia em que a pessoa é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito da formação, baseando-nos na descoberta e na valorização da singularidade do sujeito da formação, o qual é singular-plural, como diz Josso (2010aJOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Tradução Albino Pozzer. Revisão Maria Helena Menna Barreto Abrahão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010a., 2010bBRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.). É o sujeito que está sempre se vendo a partir de si e dos outros, com os outros e na interação com os outros. Com isso, constitui-se um movimento em que as narrativas alinham e revelam os enunciados e sentidos que o narrador dá para sua história de vida e formação. Ademais, como afirmam Moura e Nacarato (2019MOURA, Jónata Ferreira. Pesquisa-formação: marcas, resistências e apropriações reveladas pela escrita de si no processo de formação acadêmica do estudante de Pedagogia que ensina(rá) Matemática. 2019. 228f. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade São Francisco, Itatiba, 2019.), pelas narrativas, podemos compreender os projetos de desenvolvimento ou mudança futura das pessoas. A história de vida e formação do sujeito pode revelar muitas marcas; destacamos a marca da matemática escolar, que pode ser desvendada pela narrativa.

A matemática escolar, como a conhecemos hoje, surgiu no Brasil com as reformas de Francisco Campos (n.º 19 890, de 18 de abril de 1931) e Gustavo Capanema (n.º 4 244, de 9 de abril de 1942). E a figura que teve forte influência na elaboração dos programas da matemática escolar nessas reformas foi o engenheiro, intelectual, educador matemático e diretor do Colégio Pedro II, Euclides de Medeiros Guimarães Roxo (1890-1950), como nos esclarece Carvalho (2004CARVALHO, João Bosco Pitombeira de. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). Euclides Roxo e a modernização da matemática no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004. p. 85-149., p. 120):

A posição de Euclides Roxo, diretor do Colégio Pedro II, ex-officio, conferia-lhe um papel destacado, garantindo-lhe a posição de presidente da comissão encarregada de elaborar os programas de matemática na Reforma Campos. Tempos depois, embora afastado da diretoria do Colégio Pedro II, desempenhou papel decisivo na Reforma Capanema.

O educador matemático incorporou numa só disciplina a Aritmética, a Álgebra e a Geometria, até então ensinadas em separado. Essas transformações foram inspiradas pelo movimento internacional de reforma da Matemática, dirigido pelo matemático alemão Felix Klein (1849-1925), que circulava em muitos países europeus. Além disso, Roxo apropriou-se das ideias do matemático e filósofo francês Henri Poincaré (1854-1912), defensor da filosofia intuicionista, para fundamentar suas propostas de renovação do ensino da Matemática, adotadas pela reforma Francisco Campos (CARVALHO, 2004CARVALHO, João Bosco Pitombeira de. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). Euclides Roxo e a modernização da matemática no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004. p. 85-149.; DUARTE, 2019DUARTE, Aparecida Rodrigues Silva. Euclides Roxo e a Proposta Modernizadora do Ensino da Matemática. Com a Palavra o Professor, Vitória da Conquista, v. 4, n. 8, p. 300-317, jan./abr., 2019. Disponível em: Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/54 . Acesso em:15 ago. 2021.
http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP...
). A reforma Francisco Campos - ao incorporar aspectos próprios da corrente filosófica do intuicionismo, no que se refere ao ensino da Matemática, que não estavam presentes no ensino tradicional, mas foram propostos pelo professor Euclides Roxo, até então colocados em prática no Colégio Pedro II - fez surgir discussões generalizadas na sociedade brasileira. Contudo, a partir da reforma, “passamos a ter apenas a disciplina matemática, ao invés da clássica separação em três ramos (aritmética, álgebra e geometria).” (DUARTE, 2019DUARTE, Aparecida Rodrigues Silva. Euclides Roxo e a Proposta Modernizadora do Ensino da Matemática. Com a Palavra o Professor, Vitória da Conquista, v. 4, n. 8, p. 300-317, jan./abr., 2019. Disponível em: Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/54 . Acesso em:15 ago. 2021.
http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP...
, p. 314).

Nesse ínterim, notamos uma relação com o tempo ao tratarmos da disciplina escolar. Há uma ascensão da qualidade do ensino quando este é projetado para o futuro. Associados a isso, termos como evolução e progresso são recorrentes nas defesas de Euclides Roxo. Porém, percebemos a ação dos sujeitos na inscrição das descontinuidades que mar cam a relação entre presente e passado, compreendendo o presente como reinvenção das tradições, como lembra o historiador Eric Hobsbawm (2020HOBSBAWM, Eric J. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições. Tradução Celina Cardim Cavalcane. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 7-24. (Coleção Pensamento Crítico)., p. 8):

Por “tradição reinventada” entende-se um conjunto de práticas, nor malmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, auto maticamente; uma continuidade em relação ao passado.

Nessa perspectiva, encontramos, abertamente, um conjunto de normas e práticas a ensinar ainda presente na sociedade em geral que inclui uma visão, partilhada por muitos professores que ensinam matemática escolar, de que essa disciplina é um saber para poucos, para aqueles que nascem com o dom para a Matemática. Essas tradições - mesmo afetadas pela ideia de evolução, progresso e novas tendências pedagógicas - não deixam de existir e não perdem sua importância, como a velha e antiga tabuada, um dispositivo constantemente (re)inventado pelos professores que ensinam matemática escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental, mas que não perde sua invariabilidade, sendo considerada, por muitos professores e responsáveis de estudantes, necessária para estes aprenderem as quatro operações básicas. Ou seja, o uso da tabuada não é uma simples convenção ou rotina pragmática; como tradição no ensino da matemática escolar, “é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição.” (HOBSBAWM, 2020HOBSBAWM, Eric J. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições. Tradução Celina Cardim Cavalcane. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 7-24. (Coleção Pensamento Crítico)., p. 11). Por isso, é importante conhecer e com preender a história das disciplinas escolares, “criações espontâneas e originais do sistema escolar” (CHERVEL, 1990 CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, v. 2, p. 177-229, 1990., p. 184), o qual “forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global.” (CHERVEL, 1990MOURA, Jónata Ferreira; NACARATO, Adair Mendes. Narrativas revelando projetos de si na trajetória de formação docente. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, Salvador, v. 4, n. 12, p. 1125-1140, set./dez. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/6019 . Acessado em:15 nov. 2020.
https://www.revistas.uneb.br/index.php/r...
, p. 184). Há outro diferencial: as disciplinas escolares possuem seus próprios conteúdos, que

são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer à sua própria história. (CHERVEL, 1990 CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, v. 2, p. 177-229, 1990., p. 180)

Por meio de seus próprios conteúdos, as disciplinas escolares ganham forma e disciplinam corpos e mentes; elas constituem, duplamente: produto histórico do trabalho escolar e dispositivo de trabalho pedagógico. Ou seja, toda disciplina escolar “representa uma combinação, em proporções variáveis, de um ensino de exposição, de exercícios de práticas de incitação e de motivação e de um aparato de testes, provas e exames que lhes dão legitimidade e conformação.” (CHERVEL, 1990 CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, v. 2, p. 177-229, 1990., p. 207). Trata-se de uma verdadeira cultura escolar.

Para Viñao Frago (2007VIÑAO FRAGO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares e reformas. Odivelas: Edições Pedago, 2007., p. 87), “a cultura escolar seria, em síntese [plural], algo que permanece e dura; algo que as sucessivas reformas só arranham ao de leve, que a elas sobrevive, e que constitui um sedimento formado ao longo do tempo.” Assim, podemos falar de culturas de aula de matemática escolar, entendendo que cada docente que ensina essa disciplina possui sua própria cultura e característica peculiar; entretanto, elas revelam verossimilhanças de uma comunidade de professores que ensinam matemática escolar. Então, compreendemos como importante, para pensar essas culturas, a escrita de narrativas, tomando a experiência como caminho desencadeador da rememoração, de modo a estimular o exercício do pensar para ajudar a narrar (de modo oral ou escrito), o do narrar para desencadear uma reflexão que sacuda nossas tensões, nossos sentimentos mais escondidos, e a tomada de consciência. Ao lembrarmos das características de uma narrativa, propostas por Bruner (1991BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.), podemos dizer que o uso dela é potente para analisar como licenciandos se apropriaram, ou se apropriam, de conceitos matemáticos ao longo de sua trajetória escolar e acadêmica e como suas representações, relacionadas à matemática escolar e a seu ensino, podem influenciar na elaboração de novas representações.

Nas narrativas dos 11 estudantes, sujeitos desta pesquisa, há elementos que podemos identificar como constituintes de culturas de aula de matemática escolar. Afirmamos isso porque também dialogamos com Julia (2001JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001. Disponível em:Disponível em:https://core.ac.uk/download/pdf/37742506.pdf . Acesso em: 15 jul. 2013.
https://core.ac.uk/download/pdf/37742506...
, p. 10, grifos do autor), que assevera que a cultura escolar é

um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

Para a matemática escolar, esses elementos, desde sua existência, fazem dela uma disciplina considerada de grande utilidade na vida dos cidadãos; sua estrutura curricular sofre poucas modificações; e a influência das tendências pedagógicas é quase nula, mesmo com o impacto da psicologização, considerando o entendimento da Matemática como uma ciência morta, a-histórica, pronta e acabada. Isso impacta a cristalização de que aprender matemática escolar não é tarefa das mais fáceis e agradáveis. Desse modo, muitas expressões (a Matemática é difícil, a Matemática é chata, eu não consigo entender, tenho horror à Matemática, ela é o bicho papão da escola) frequentemente enunciadas na escola ou fora dela revelam certo pessimismo diante do ensino e da aprendizagem dessa disciplina escolar. Isso pode ser uma barreira não só para o trabalho do professor da Educação Básica, mas também para o professor formador de cursos de licenciaturas em que os acadêmicos poderão, ao assumir a docência, ensinar matemática escolar.

