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PARECER AVALIATIVO REFERENTE AO ARTIGO “ENGAJAMENTO, DELIBERAÇÃO E INFORMAÇÃO: COMO OS ESTUDANTES PENSAM A DEMOCRACIA”1 1 Editora participante do processo de avaliação por pares aberta: Suzana dos Santos Gomes

EVALUATION OPINION REGARDING THE ARTICLE “ENGAGEMENT, DELIBERATION, AND INFORMATION: HOW STUDENTS THINK ABOUT DEMOCRACY”

OPINIÓN DE EVALUACIÓN DEL ARTÍCULO “PARTICIPACIÓN, DELIBERACIÓN E INFORMACIÓN: CÓMO PIENSAN LOS ESTUDIANTES SOBRE LA DEMOCRACIA”

É inegável a importância e o papel que as instituições educacionais e de seus agentes cumprem na preparação dos indivíduos enquanto cidadãos e sujeitos politicamente ativos. Essa ideia, recorrente nos meios sociais e educacionais, sem a devida reflexão acerca da formação para a cidadania e das condições materiais e culturais que permitam o exercício pleno e efetivo da cidadania, torna-se apenas um slogan, repetido à exaustão. Para a pergunta “cidadania e democracia se aprendem?” a resposta tem sido sim! Cidadania e democracia podem ser aprendidas através da educação, da escola, da participação cívica e política. A formação de cidadãos críticos e atuantes, capazes de transformar a realidade em que vivem é uma função geralmente atribuída à educação nas sociedades democráticas.

Este tema aparece em documentos e proposições de organismos internacionais como Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), ao tratar a educação e a democracia na conformação de uma cidadania global. A educação para a cidadania global (ECG) proposta por essa agência foi apresentada em dois documentos principais: “Preparando alunos para os desafios do século XXI” (2014) e “Tópicos e objetivos de aprendizagem” (2015). A ideia consiste em desenvolver nos indivíduos uma consciência crítica sobre questões globais, como a pobreza, a desigualdade social, a violência e a degradação ambiental, além de promover ações que contribuam para a construção de um mundo mais justo e sustentável. Entende-se que essa educação é fundamental para a formação de cidadãos ativos e engajados na construção de uma sociedade mais justa e democrática (CABRAL; MORENO, 2023CABRAL, Guilherme Perez; MORENO, Viviane Tavares Leite. Educação para a cidadania global (UNESCO): um discurso reformista neoliberal. Belo Horizonte: Rev. Carta Internacional, v. 17, n. 3, e1255, 2022, DOI: 10.21530/ci. Disponível em: Disponível em: https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/1255 . Acesso em 06 de jun. 2023.
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).

Ao analisar esses documentos, Cabral e Moreno (2023CABRAL, Guilherme Perez; MORENO, Viviane Tavares Leite. Educação para a cidadania global (UNESCO): um discurso reformista neoliberal. Belo Horizonte: Rev. Carta Internacional, v. 17, n. 3, e1255, 2022, DOI: 10.21530/ci. Disponível em: Disponível em: https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/1255 . Acesso em 06 de jun. 2023.
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) questionam as perspectivas transformadoras anunciadas e as armadilhas presentes na proposta da educação para a cidadania global. Segundo os autores, o objetivo da ECG de “empoderar alunos para que eles se engajem e assumam papéis ativos, tanto local quanto globalmente, para enfrentar e resolver desafios globais” e contribuir de forma “proativa” com a “transformação” (UNESCO, 2015 apud CABRAL; MORENO, 2023CABRAL, Guilherme Perez; MORENO, Viviane Tavares Leite. Educação para a cidadania global (UNESCO): um discurso reformista neoliberal. Belo Horizonte: Rev. Carta Internacional, v. 17, n. 3, e1255, 2022, DOI: 10.21530/ci. Disponível em: Disponível em: https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/1255 . Acesso em 06 de jun. 2023.
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, p. 10), torna-se “vazio” ao não enfrentar os “sistemas de exclusão”, que no sistema moderno-colonial é atravessado pelos eixos fundamentais de distinção e classificação social (classe, gênero e raça), ou seja, não se enfrenta a realidade internacional de dominação, exploração e exclusão. A noção de democracia é reduzida ao liberalismo. E, apartada da esfera econômica, a democracia é enfraquecida, isolada e confinada à esfera política normativa abstrata, referida a procedimentos formais. A conclusão a que chegam indica que “o programa da UNESCO perde-se nas suas próprias questões, superficialmente analisadas”, em formulações genéricas, conciliadoras e reformistas. Serve, portanto, “de instrumento ao imperialismo capitalista. Forma o cidadão empreendedor hábil à sobrevivência no mercado”. O contrário disso, pensar de modo crítico a educação para a cidadania e democracia, implicaria “questionar o vocabulário internacionalista e seus lugares-comuns”, enfrentar as tensões e armadilhas envoltas nesse tema, assim como, as “enormes dificuldades que se opõem à emancipação em nossa organização do mundo, submetidos que estamos à ‘potência avassaladora do existente’” (CABRAL; MORENO, 2023CABRAL, Guilherme Perez; MORENO, Viviane Tavares Leite. Educação para a cidadania global (UNESCO): um discurso reformista neoliberal. Belo Horizonte: Rev. Carta Internacional, v. 17, n. 3, e1255, 2022, DOI: 10.21530/ci. Disponível em: Disponível em: https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/1255 . Acesso em 06 de jun. 2023.
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, p. 21).