Na seção seguinte, trazemos as narrativas dos sujeitos desta pesquisa. Revelamos marcas da matemática escolar e o desafio do formador de futuros docentes que ensinarão essa disciplina na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

NARRATIVAS DE LICENCIANDOS EM PEDAGOGIA SOBRE A MATEMÁTICA ESCOLAR E O DESAFIO DO FORMADOR

Ao nos referirmos às marcas da matemática escolar, dialogamos com Dominicé (2010DOMINICÉ, Pierre. O processo de formação de alguns dos seus componentes relacionais. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias(org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. p. 83-95. (Coleção Pesquisa (auto)biográfica ∞ Educação. Clássicos das Histórias de Vida).), que as entende como aquelas que carregamos conosco. Algumas são deixadas por conhecidos, instituições, figuras importantes em nossas vidas e/ou familiares; outras são impressas por nós mesmos, uma vez que o processo de formação tem semelhanças com o de socialização: ambos se embasam em relações. As marcas ocupam um lugar importante na narrativa e na formação. Assim, entendemos que muitas representações sobre a matemática escolar que estudantes de licenciaturas possuem são provenientes de marcas impressas, durante suas trajetórias estudantis, por profissionais que ensinam essa disciplina na escola básica. Entendemos ainda que essas marcas, quando são bloqueios, são desafios para os formadores; por isso, vemos como plausível esta afirmação de Nacarato, Passos e Carvalho (2004NACARATO, Adair Mendes; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion; CARVALHO, Dione Lucchesi de. Os graduandos em pedagogia e suas filosofias pessoais frente à matemática e seu ensino. Zetetiké, Campinas, v. 12, n. 21, p. 9-33, jan./jun. 2004. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/zetetike/article/view/8646963/13864 . Acesso em:10 jul. 2013.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 10):

Um dos grandes desafios para os formadores de professores que ensinam ou ensinarão Matemática - graduandos da Pedagogia - não reside apenas em romper barreiras e bloqueios que estes trazem de sua formação matemática da Escola Básica, mas, principalmente, em provocar a tomada de consciência desses fatos, trazendo-os à tona para que possam ser objeto de reflexão, superação e (re)significação.

Essa tomada de consciência sobre a qual escrevem Nacarato, Passos e Carvalho (2004NACARATO, Adair Mendes; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion; CARVALHO, Dione Lucchesi de. Os graduandos em pedagogia e suas filosofias pessoais frente à matemática e seu ensino. Zetetiké, Campinas, v. 12, n. 21, p. 9-33, jan./jun. 2004. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/zetetike/article/view/8646963/13864 . Acesso em:10 jul. 2013.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
) foi o desafio que o professor-pesquisador tomou para si no processo de formação dos 11 estudantes de um curso de Pedagogia de uma universidade federal do Nordeste brasileiro. Um dos momentos de interação e discussão ocorreu na disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática, cuja ementa indica o que deve ser ensinado:

O conteúdo de Matemática nos currículos da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Estudo e análise de propostas curriculares oficiais, em nível nacional, estadual e municipal. A relação conteúdo-forma no ensino de matemática. Fundamentação psicológica do ensino de números e operações; espaço e forma, grandezas e medidas e tratamento da informação a partir da linguagem matemática e sua relação com o cotidiano do aluno, na resolução de problemas. Procedimentos teórico-metodológicos com base em tendências, teorias e princípios matemáticos pertinentes ao desenvolvimento de práticas pedagógicas interdisciplinares. Análise e utilização de recursos didáticos e procedimentos de avaliação específicos no campo da educação matemática. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO, 2007UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia. São Luís: UFMA, 2007., p. 63)

Tentamos usar como carro-chefe o ensino de números e operações, espaço e forma, grandezas e medidas, e tratamento da informação para discutir as demais temáticas impostas pela ementa. Confessamos que não foi nada fácil, mas, pelas narrativas dos estudantes, reorganizávamo-nos, buscando caminhos e alternativas que nos ajudassem nas discussões em sala de aula sobre os temas do ementário.

Os estudantes que fizeram parte desta investigação cederam seus nomes verdadeiros, via autorização expressa por eles no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Destacamos que, na pesquisa biográfica, ainda mais a que utiliza memoriais de formação, não faz sentido usar pseudônimos para nomear os sujeitos, a não ser que a revelação dos nomes se constitua em risco real a sua integridade, ou se há algum aspecto jurídico que impeça a divulgação, o que não foi o caso nesta pesquisa. Pelo contrário, as características são frutos das escritas de si do memorial de formação que eles construíram, suas escritas revelam suas identidades, suas marcas pessoais e o modo como eles querem que os outros os vejam. No tipo de pesquisa que realizamos, o ser humano é sujeito da cultura, da história e do conhecimento; as identidades dos sujeitos são únicas e intransferíveis, seus nomes identificam o que eles querem que saibamos deles (BOLÍVAR; DOMINGO; FERNÃNDEZ, 2001BOLÍVAR, Antonio; DOMINGO, Jesús; FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfica-narrativa en educación: enfoque y metodología. Madrid: La Muralia, 2001.). Consequentemente, não podemos deixá-los ausentes, temos de proporcionar a eles o reconhecimento no texto que é escrito sobre eles e em suas histórias para que se possa ler a escrita feita com base em, e a partir de, suas narrativas, por isso utilizamos os nomes verdadeiros dos 11 estudantes.

Os licenciandos são: Camila, Cíntia, Daniel, Hilsaneide, Keiliane, Luciana C., Luciana N., Patrícia, Vanda, Raquel e Teresinha. Suas histórias de vida se cruzam com a do curso de Pedagogia da universidade em que estudaram. Esses universitários fazem a narrativa de suas vidas, por isso têm uma história para contar, recheada de marcas, inconsistências, desafios e vitórias. Tais narrativas mostram um corpo que sente, que olha, que cria uma postura a partir de si ou dos outros, que tem fazeres e dizeres, um corpo em formação.

A seguir, organizamos as narrativas em duas subseções. A primeira revela as marcas deixadas pela escolarização básica, com destaque para a tabuada. A segunda se refere às possíveis significações produzidas no curso de Pedagogia. Em cada uma delas, são problematizados os desafios para o formador.

Marcas da escolarização básica: a tabuada em questão

Ao propormos aos estudantes que escrevessem um memorial de formação durante as disciplinas Fundamentos e Metodologias de Ensino de Matemática, Fundamentos e Metodologias de Ensino de Ciências, Estágio em Docência de Disciplinas Pedagógicas (na educação infantil) e Estágio em Magistério de Anos Iniciais I e II do Ensino Fundamental, encontramos muitas marcas impressas em seus corpos que se transformaram em desafios para o formador. A primeira é narrada por Patrícia, uma estudante de 23 anos de idade, na época, que tenta associar sua escolha pelo curso de Pedagogia à fuga da área das Ciências Exatas:

Até então minha única experiência com a área de exatas era uma experiência tradicionalista. Na verdade, recordo-me que, quando era criança, eu fazia pequenas contas usando os dedos e nem isso podia dentro da sala, as respostas deveriam estar na ponta da língua. Muitos dos meus atuais colegas de faculdade disseram que também não tiveram uma boa experiência e por isso não escolheriam um curso na área de exatas, pois não possuíam afinidade com a mesma. Lembro-me também que as tarefas eram aquelas com cheiro de álcool ou tarefas no livro, somente continhas e problemas, que na realidade nunca me interessaram pela forma mecânica que foi ensinada a mim. (PATRÍCIA, MF6 6 Memorial de Formação. , 2017)

A proibição do uso do corpo ou de parte dele para auxiliar nas tarefas era muito comum para diversos professores que ensinavam matemática escolar, talvez ainda seja para muitos outros. Patrícia, que nasceu no final dos anos de 1990, deve ter ingressado nos primeiros anos do Ensino Fundamental em 2002, pois estaria com 7 anos de idade. Surpreende-nos que, depois de tantas reformas curriculares que sugiram nos anos de 1980 e 1990, houvesse proibição em usar os dedos como subsídio nas aulas de matemática escolar. Ao mesmo tempo, lembramo-nos da ideia de tradição proposta por Hobsbawm (2020HOBSBAWM, Eric J. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições. Tradução Celina Cardim Cavalcane. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 7-24. (Coleção Pensamento Crítico).), associada à cultura escolar defendida por Julia (2001JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001. Disponível em:Disponível em:https://core.ac.uk/download/pdf/37742506.pdf . Acesso em: 15 jul. 2013.
https://core.ac.uk/download/pdf/37742506...
), principalmente da ideia de normas que determinam conhecimentos a ensinar e comportamentos (não usar os dedos) a inculcar. Então, a tradição do ensino de matemática escolar, expressa na narrativa da estudante, é resistente.

Segundo Patrícia, muitos colegas disseram também não ter lembranças de uma boa experiência com a matemática escolar e, por isso, não escolheriam um curso na área de Exatas. Esse é o caso de Teresinha. Em seu memorial, ela narra duas experiências que a marcaram profundamente. Depois, revela o que conseguiu fazer com aquilo que fizeram com ela durante seu Ensino Fundamental, em especial nas aulas de matemática escolar. No excerto a seguir, ela narra uma experiência que teve e sua relação com o professor que lhe ensinou matemática escolar:

Lembro que, numa dessas provas [ela cita uma avaliação oral com a tabuada], errei a multiplicação 9 x 6; para meu azar, quem fez a pergunta havia sido meu irmão, com quem eu sempre levava a melhor na escola e fora dela. Então, meu irmão resolveu se vingar; e no final, ainda fiquei de castigo por não ter acertado a pergunta. Terminada a aula, o professor liberou todos os alunos, e ficamos só eu e ele na sala. Passava do meio-dia, e eu continuava lá, sem almoço, nem merenda; ele queria que eu estudasse mais e mais, só que não tinha mais concentração, estava com fome; e ele, para mostrar que eu precisava ser castigada, não me liberava [...]. Desse dia em diante, passei a odiá-lo, minha admiração por ele foi água abaixo. Com isso, a disciplina de Matemática teve o mesmo status que ele: também passei a odiá-la. Para mim, aquela punição foi totalmente desnecessária. Entendo que errar é humano, e o papel do professor é ensinar e orientar. (TERESINHA, MF, 2017)

Destacando a figura do professor e de uma cultura de aula de matemática escolar narrada no excerto do memorial de formação de Teresinha, levantamos algumas questões: nos cursos acadêmicos de formações de professores para a Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental, o que tem sido feito para descontruir esse tipo de sentimento que Teresinha narrou e tantos outros cursistas podem ter? Em que condições esses mesmos professores se encontram com suas marcas escolares para poderem problematizá-las ou oportunizar a esses discentes momentos e/ou situações de reflexão individual ou coletiva? Olhando para os professores em exercício, perguntamos: como os formadores de docentes podem ajudá-los a ressignificar suas marcas escolares? De que maneira essas marcas podem ser/apresentar caminhos de tomada de consciência para os profissionais da docência?

O destaque da figura do professor associa-se à importância que ele tem em nossa trajetória de vida e formação. O docente que Teresinha cita no trecho de sua narrativa fez com que ela odiasse a disciplina matemática escolar, porque ela odiou sua atitude em relação à avaliação. Ela estendeu a decepção que teve por seu professor para a matemática escolar, pois, antes, a discente sentia um carinho grande por ele. Teresinha narra que, na época em que ele chegou para ser o docente da sala multisseriada em que estudou, foi recebido com festa e alegria: “Era muito querido por todos, era tratado como doutor. Homem de poucas palavras, sempre sério, e eu gostava muito dele.” (TERESINHA, MF, 2017).

Mas Teresinha passou a odiá-lo e construiu o mesmo sentimento pela matemática escolar: “passei a odiá-lo, minha admiração por ele foi água abaixo. Com isso, a disciplina de Matemática teve o mesmo status que ele: também passei a odiá-la.” (TERESINHA, MF, 2017). Quantas de nossas atitudes podem surgir do mesmo métier do docente de Teresinha ou de algo que tangencie essa situação? Como nossas atitudes podem favorecer a construção de um sentimento em relação a uma disciplina escolar? No caso de Teresinha, o sentimento perdurou até ela encontrar outros professores que pudessem, mesmo que indiretamente, estimulá-la a se aproximar da matemática escolar: “[no Ensino Médio] As aulas de Matemática eram tranquilas, lembro-me de três professores, cada qual com sua maneira, mas todos competentes. Conseguia tirar notas boas, era a disciplina que mais me interessava, gostava de cálculos; então, nas disciplinas que exigiam cálculos, eu me saía bem.” (TERESINHA, MF, 2017).

A discente não revela o motivo, além da competência dos professores, de ela começar a se interessar pela matemática escolar no Ensino Médio. Talvez ela tenha percebido que essa disciplina não é tão pavorosa como imaginara ou foi descobrindo que gostava dela, mas manteve, por um tempo, uma relação de ódio com ela. É visível na narrativa de Teresinha que todo o constrangimento pelo qual passou se vincula a não saber a tabuada na ponta da língua.

Para Nürnberg (2008NÜRNBERG, Jóyce. Tabuada: significados e sentidos produzidos pelos professores das séries iniciais do ensino fundamental. 2008. 94 f.Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2008. Disponível em: Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp063655.pdf . Acesso em:15 dez. 2018.
http://livros01.livrosgratis.com.br/cp06...
), os distintos significados conferidos à tabuada, que compõem seu atual status no ensino da matemática escolar, instituíram-se no transcorrer das mudanças e do surgimento das tendências pedagógicas, tendo cada uma contribuído para a imputação de diferentes significados. Em tempos da tendência pedagógica tradicional e tecnicista, a tabuada foi cercada de estigmas e constituiu um pequeno aporte da matemática escolar, sendo ela indispensável para as crianças avançarem nas operações aritméticas. Em muitos casos, decorar a tabuada era um exercício extraclasse ou até mesmo sinônimo de castigo.

O enfoque dado à operação multiplicação é a tabuada. O fundamental era ensinar a fazer contas de “vezes”. Assim, entende-se que a condição primeira para o sucesso de aprendizagem era decorar a tabuada, isto é, mera memorização. Além disso, estava associada aos castigos específicos do ensino da matemática. Quando o aluno “desobedecia” ao professor ou deixava de cumprir obrigações que a escola determinava, era imposto que escrevesse por diversas vezes uma, várias ou todas as tabuadas de 1 a 10. (NÜRNBERG, 2008NÜRNBERG, Jóyce. Tabuada: significados e sentidos produzidos pelos professores das séries iniciais do ensino fundamental. 2008. 94 f.Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2008. Disponível em: Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp063655.pdf . Acesso em:15 dez. 2018.
http://livros01.livrosgratis.com.br/cp06...
, p. 32)

Com o advento da tendência renovada progressista e renovada não-diretiva, a tabuada passou a ser vista como um conceito empírico que, pela experimentação ou pelo processo associativo, deve ser memorizado e aprendido. No entendimento de Nürnberg (2008NÜRNBERG, Jóyce. Tabuada: significados e sentidos produzidos pelos professores das séries iniciais do ensino fundamental. 2008. 94 f.Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2008. Disponível em: Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp063655.pdf . Acesso em:15 dez. 2018.
http://livros01.livrosgratis.com.br/cp06...
), o material dourado, as barrinhas coloridas de Cuisenaire e a linguagem dos conjuntos e pares ordenados funcionaram para trabalhar a tão conhecida tabuada, mesmo com as mudanças no modo de reger os procedimentos de ensino. Contudo, sua penetração histórica no ideário de docentes e da comunidade não é desmanchada de um dia para o outro. Suspeitamos que, por essa razão, muitos estudantes pesquisados do curso de Pedagogia que cursaram a disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática resistiram à ideia de outro dispositivo para tratar das operações aritméticas.

Essa resistência relaciona-se à invariabilidade da tabuada, sendo considerada pelos licenciados necessária para as crianças aprenderem as quatro operações básicas. Isso nos leva a entender o uso da tabuada como uma tradição, nos termos de Hobsbawm (2020HOBSBAWM, Eric J. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições. Tradução Celina Cardim Cavalcane. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 7-24. (Coleção Pensamento Crítico).), no ensino da matemática escolar, não sendo uma convenção ou rotina pragmática dos professores; é fundamentalmente um processo de formalização e ritualização, marcado por fazer referência ao passado, mesmo que isso seja revelado apenas pela imposição da repetição.

Em síntese, ao longo dos anos, o ensino da tabuada adquire um caráter de forte memorização, até mesmo precoce, para depois ser associado ao uso de músicas, parlendas, trava-língua, jogos, brincadeiras, entre outros recursos didáticos concebidos como envolventes e lúdicos, na tentativa de amenizar a sofrível memorização (NÜRNBERG, 2008NÜRNBERG, Jóyce. Tabuada: significados e sentidos produzidos pelos professores das séries iniciais do ensino fundamental. 2008. 94 f.Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2008. Disponível em: Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp063655.pdf . Acesso em:15 dez. 2018.
http://livros01.livrosgratis.com.br/cp06...
). Tal associação causa, assim, certo alívio para os professores, que, criticados por ensinar a tabuada via forte memorização, passam a ter dispositivos que abrandariam esse processo, os quais foram caracterizados como alternativas pelos estudantes. Analisamos esse assunto na subseção a seguir.

Possíveis significações produzidas no curso de Pedagogia sobre as marcas da matemática escolar

No curso de Pedagogia, Terezinha se encontra com a matemática escolar e faz dois destaques sobre os encontros que teve na disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática. Um gira em torno dos materiais manipuláveis; e o outro é sobre a relação que estabelece com seu professor.