Compreender como os jovens do Ensino Médio de uma escola pública entendem o conceito de democracia é o principal objetivo do artigo “Engajamento, deliberação e informação: como os estudantes pensam a democracia”. O texto é resultado de pesquisa realizada em uma escola pública do município de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, por meio da qual se indaga aos estudantes “O que é democracia?”. Segundo os autores, o entendimento sobre esta noção é tido como essencial para “o engajamento cívico efetivo”, como também, pode indicar os efeitos da educação para a vida pública, daí a importância da discussão sobre a educação política, sobre as formas e manifestações do engajamento cívico dos jovens brasileiros, assim como dos elementos que têm limitado e/ou obstaculizado a participação e o engajamento cívico juvenil.

A problematização do estudo trazida na introdução do artigo indaga sobre as noções de democracia, participação popular, educação política e cidadania, dentre outros conceitos importantes para a compreensão dos limites da formação cívica e do papel da escola como “promotora de espaços comuns para debates e discussões acerca das demandas dos jovens e de preparo para a atuação cidadã destes na vida adulta”. Nesta direção, indicam a relação positiva entre a educação cívica e a democracia, cuja existência, nas palavras dos autores, exige “esforços explícitos para permitir a formação de um povo capaz de engajar-se em formas de autogoverno”. Na sequência afirmam que “o tema da política deve ser apresentado de maneira formal e a instituição que deve responsabilizar-se por essa introdução é a escola. Compreende-se que, para a participação popular poder ser algo viável em termos sociais, ela precisa ser introduzida pedagogicamente à população”. Contudo, os conhecimentos sobre o funcionamento da esfera pública necessários ao engajamento cívico não estão inseridos no currículo escolar e não fazem parte “de um conhecimento reconhecidamente essencial para o sistema educacional brasileiro”. Além da ausência de uma educação cívica e política que propicie um entendimento sobre como funciona o sistema democrático e como participar ativamente da tomada de decisões políticas, vigora na sociedade brasileira, “um sentimento de desconfiança em relação às instituições que fundamentam o nosso sistema democrático, dificultando ainda mais o funcionamento efetivo do mesmo”.

Os autores dão bastante ênfase à educação política como possibilidade de melhorar a “confiança da população em relação à política”, gerar atitudes cívicas, facilitar ações coletivas e intensificar a participação popular. A baixa capacidade de engajamento cívico ou mesmo o debate sobre a formação cívica e política contrasta com a história de participação popular no município em que a escola dos jovens pesquisados se encontra. Porto Alegre foi uma das cidades pioneiras na implantação do Orçamento Participativo (OP). Implantado no município em 1989, ou seja, com mais de 30 anos de execução (obviamente com mudanças importantes ao longo desse período), o OP foi considerado uma experiência bem sucedida de participação deliberativa na definição de prioridades de investimento e de democratização das relações entre Estado e sociedade no Brasil.

Santos (2007SANTOS, Maria Rosimary Soares. Autonomia, participação popular e educação em um contexto de reforma do Estado. Marília, 2007. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2007.), ao investigar essa e outras experiências de OP desenvolvidas no país destaca a ênfase que a literatura sobre o tema dava à existência de uma dimensão formadora dos sujeitos que participavam desses espaços. Para além de participar diretamente da tomada de decisões sobre as obras e os programas que as prefeituras deveriam executar, os cidadãos também passavam a entender a política no âmbito do município, o orçamento público, as carências sociais e outras questões da cidade. A prática do OP seria, portanto, “pedagógica” ao instituir “um novo saber político nos sujeitos que nele atuam”, que “passam a confiar e a reconhecer a importância da participação direta na efetivação de suas demandas, desenvolvendo uma nova cultura democrática e participativa em oposição a práticas políticas tradicionais de tipo clientelistas”. A participação nesse espaço político traria “aprendizados importantes para a ampliação da cidadania e da democracia” ao conter “um princípio pedagógico cuja direção aponta para a transformação das relações políticas e criação de uma esfera pública transparente e democrática” (SANTOS, 2007SANTOS, Maria Rosimary Soares. Autonomia, participação popular e educação em um contexto de reforma do Estado. Marília, 2007. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2007., p. 93).