Em relação aos materiais manipuláveis, o professor-pesquisador ofereceu três para serem analisados pelos alunos, que, durante a disciplina, deveriam refletir sobre essas ferramentas e usá-las. Os instrumentos disponibilizados foram: o material dourado, que também pode ser nomeado de material Montessori ou multibase 10; o ábaco; e o Tangram. Esses e tantos outros materiais já possuem uma longa trajetória no ensino da Matemática mundial e brasileiro. Nacarato (2005NACARATO, Adair Mendes. Eu trabalho primeiro no concreto. Revista de Educação Matemática, São Paulo, v. 9, n. 9-10, p. 1-6, 2005. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4489101/mod_resource/content/3/Revista%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20-%20SBEM%20-%20%20v.%209-10%2C%20n.%209%2C%202005.pdf . Acesso em: 12 dez. 2015.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
, p. 1, grifo da autora) nos fornece algumas informações que podem situar, historicamente, o uso dos materiais manipuláveis:

O uso de materiais manipuláveis no ensino foi destacado pela primeira vez por Pestalozzi, no século XIX, ao defender que a educação deveria começar pela percepção de objetos concretos, com a realização de ações concretas e experimentais. No Brasil o discurso em defesa da utilização de recursos didáticos nas aulas de Matemática surgiu na década de 1920. Esse período foi marcado pelo surgimento de uma tendência no ensino de Matemática que ficou conhecida como empírico-ativista, decorrente dos ideais escolanovistas que se contrapunham ao modelo tradicional de ensino no qual o professor era tido como elemento central do processo de ensino.

A autora questiona se o uso de materiais manipuláveis para o ensino de matemática escolar seria um facilitador ou complicador. O professor-pesquisador, durante as aulas da disciplina Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática, lançava dúvidas para os estudantes pensarem como usar os materiais manipuláveis, que conteúdo matemático poderia ser mediado com eles, se seu uso seria apenas para uma visualização de noções básicas ou se caberia usá-los para esgotar este ou aquele conteúdo matemático. Essas questões pairavam em toda a disciplina, porque o docente evitava respondê-las. O intuito era que encontrássemos as respostas juntos, dialogando e revendo conceitos matemáticos, mesmo com a limitação do tempo que tínhamos, pois a disciplina durava 60 horas-aula e era a única que abrangia fundamentos e metodologias da Matemática.

Terezinha, assim como os outros sujeitos desta pesquisa, encontraram dificuldades para compreender a manipulação dos materiais, o contexto no qual eles poderiam ser utilizados e as relações matemáticas a serem representadas a partir deles. A narrativa de Terezinha (MF, 2017), destacando suas inquietações diante de algumas discussões que realizamos sobre o material dourado, revela bem as dificuldades:

Algumas disciplinas me chamaram atenção, Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática e Fundamentos e Metodologia de Ensino de Ciências, quando vi ofertadas para o curso, confesso que, no início, não entendi muito. Pensei: “Vou ver conceitos ou contas de novo?” [...] Na matemática, aprendi com o professor que ela pode ser divertida se você trabalhar com o lúdico, fugindo do tradicional, mas percebi que esse lúdico que nos foi apresentado é bem complexo para poder fazer acontecer na sala de aula. Por exemplo, quando trabalhamos com o material dourado, eu não havia pensado nos erros em representá-lo na forma bidimensional, em vez da maneira correta que é tridimensional. Eu nem percebia essa diferença, por isso dizia que o que estava no livro estava correto. Eu não entendia a relação que há entre as peças do material. Eu fico imaginando que é preciso saber bem matemática para poder fazer acontecer o ensino de matemática pelo lúdico.

Os demais colegas da licencianda relatam discussões semelhantes, pois, para eles, foi espantoso descobrir esses elementos, que eles chamaram de detalhes. Estes podem complicar o ensino da matemática escolar caso o professor não conheça os conceitos matemáticos e não faça corretamente suas análises antes de propor atividades com materiais manipuláveis que contribuam com a aprendizagem das crianças.

Mais dois casos nos chamaram bastante a atenção. Um é o relato de Raquel, que já possui muitos anos de atuação como gestora de creche. O outro é a narrativa de Cíntia, que é uma jovem estudante. Ambas desconheciam a existência do material dourado. A narrativa de Raquel (MF, 2017, grifos nossos) nos revela seu desconhecimento sobre esse recurso e causou-nos preocupação:

Rememorando o momento de interação entre os materiais, a prática propriamente dita na brinquedoteca de forma orientada pelo professor levou-me a ver que há um universo de atividades aos nossos olhos que, se utilizadas de forma correta, deixando a criança descobrir o saber aprender de forma autônoma, teremos mais êxito no ensino e na aprendizagem. O uso do material dourado foi uma grande surpresa para mim, pois, mesmo com tantos anos trabalhando em escolas, eu não conhecia este material nem sabia como utilizá-lo. As leituras propostas pelo professor e as atividades com o material me deixaram aflita devido a minha falta de conhecimento matemático para poder usá-lo. Fiquei imaginando um aluno me fazendo alguma pergunta e eu sem saber responder, porque não conseguiria, sozinha, explicar as relações que há entre os elementos do material como a placa e o cubo, a ideia da contagem, das operações e do registro, principalmente fazer subtração com reserva. Até para ensinar matemática com as crianças pequenas, é preciso saber bem o conteúdo de matemática. Ainda bem que não perdi essa aula.

Cíntia passou pela escola, aprendeu a matemática escolar que deu para aprender e ser promovida para os anos seguintes de estudos até chegar ao Ensino Superior, mas diz desconhecer a existência do material dourado. Além disso, mesmo tendo algum tipo de conhecimento sobre o ábaco, jamais havia manuseado um. Ela também destaca suas inquietudes sobre saber o conteúdo matemático e fazer uso desses materiais manipuláveis:

Dentre as aulas ao longo desta disciplina, a que mais me “marcou” foi a aula que aconteceu no dia 14 de janeiro na brinquedoteca, onde abordamos os materiais pedagógicos utilizados no ensino da matemática (ábaco e material dourado). Através desta aula pude visualizar e principalmente manusear o ábaco, um material que já conhecia por ser muito comentado nas aulas, mas não havia tocado. Nem mesmo entendia a relação que há entre as ordens e as classes; para mim, era só ver as cores e saber que cada uma tem um valor diferente, de 10 em 10. Passei a entender a importância da posição que a argola ocupa para representar um valor, o chamado valor relativo. Já em relação ao material dourado, não tinha nenhum conhecimento; para mim, foi novidade. Talvez por não ter aprendido nada disso na escola, eu nem sabia que era necessário fazer essas análises difíceis para poder ensinar com o material pedagógico. (CÍNTIA, NP7 7 Narrativa Pedagógica. , 2016)

Há indícios, nas narrativas das estudantes, de que, pela mediação, elas tenham entendido que o uso inadequado de todo e qualquer material manipulável em nada contribuirá para a aprendizagem matemática de estudantes da Educação Básica. Pelo contrário, equívocos conceituais podem ser construídos por parte dos professores, caso não consigam realizar as análises narradas por Cíntia, Raquel e Terezinha nos excertos acima. Essa afirmativa já foi feita por Nacarato (2005NACARATO, Adair Mendes. Eu trabalho primeiro no concreto. Revista de Educação Matemática, São Paulo, v. 9, n. 9-10, p. 1-6, 2005. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4489101/mod_resource/content/3/Revista%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20-%20SBEM%20-%20%20v.%209-10%2C%20n.%209%2C%202005.pdf . Acesso em: 12 dez. 2015.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
, p. 4), que nos alerta para a maneira como são utilizados os materiais manipuláveis: “Um uso inadequado ou pouco explorado de qualquer material manipulável pouco ou nada contribuirá para a aprendizagem matemática. O problema não está na utilização desses materiais, mas na maneira como utilizá-los.”

Parece que havia uma máxima no imaginário dos estudantes e, para nós, em muitos pensamentos de docentes que ensinam matemática escolar na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, de que, para combater a imagem dura e gélida da matemática escolar, seria essencial ensiná-la utilizando materiais manipuláveis; assim, ensinar-se-ia pelo lúdico. Contudo, quem tem essa visão se esquece de que todo e qualquer tipo de material só se manifesta por meio da maneira como o ser humano utiliza-o. Não é o material que melhorará o ensino da referida disciplina escolar. Essa foi uma cultura de aula de matemática escolar muito narrada pelos estudantes, e custou caro ao professor-pesquisador tentar desconstrui-la.

Não somos contrários ao ensino da matemática escolar via materiais manipuláveis. Porém, frisamos, concordando com as pesquisas de Nacarato (2005NACARATO, Adair Mendes. Eu trabalho primeiro no concreto. Revista de Educação Matemática, São Paulo, v. 9, n. 9-10, p. 1-6, 2005. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4489101/mod_resource/content/3/Revista%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20-%20SBEM%20-%20%20v.%209-10%2C%20n.%209%2C%202005.pdf . Acesso em: 12 dez. 2015.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
), que há urgência para o entendimento e a apreensão, por parte de quem se lança na docência e vai ensinar matemática escolar na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, dos conceitos matemáticos, dos significados que podem ser construídos e negociados a partir do uso dos materiais manipuláveis e das relações matemáticas a serem representadas neles e com eles. Não é possível ensinar de qualquer maneira, tampouco usar esses recursos só por usar.

Há um segundo destaque de Terezinha em seu memorial de formação: a relação que estabeleceu com o professor-pesquisador. Ela narra outra postura de professor que possibilitou sua maior aproximação com a Matemática e ampliou as potencialidades para o ensino dessa área do conhecimento. Em sua narrativa pedagógica, ela revela como foram os encontros na disciplina Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática:

Contar com sua compreensão foi importante para superar, em parte, os problemas vividos. E com sua forma acolhedora, tranquila e segura de transmitir os conteúdos, pude perceber que matemática não é um bicho de sete cabeças e que podemos sim, com esforço e dedicação, desenvolver um trabalho satisfatório, apesar de que entender matemática sem conhecer seus fundamentos e sua metodologia deixa nítida a necessidade de aprendermos a aprender o conteúdo. (TEREZINHA, NP, 2016)

Entendemos que essa relação favoreceu ― não só no caso dela, mas também no de outros estudantes ― a construção de vínculos e confiança, decorrente da sensibilidade de enxergar, sentir e perceber a necessidade de estar junto com os estudantes, ajudando-os a rememorarem e a pensarem nos fatos e naquilo que os marcou, no motivo de essa marca ser impactante e na forma de auxiliá-los a transformar-se.

Os elementos que citamos acima fazem parte da qualidade da relação. Para Contreras (2018CONTRERAS, José Domingo. Clase 3: cualidades educativas de la relación. In: CONTRERAS, José Domingo. Asignatura La Relación Educativa: experiencia y saber pedagógico. Máster Investigación y Cambio Educativo. Barcelona, 18 oct. 2018. Curso 2018-2019.), a essência de uma relação está fundada no respeito, afastando-se da ideia de hierarquia, e necessita de autoridade conquistada e, assim, construída por ambas as partes, rejeitando o autoritarismo. A qualidade, por sua vez, é vista no sentido do encarnado (NAJMANOVICH, 2001NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.). Por isso, esse aspecto torna-se o carro-chefe do movimento do registro das narrativas dos estudantes, mesmo tendo clareza do aspecto institucional da produção do memorial de formação e das narrativas pedagógicas.

Essa qualidade tem nos ajudado a responder a nossas inquietudes em relação a nossa trajetória de vida e formação. Favoreceu-nos com dispositivos, ofertados pelos estudantes, para nós, reiteradamente, perguntar-nos: nos cursos de Pedagogia, o que tem sido feito pelos formadores para descontruir os vários sentimentos amargos que os estudantes narram em relação ao ensino e à aprendizagem da matemática escolar? Em que condições esses mesmos professores se encontram com suas marcas escolares para poder problematizar ou oportunizar a esses discentes momentos e/ou situações de reflexão individual ou coletiva?

Contreras (2018CONTRERAS, José Domingo. Clase 3: cualidades educativas de la relación. In: CONTRERAS, José Domingo. Asignatura La Relación Educativa: experiencia y saber pedagógico. Máster Investigación y Cambio Educativo. Barcelona, 18 oct. 2018. Curso 2018-2019.) tem levantado alguns alertas sobre a qualidade da relação. Para ele, precisamos, costumeiramente, questionar-nos sobre o que realmente mantém viva uma relação. O que a faz continuar pulsando, ser contínua? Somos capazes de, ao enxergar certas qualidades da relação, transfigurar-nos em aprendizes e bons ouvintes? Se isso acontece, uma nova possibilidade de ser e estar no mundo aparece, permitindo um crescimento, a abertura a outras possibilidades. Mas, se isso não se efetua, o que podemos fazer, a quem recorrer, com quais estratégias (re)existir? Para isso, Contreras (2013)CONTRERAS, José Domingo. Ponerse a la escucha. Cuadernos de Pedagogía, España, n. 430, p. 63-65, ene. 2013. sugere a escuta atenta, pois ela tem o propósito de continuar a relação, ampliando a conversa, de modo a não saber como é o outro, quais suas características ou atitudes, apenas escutá-lo.

Isso se dá porque a relação, na perspectiva de Contreras (2018CONTRERAS, José Domingo. Clase 3: cualidades educativas de la relación. In: CONTRERAS, José Domingo. Asignatura La Relación Educativa: experiencia y saber pedagógico. Máster Investigación y Cambio Educativo. Barcelona, 18 oct. 2018. Curso 2018-2019.), é sempre pessoal e, por isso, abstrata. Não vem dada, é preciso entrar em relação. É necessário dar-se e não previamente entrar em relação, pois ela é imprevisível. Ela é circular. Pode ser o intercâmbio subjetivo de subjetividades, ou seja, envolve o receber e o dar. Está sempre aberta ao acontecimento. É misteriosa, pois temos o mistério do outro, os mistérios do entre.

Esses mistérios também podem ser encontrados, indiretamente, em práticas de professores e/ou práticas recriadas. Elas podem ser os casos de ensino. O professor-pesquisador utilizou-os e ainda os utiliza como dispositivo de formação em suas aulas da disciplina Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática. No entendimento de Nacarato, Mengali e Passos (2009NACARATO, Adair Mendes; MENGALI, Brenda Leme da Silva; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion. A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. , p. 137), “os casos podem ser utilizados como práticas de formação (inicial ou continuada) porque possibilitam a mobilização e a produção de conhecimentos teóricos e práticos, bem como valores e concepções - por parte tanto de quem analisa, quanto de quem constrói o caso.”

Contudo, para que um caso de ensino seja, realmente, considerado como tal, faz-se necessário entendê-lo como inserido nos saberes contextualizados e conectados à ação docente. Ele se diferencia das narrativas porque proporciona “uma problematização de sala de aula e um conhecimento teórico subjacente a ele, deixando ao leitor as interpretações possíveis.” (NACARATO; MENGALI; PASSOS, 2009NACARATO, Adair Mendes; MENGALI, Brenda Leme da Silva; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion. A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. , p. 134). Esse exercício é mais um dos desafios do formador.

Associando os casos de ensino com as narrativas autobiográficas dos estudantes, outras culturas de aula de matemática escolar aparecem e se tornam uma constante, por exemplo, aprender a tabuada. Na disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática, o professor-pesquisador exercitava a arte do questionamento com os licenciandos: “vamos pensar que nunca existiu a tabuada e que vocês terão de ensinar as operações aritméticas para as crianças? Então, como proceder? Por qual percurso caminhar? Que materiais vocês utilizariam?” Essas questões nos levaram a encontrar outros artefatos, por exemplo, a reta numérica, mas exigia de nós pensar sobre o processo realizado para resolver operações aritméticas.

Esse exercício foi lento e difícil para os estudantes, pois todo um conjunto de práticas que permitiram, e ainda permitem, o ensino da tabuada nas aulas de matemática escolar criou neles, e, possivelmente, tem criado em outros estudantes, comportamentos quase que intocáveis. Mesmo defendendo o fim da memorização da tabuada, eles questionam sobre como saber de cabeça sem conhecer a tabuada? Pensar na inexistência da tabuada nas aulas de matemática escolar é quase impossível para muitos estudantes, inclusive para aqueles que sofreram castigos por não terem a resposta na ponta da língua. É a tal tradição mencionada por Hobsbawm (2020HOBSBAWM, Eric J. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições. Tradução Celina Cardim Cavalcane. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 7-24. (Coleção Pensamento Crítico).) e a cultura escolar que define práticas para transmissão de conhecimentos e a incorporação deles nas mentes e corpos, como diz Julia (2001JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001. Disponível em:Disponível em:https://core.ac.uk/download/pdf/37742506.pdf . Acesso em: 15 jul. 2013.
https://core.ac.uk/download/pdf/37742506...
).

Esse foi o caso, principalmente, de Daniel, que ensinou matemática escolar, como estagiário, na turma do terceiro ano do Ensino Fundamental de uma escola pública da rede municipal de ensino. Ele narra como planejou a aula e como foi seu trabalho com as crianças:

Outra aula importante foi ensinar tabuada da casa dos 6 para a turma. Só que trabalhamos [ele e sua colega de estágio] uma tabuada diferente, envolvendo jogos e confecção na prática. Utilizamos papel A4 e pedimos que ficassem em duplas, o objetivo, além de saber a casa do 6, era a interação entre ambos os sexos, já que nessa faixa etária a distinção entre o que é de menino ou menino é muito forte. Na sequência, pedimos que cada aluno ficasse atento à tabuada de 5 que seu professor já havia ensinado, porque hoje iríamos ensinar a casa de 6. No quadro negro, colocamos um cartaz com toda a tabuada escrita, mas sem as respostas [no memorial de formação há uma imagem que mostra tal atitude]. Pedimos para que eles escrevessem em seus cadernos, tal qual estava no cartaz, então começamos a perguntar quanto é 6x1, 6x2... Só que não era somente perguntar. A gente mostrava para eles a relação de uma resposta dentro da seguinte, por exemplo: 6x1=6; já 6x2=12, porque é 6 duas vezes, então é só somar 6+6 que dá 12, e assim seriam os outros8 8 Daniel usou a tabuada do 6 de forma equivocada, pois o correto é: 1 x 6, 2 x 6, 3 x 6, etc. No entanto, ao explicar o significado da multiplicação, ele usou a tabuada corretamente, desconsiderando as multiplicações indicadas, pois 6 duas vezes é exatamente 2 x 6 ou 6 + 6. . Depois fizemos um bingo da tabuada revisando da casa de 2 até a casa do 6. Confesso que foi uma situação muito engraçada e empolgante, pois todos queriam acertar, mas, na hora que uma dupla dizia bingo e fazíamos a conferência dos acertos, um ou outro erro aparecia, e continuávamos o bingo. Os alunos se envolveram na atividade e aprenderam brincando. (DANIEL, MF, 2017)

Durante a mediação biográfica, ou seja, na trajetória da construção de seu memorial de formação, o professor-pesquisador tentava fazer com que Daniel pensasse sobre sua prática como estagiário. Então, levantava a dúvida: “Mesmo você afirmando ter trabalhado de maneira lúdica com as crianças, você acha que existe outros aspectos além da ludicidade na tarefa?” Também afirmava, com tom reflexivo: “Entendo que você e sua colega estão tentando buscar alternativas para ensinar Matemática para as crianças, mas olhem bem o caminho que vocês traçaram.” Essas mediações objetivavam que ele percebesse a existência do caráter de memorização na tarefa proposta.

Em nosso entendimento, Daniel criou uma aula no estágio um pouco semelhante às que ele teve quando foi aluno da Educação Básica. Imaginamos que sua maneira de ver a matemática escolar e seu desejo de entender melhor os conceitos mais complexos dela direcionaram-no ao ensino da tabuada proposto por ele, mesmo incorporando elementos que possam caracterizar jogos ou brincadeiras. Desse modo, sua ênfase pode estar no desenvolvimento do processo algorítmico, na maneira linear de ver esse processo, e no (des)uso da Aritmética, deixando de lado toda a potencialidade que a reta numérica oferece.

Valente (2016VALENTE, Wagner Rodrigues. A aritmética na escola ontem. In: VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). A aritmética nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. São Paulo: Livraria da Física, 2016. p. 11-40.) destaca a Aritmética em relação às outras temáticas da matemática escolar. Sua análise histórica sobre o ensino desse conteúdo nas últimas décadas do século XIX mostra que era preciso considerar como primeira forma de conhecimento o intuitivo, por isso o ensino ativo entra em cena.

Cabe ao professor ensinar ativamente a aritmética nos primeiros anos escolares. O ensino ativo do professor, considerando os processos intuitivos, tem por grande desafio desbancar a herança da memorização. E, no caso da aritmética, a memorização da tabuada. Saber de cor a tabuada é um ícone dos tempos a serem superados, surge a necessidade de serem construídas alternativas que rompam com a memorização, sem prescindir das tábuas, das tabuadas do cálculo. (VALENTE, 2016VALENTE, Wagner Rodrigues. A aritmética na escola ontem. In: VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). A aritmética nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. São Paulo: Livraria da Física, 2016. p. 11-40., p. 17)

A alternativa encontrada por Daniel foi, segundo ele, construir com os alunos a casa do numeral 6 da tabuada, e o jogo do bingo serviu como dispositivo para revisar as casas anteriores, uma atividade que ele chamou de lúdica. Contudo, questionamos: quais significados poderiam ser construídos e negociados a partir do uso desse material com as relações matemáticas a serem representadas no e com o material? Daniel usa o material manipulável como ilustração e/ou apoio, e seu foco foi a memorização da tabuada. Nessa hora, o professor-pesquisador indaga-se se suas aulas da disciplina Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática não contribuíram para pensar a matemática escolar de outro lugar, na tentativa de superar as marcas que seus estudantes tiveram na Educação Básica em que estudaram.

Perguntamo-nos sobre o espaço-tempo do estágio e as limitações de cada estagiário em relação ao que o supervisor e o professor regente desejam que o licenciando ensine e/ou desenvolva em sala de aula. Geralmente, o estudante inicia seu estágio em um momento em que os alunos da escola já estão, há um bom tempo, desenvolvendo uma cultura de sala de aula conduzida pelo professor regente. Desse modo, incorporar alternativas que abram fissuras na prática pedagógica do professor regente pode ser um complicador, e não um facilitador. Mas acreditamos que isso não seja uma regra.

Vejamos o que diz Terezinha sobre sua atuação no Estágio em Magistério de Anos Iniciais I e II do Ensino Fundamental. Ela e sua colega de estágio desenvolveram suas atividades em uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental e foram incumbidas pela professora regente de trabalharem somente com Língua Portuguesa e matemática escolar.

Desse modo, Terezinha e sua colega recorreram a atividades lúdicas para ensinar matemática escolar para as crianças. Ela se lembrou das discussões realizadas na disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática sobre a temática e construiu sua estratégia para se apropriar dos conteúdos matemáticos e, assim, poder ensiná-los às crianças:

Graças aos professores de matemática e artes que tivemos durante o curso de pedagogia, que nos apresentarem o lúdico como recurso indispensável em sala de aula, decidimos seguir os passos dos professores e aplicá-los nas aulas ministradas na turma de 1º ano durante a nossa regência. Confesso que não foi nada fácil, pois me lembrava da aula do material dourado e da necessidade de saber o conteúdo para poder ensinar. Eu sempre recorria aos amigos professores de matemática e português quando eu tinha dúvida sobre o conteúdo que eu iria ensinar com o lúdico, e claro perguntava para meu professor de estágio como relacionar um material x com o conteúdo de matemática. Percebi que, para mim, foi difícil, mas, para os alunos, houve maior facilidade no entendimento dos conteúdos, maior participação e interação de toda a classe. (TEREZINHA, MF)

Esse também foi o sentimento de Patrícia ao realizar suas aulas de estágio na turma do primeiro ano do Ensino Fundamental. Ao fazer uma atividade de grandezas e medidas com as crianças, ela se lembrou de nossos encontros na disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática, em particular das discussões sobre a tabuada. Ela inicia a narrativa dizendo:

Falarei da disciplina que, para mim, sempre foi muito difícil lidar, mas que, através dos ensinamentos do professor [nome do formador], consegui exercer um trabalho melhor. A disciplina de matemática, quando iniciamos, os alunos estavam estudando grandezas e medidas, e uma das nossas primeiras aulas foi trabalhar com massa; para isso, utilizamos a construção de uma balança caseira, o livro didático propunha uma atividade bem simples para que as crianças pesassem alguns objetos e observassem qual era o mais leve e o mais pesado. Logo me lembrei das aulas de matemática da faculdade que colocavam a gente para pensar em situações que fossem relacionadas com o conteúdo da matemática e, ainda, com o nível das crianças que eu estava no estágio. Só me vinha à cabeça nossos embates na aula da tabuada... (PATRÍCIA, MF)

Patrícia também narra uma aula que desenvolveu com sua colega de Estágio em Magistério de Disciplinas Pedagógicas realizado na Educação Infantil, realizado em uma turma de creche da rede municipal de ensino, mostrando suas descobertas e a alegria das crianças de 2 e 3 anos de idade:

Fizemos outra atividade de encaixe com as crianças. Eu e minha colega levamos um cacho de uvas grande feito com papelão, as crianças precisavam encaixar as bolinhas de cor roxa e tamanhos diferentes para formar o cacho de uva. Nosso objetivo era que elas percebessem a variação de tamanho das bolas e fossem tentando encaixar cada bola no espaço correto. Elas colocavam uma bola em um espaço, viam que não dava certo, tiravam e tentavam em outro. Mesmo quando uma criança colocava a bola em um espaço que não era correto, mas deixava, outra criança vinha e ficava olhando, tirava e procurava outro lugar para encaixar.

Percebemos que as crianças gostam muito de atividades de encaixe. Até as crianças que apresentam um pouco mais de dificuldade conseguiram executar. Este tipo de atividade é como um desafio... Eu até pensei que elas não fossem conseguir, mas, através das aulas do estágio, notei que desafios são essenciais na Educação Infantil e as crianças gostam de demonstrar que são capazes de alcançar os objetivos que propomos a elas. (PATRÍCIA, MF)

Em sua narrativa pedagógica, ao final do Estágio em Magistério de Anos Iniciais I e II do Ensino Fundamental, Patrícia (NP, 2017, grifos nossos) faz uma autoavaliação e aponta elementos, destacando suas experiências com a tabuada e as aulas nos estágios que realizou:

Ao finalizar meu estágio e escrever esta narrativa de formação, tenho que dizer da experiência que foi quando o professor [nome do professor-pesquisador] tentou descontruir nossa ideia sobre a tabuada. Eu sempre achei chata a maneira que meus professores me ensinavam a tabuada, mas hoje tem muitas alternativas para a criança aprender tabuada, e isso eu acho bem válido. Agora, usar a reta numérica com as outras coisas que ela apresenta, eu nunca tinha visto e acho bem difícil a criança aprender. Só que, depois das aulas que dei nos estágios, minha visão está mudando, porque o difícil não é, nem tanto para as crianças, mas para o professor que aprendeu de um jeito e acredita que aquele jeito é o melhor para ensinar. Vivi isso na pele quando eu e minha colega planejávamos. O trabalho com a balança na turma do 1º ano e dos encaixes com a turminha da creche me deixou bem animada em pensar em alternativas, mesmo eu tendo que estudar coisas que eu não aprendi na escola, para explorar as habilidades das crianças e até mesmo me fazer estudar mais, porque matemática não é, definitivamente, minha praia.

Em consonância com o relato de Daniel, os dois destaques que fizemos na narrativa de Patrícia nos dão condições para pensar nas transformações que a tabuada sofreu até chegar aos dias de hoje, conforme realçado na subseção anterior. Também revelam indícios de sua tomada de consciência sobre a transferência que fazemos, de nós para as crianças, ao dizermos que este ou aquele tipo de atividade é difícil para elas.

A segunda ideia relatada por Patrícia, transferir de nós para as crianças a ideia da dificuldade da tarefa, é bem comum, mas não deveria ser naturalizada. Não estamos culpando Patrícia por realizar essa transferência. Nós mesmos já havíamos feito isso quando atuamos na docência na Educação Básica durante alguns anos, e nossa tomada de consciência só veio com o desenvolvimento de nossas pesquisas, com as orientações realizadas, nas discussões em congressos e eventos científicos e no grupo de pesquisa do qual fazemos parte ― História de Formação de Professores que Ensinam Matemática (Hifopem)9 9 O grupo foi criado em 2010 e é certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), congrega estudantes de Pós-Graduação, de Pós-Doutoramento e pesquisadores egressos que ainda mantêm vínculo com o grupo. Tem como foco o método (auto)biográfico, dedicando-se a estudar e analisar pesquisas que tomam as narrativas em suas múltiplas perspectivas: narrativas pedagógicas, narrativas de vida e formação e pesquisa narrativa. . Alegramo-nos por Patrícia ter percebido, ainda na graduação, essa peculiaridade que muitos colegas professores demoram a perceber para tomarem consciência da necessidade de mudar esse padrão.

O destaque realizado por Patrícia também está na narrativa de Hilsaneide e Luciana C. Entretanto, estas duas se lançam na busca de possibilidades maiores do as que aprenderam na escola e/ou sabiam por ouvir falar. As duas, que estagiaram no primeiro ano do Ensino Fundamental, elaboraram duas aulas sobre estimativa, mas utilizaram caminhos diferentes. Hilsaneide (MF, 2017) conta:

Durante a regência, houve a necessidade de elaboração de um plano de aula que abordasse estimativa, mas o livro didático não continha informações e instruções suficientes; então, realizamos uma pesquisa e procuramos uma maneira mais adequada e de fácil entendimento para o nível dos alunos de 1º ano. Isto me preocupou um pouco, pois não sabia como abordar esta temática; então, para conseguir obter um resultado satisfatório, eu e minha colega tivemos de estudar, procurar explicações para quem sabia e até mesmo entender como trabalhar estimativa com crianças de 6 anos de idade. Até lembramos das aulas de matemática com o professor J. O objetivo da aula era que o aluno realizasse estimativas em situações do cotidiano, tendo uma noção de valores aproximados de objetos, alimentos, analisando diferentes modos de fazer estimativa. Conceituamos para os alunos o que seria estimativa, com exemplos, e partimos para algumas situações, como estimar o valor de alguns objetos, como: roupas, materiais escolares entre outros. Distribuímos para os alunos dinheiro de brincadeira: notas de R$ 2,00; R$ 5,00; R$ 10,00; R$ 20,00; R$ 50,00; e R$ 100,00. Com as cédulas, as crianças iam imaginando quanto custava cada objeto desenhado no quadro e colavam o valor aproximado na gravura.

Pelo que consta na narrativa de Hilsaneide, elas se reuniram, estudaram a temática, pediram ajuda para outras pessoas e elaboraram as tarefas para as crianças, pois as informações que tinham disponíveis no livro didático não eram suficientes para avançar com as crianças e, quiçá, causavam-lhes mais dúvidas ainda. Destacamos o trabalho coletivo, o compartilhamento de ideias, o compromisso conjunto que elas tiveram, que poderia ser também realizado pelos professores em exercício, pois, na rede municipal em que os estágios foram realizados, os docentes têm o direito a sete horas de atividades fora de sala de aula, garantidos por Lei federal.

A importância que Hilsaneide dá a esse exercício do compartilhamento de ideias e dúvidas, do estudo em grupo e do respeito entre as duas, para nós, revela o quanto ela e Luciana C. cresceram como pessoa, como estudantes e como profissionais que um dia exercerão a docência. Segue outro excerto da narrativa de Hilsaneide (MF, 2017):

Posso afirmar, pela própria experiência neste estágio, realizado em dupla, em que minha colega e eu nos reunimos várias vezes para planejarmos as aulas. E nestas trocas de conhecimentos, aprendemos a ouvir e respeitar as ideias e opiniões uma da outra, sem mencionar no compartilhar as experiências e as práticas que seriam mais adequadas para cada aula.

Para nós, essa é uma experiência que necessitamos viver constantemente, pois ainda são poucos os momentos de trocas que temos com nossos colegas de trabalho. Vivemos em nossas próprias ilhas, cercados de dúvidas e inquietações. Em muitos casos, não nos damos conta de que necessitamos do outro para nossos avanços, para perceber o quanto é frutífero compartilhar experiências.

Acabamos fazendo o que Patrícia fez: transferindo nossas dificuldades para nossos estudantes e, assim, deixando de experienciar algo mais ousado e/ou criativo. Esquecemo-nos de olhar para nós mesmos, enxergar nossas limitações e pedir ajuda para o outro, que é também um de nós. Criamos modelos para orientar nossas ações, em muitos casos, a partir de teorias de si que camuflam nossas fragilidades e calam muitos estudantes.

Precisamos dizer que problematizar culturas de aula de matemática escolar não foi nem tem sido algo simples para nós. A cultura do lúdico pelo lúdico, utilizando materiais manipuláveis, mas sem o devido cuidado teórico-metodológico para ensinar matemática escolar, tem sido uma das questões que mais se destacam nas narrativas dos estudantes que recebemos quando ministramos a disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática. Outra cultura de aula de matemática escolar é o ensino da tabuada, como já apontado. Ainda percebemos poucas fissuras nas defesas dos discentes ao uso da tabuada, mesmo que eles concordem com a ideia de que sua memorização deve ser descartada.

Essas 2 culturas de aula de matemática escolar foram as que marcaram esta pesquisa com os 11 estudantes de um curso de Pedagogia de uma universidade federal que aceitaram participar dela. Nossa saída tem sido estabelecer uma relação de confiança, proximidade, criando qualidades para a relação. Acreditamos que a qualidade da relação tem ligação direta com a formação docente, pois, para Contreras (2010CONTRERAS, José Domingo. Ser y saber en la formación didáctica del profesorado: una visión personal. Revista Interuniversitaria de Formación del Profesorado, Zaragoza, v. 24, n. 2, p. 61-81, ago. 2010. Disponível em:Disponível em:https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27419198004 . Acesso em:20 jun. 2016.
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=2...
), decidir formar-se como docente é fazer algo consigo mesmo, é pensar no que fizeram consigo durante sua trajetória de formação bem como no que a própria pessoa faz consigo mesma. E o caminho que percorremos nesta pesquisa para estimular os estudantes a discutirem as culturas de aula de matemática escolar e produzirem escritas de si no memorial de formação pode potencializar pensar esse movimento, no intuito da tomada de consciência.

Indícios de tomada de consciência podem ser encontrados também na narrativa de Cíntia. No diálogo do grupo de discussão-reflexão, a estudante trata do ensino da matemática escolar na creche como um desafio, que pensamos não ser somente dela. As dificuldades podem ser sanadas e/ou diminuídas com a apropriação dos conceitos matemáticos e a relação criada entre eles e os materiais manipuláveis, como já dissemos anteriormente. Cíntia (NP, 2016) fala sobre isso em sua narrativa pedagógica:

Quero ressaltar que, independentemente das aulas, o que mais me marcou foi o “choque da realidade” ao sermos constantemente questionados se realmente queremos ser professores, se somos capazes de realmente ensinar, e principalmente, que para sermos capazes de ensinar temos que buscar aprender aquilo que vamos ensinar. E como eu disse, tenho muita dificuldade com a matemática, pois pouco aprendi na escola, e agora que tenho que ensinar, me pego a questionar, mas como se eu não sei o conteúdo.

Saber os conceitos matemáticos que se ensinará, ou seja, saber a Matemática que se ensinará, é uma das inquietações que, a cada semestre que o professor-pesquisador recebe os estudantes na disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática, perseguem-no. Como um futuro docente que logo, logo assumirá a docência poderá ensinar este ou aquele conteúdo matemático se ainda não sabe tal conteúdo? Caso o graduando já saiba, ele precisa ir além, como diz Freire (2008FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (Coleção Leitura)., p. 95): “Não posso ensinar o que não sei. Mas, este, repito, não é saber de que apenas devo falar e falar com palavras que o vento leva. É saber, pelo contrário, que devo viver concretamente com os educandos.”

Para viver concretamente esse saber de que trata Freire (2008FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (Coleção Leitura).), estudamos a ementa (mostrada anteriormente) da disciplina de Fundamentos e Metodologia de Ensino de Matemática, pois ela é gigantesca e causou-nos desconforto, estranhamento e inquietude, visto querer reunir muitas temáticas em um espaço-tempo reduzidíssimo. Além disso, há o enfoque psicologizante que orienta a disciplina. A busca por caminhos e alternativas que pudessem nos ajudar nas discussões em sala de aula sobre os temas do ementário da disciplina foi e ainda é minha premissa quando paramos para planejar a disciplina antes do semestre letivo começar.

Um dos caminhos que temos trilhado está inscrito nos estudos biográficos. O uso que fazemos das narrativas autobiográficas dos estudantes do curso de Pedagogia tem possibilitado uma frutífera prática de formação, uma vez que suas narrativas mostram, nos dizeres de Nacarato, Mengali e Passos (2009NACARATO, Adair Mendes; MENGALI, Brenda Leme da Silva; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion. A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. ), crenças em relação ao ensino e à aprendizagem de Matemática, contêm marcas de momentos históricos da Educação Matemática e ainda permitem identificar tendências pedagógicas de determinada época e lugar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo abordou a matemática escolar e a formação acadêmica de futuros pedagogos de uma universidade federal brasileira, com o objetivo de analisar como os futuros docentes se apropriaram/se apropriam de conceitos matemáticos ao longo de sua trajetória escolar e acadêmica, e como suas representações relacionadas à matemática escolar e a seu ensino podem influenciar na elaboração de novas representações. As escritas autobiográficas dos estudantes se tornaram objetos de problematização e reflexão tanto para eles como para nós. Passamos a conhecer suas trajetórias e suas ideias sobre a matemática escolar, as representações construídas ao longo de seus itinerários estudantis para essa disciplina. Por isso, essas escritas foram tomadas como ponto de partida de nosso trabalho como formadores, com o intuito de nos ajudarem na (des)construção de representações e práticas referentes à Matemática. Isso porque acreditamos que as narrativas possibilitam organizar a experiência.

Acreditando na possibilidade acima, vemos que os 11 estudantes que participaram desta pesquisa fizeram uso de suas narrativas para organizar suas experiências como alunos do Ensino Fundamental, do Ensino Médio e do curso acadêmico. Eles perceberam o quanto um professor que lhe ensinou matemática escolar pode lhe marcar positiva ou negativamente, despertando sentimentos de ódio e desprezo em relação à matemática escolar ou proximidade e gosto pela disciplina escolar, revelando, para eles, outra matemática.

A pesquisa mostrou indícios de que os estudantes se apropriaram/se apropriam de conceitos matemáticos, em muitos casos, de maneira sofrida. O castigo e/ou o sentimento de impotência são os mais visíveis, criando representações de uma matemática escolar gélida, de difícil acesso, punitiva, que poucos poderiam aprender. Colaborou para a perpetuação de uma cultura de aula de matemática escolar em que o castigo e o sofrimento fossem fundamentais para a aprendizagem dos estudantes e sua promoção social.

As pistas deixadas pelos estudantes em suas narrativas sinalizaram o tamanho do desafio que os formadores precisam enfrentar: provocar nos licenciandos a tomada de consciência dos obstáculos que eles trazem de sua formação matemática escolar para que as dificuldades sejam objeto de reflexão, superação e (re)significação durante sua formação acadêmica, para uma produção de um ensino de matemática escolar significativo para seus futuros alunos. Assim, o formador necessita estar em constante reflexão e ressignificação de sua prática, auxiliando os estudantes na problematização e compreensão dos conteúdos escolares ao longo de sua formação acadêmica.

REFERÊNCIAS

  • BOLÍVAR, Antonio. Dimensiones epistemológicas y metodológicas de la investigación (auto)biográfica. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; PASSEGGI, Maria da Conceição (org.). Dimensões epistemológicas e metodológicas de pesquisa (auto)biográfica Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNER, 2012. p. 27-70. t. I.
  • BOLÍVAR, Antonio; DOMINGO, Jesús; FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfica-narrativa en educación: enfoque y metodología. Madrid: La Muralia, 2001.
  • BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Tradução Waldemar Ferreira Netto. Critical inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.
  • CARVALHO, João Bosco Pitombeira de. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). Euclides Roxo e a modernização da matemática no Brasil Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004. p. 85-149.
  • CONTRERAS, José Domingo. Clase 3: cualidades educativas de la relación. In: CONTRERAS, José Domingo. Asignatura La Relación Educativa: experiencia y saber pedagógico. Máster Investigación y Cambio Educativo. Barcelona, 18 oct. 2018. Curso 2018-2019.
  • CONTRERAS, José Domingo. Ponerse a la escucha. Cuadernos de Pedagogía, España, n. 430, p. 63-65, ene. 2013.
  • CONTRERAS, José Domingo. Ser y saber en la formación didáctica del profesorado: una visión personal. Revista Interuniversitaria de Formación del Profesorado, Zaragoza, v. 24, n. 2, p. 61-81, ago. 2010. Disponível em:Disponível em:https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27419198004 Acesso em:20 jun. 2016.
    » https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27419198004
  • CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, v. 2, p. 177-229, 1990.
  • DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, maio/ago. 2006. Disponível em:Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a11v32n2.pdf Acesso em: 28 set. 2014.
    » http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a11v32n2.pdf
  • DOMINICÉ, Pierre. O processo de formação de alguns dos seus componentes relacionais. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias(org.). O método (auto)biográfico e a formação Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. p. 83-95. (Coleção Pesquisa (auto)biográfica ∞ Educação. Clássicos das Histórias de Vida).
  • DUARTE, Aparecida Rodrigues Silva. Euclides Roxo e a Proposta Modernizadora do Ensino da Matemática. Com a Palavra o Professor, Vitória da Conquista, v. 4, n. 8, p. 300-317, jan./abr., 2019. Disponível em: Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/54 Acesso em:15 ago. 2021.
    » http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/54
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (Coleção Leitura).
  • HOBSBAWM, Eric J. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições Tradução Celina Cardim Cavalcane. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 7-24. (Coleção Pensamento Crítico).
  • JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si Tradução Albino Pozzer. Revisão Maria Helena Menna Barreto Abrahão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010a.
  • JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação Tradução José Claudino e Júlia Ferreira. Revisão científica Maria da Conceição Passeggi e Marie-Christine Josso. 2. ed. rev. e ampl. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010b.
  • JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001. Disponível em:Disponível em:https://core.ac.uk/download/pdf/37742506.pdf Acesso em: 15 jul. 2013.
    » https://core.ac.uk/download/pdf/37742506.pdf
  • MOURA, Jónata Ferreira. Pesquisa-formação: marcas, resistências e apropriações reveladas pela escrita de si no processo de formação acadêmica do estudante de Pedagogia que ensina(rá) Matemática. 2019. 228f. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade São Francisco, Itatiba, 2019.
  • MOURA, Jónata Ferreira; NACARATO, Adair Mendes. Narrativas revelando projetos de si na trajetória de formação docente. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, Salvador, v. 4, n. 12, p. 1125-1140, set./dez. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/6019 Acessado em:15 nov. 2020.
    » https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/6019
  • NACARATO, Adair Mendes. Eu trabalho primeiro no concreto. Revista de Educação Matemática, São Paulo, v. 9, n. 9-10, p. 1-6, 2005. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4489101/mod_resource/content/3/Revista%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20-%20SBEM%20-%20%20v.%209-10%2C%20n.%209%2C%202005.pdf Acesso em: 12 dez. 2015.
    » https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4489101/mod_resource/content/3/Revista%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20-%20SBEM%20-%20%20v.%209-10%2C%20n.%209%2C%202005.pdf
  • NACARATO, Adair Mendes; MENGALI, Brenda Leme da Silva; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion. A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  • NACARATO, Adair Mendes; PASSOS, Cármen Lúcia Brancaglion; CARVALHO, Dione Lucchesi de. Os graduandos em pedagogia e suas filosofias pessoais frente à matemática e seu ensino. Zetetiké, Campinas, v. 12, n. 21, p. 9-33, jan./jun. 2004. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/zetetike/article/view/8646963/13864 Acesso em:10 jul. 2013.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/zetetike/article/view/8646963/13864
  • NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
  • NÜRNBERG, Jóyce. Tabuada: significados e sentidos produzidos pelos professores das séries iniciais do ensino fundamental. 2008. 94 f.Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2008. Disponível em: Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp063655.pdf Acesso em:15 dez. 2018.
    » http://livros01.livrosgratis.com.br/cp063655.pdf
  • PRADO, Guilherme do Val Toledo; FERREIRA, Cláudia Roberta; FERNANDES, Carla Helena. Narrativa pedagógica e memoriais de formação: escrita dos profissionais da educação?Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 12, n. 26, p. 143-153, set./dez. 2011. Disponível em:Disponível em:https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24216 Acesso em: 15 dez. 2018.
    » https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24216
  • PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura. Memorial de formação: quando as memórias narram a história da formação... In: PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura (org.). Porque escrever é fazer história: revelações, subversões, superações. Campinas: Alínea, 2007. p. 45-59.
  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia São Luís: UFMA, 2007.
  • VALENTE, Wagner Rodrigues. A aritmética na escola ontem. In: VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). A aritmética nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. São Paulo: Livraria da Física, 2016. p. 11-40.
  • VIÑAO FRAGO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares e reformas Odivelas: Edições Pedago, 2007.
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil - Código de Financiamento 001.
  • 2
    Acreditamos que o termo formação inicial não seja plausível para determinar o início da formação de um profissional da Educação, haja vista seus anos de escolarização básica serem sua primeira formação. Assim, entendemos que um curso em nível superior é mais uma das etapas da formação desse profissional, por isso usamos a expressão formação acadêmica.
  • 4
    “La experiencia humana concreta como una descripción de las intenciones, mediante una secuencia de eventos en tiempos y lugares, en donde los relatos biográfico-narrativos son los medios privilegiados de conocimiento/investigación.”
  • 5
    “el asunto se juega entre no sacralizar los relatos, ni tampoco asimilarlos a tradicionales modos paradigmáticos de conocer.”
  • 6
    Memorial de Formação.
  • 7
    Narrativa Pedagógica.
  • 8
    Daniel usou a tabuada do 6 de forma equivocada, pois o correto é: 1 x 6, 2 x 6, 3 x 6, etc. No entanto, ao explicar o significado da multiplicação, ele usou a tabuada corretamente, desconsiderando as multiplicações indicadas, pois 6 duas vezes é exatamente 2 x 6 ou 6 + 6.
  • 9
    O grupo foi criado em 2010 e é certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), congrega estudantes de Pós-Graduação, de Pós-Doutoramento e pesquisadores egressos que ainda mantêm vínculo com o grupo. Tem como foco o método (auto)biográfico, dedicando-se a estudar e analisar pesquisas que tomam as narrativas em suas múltiplas perspectivas: narrativas pedagógicas, narrativas de vida e formação e pesquisa narrativa.
  • 3
    É importante destacar que o projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco (USF), com o parecer n.o 1.564.633.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    01 Abr 2023
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antonio Carlos, 6627., 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil, Tel./Fax: (55 31) 3409-5371 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revista@fae.ufmg.br