Para além do espaço institucional escolar, o aprendizado e a vivência da democracia e da cidadania se dariam e se dão em outros espaços públicos, como foi o caso do OP. A escola no município não estava apartada desse movimento, no início dos anos de 1990, Porto Alegre experienciou a chamada “Escola Cidadã”. Segundo afirma Azevedo (2000AZEVEDO, José Clóvis de. ESCOLA CIDADÃ: Políticas e Práticas. Disponível em: Disponível em: http://23reuniao.anped.org.br/textos/te13b.PDF . Acesso em 06 de jun. 2023.
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, p. 10), tratou-se de levar para a educação a discussão da democratização do Estado que orientava a administração municipal, ou seja, “democratizar o Estado também na esfera educacional”. Ainda nas palavras do autor, “operar na educação a metamorfose política que a administração municipal já vinha realizando através do Orçamento Participativo da Cidade, ou seja, a transformação do Estado (esfera municipal) numa instituição realmente pública a serviço da formação, da conquista e do exercício da cidadania”.

No espaço dessa resenha não será possível refazer a história, desdobramentos e limites dessas experiências, contudo, a ausência de qualquer referência a elas no artigo nos faz indagar sobre o alcance e lastro que deixaram para os jovens estudantes na atualidade.

O estudo é estruturado a partir da pesquisa qualitativa e exploratória com estudantes do Ensino Médio de uma escola do município de Porto Alegre. Em um formulário online 197 jovens estudantes foram indagados sobre o que é democracia, cidadania e outros temas referentes à esfera pública. Na sistematização são identificados, inicialmente, os temas mais relevantes nas respostas dos alunos. Na sequência, esses temas são agrupados em cinco eixos temáticos: Democracia e Igualdade; Opinião e Liberdade; Poder do Povo; Poder da Maioria; Poder do Voto. Essa categorização se deu por meio do "método de Análise Temática", que conforme os autores, “procura identificar e interpretar padrões encontrados nos dados coletados, a partir de etapas”.

As respostas dos estudantes, agrupadas nos cinco eixos temáticos e discutidas no artigo, apontariam que as ideias dos jovens do Ensino Médio sobre a democracia estariam apoiadas em “narrativas de certa forma teóricas e de senso comum”, além de não evidenciar um maior envolvimento dos alunos com o assunto. O “caráter suscinto” mesmo que correto das respostas sugere tal situação. Contudo, ressaltam que isso não seria suficiente para afirmar que os jovens da pesquisa não estariam “aptos para a vida pública e para transitar em diferentes espaços que exigem ação cívica”.

O estudo instiga o importante debate sobre a relação de jovens estudantes com a política e com a democracia, assim como a importância da escola e da educação na formação política da juventude brasileira. Indaga ainda sobre os limites das redes sociais, que pode ser “produtiva e relevante” para a ação política, mas a mobilização e as lutas sociais não podem ser reduzidas às redes sociais. Os autores ressaltam a importância dos espaços públicos de decisão e deliberação democrática, assim como as dificuldades quanto ao acesso a esses espaços por jovens estudantes. Finalizam, defendendo que “o conhecimento sobre política é um direito fundamental e que deve ser garantido pelo Estado, assim como outros direitos básicos”.

Como sugerimos no início da resenha, o tema tratado no artigo é bastante relevante face ao avanço de movimentos e ações contrários à uma vivência democrática e plural, que têm colocado em risco o Estado democrático e os direitos da cidadania. Contudo, também se faz necessário pensar de modo crítico como essas demandas são apresentadas às escolas. Fica o convite para a leitura e para o debate dessas e outras questões abordadas no artigo.

REFERÊNCIAS

  • AZEVEDO, José Clóvis de. ESCOLA CIDADÃ: Políticas e Práticas. Disponível em: Disponível em: http://23reuniao.anped.org.br/textos/te13b.PDF Acesso em 06 de jun. 2023.
    » http://23reuniao.anped.org.br/textos/te13b.PDF
  • CABRAL, Guilherme Perez; MORENO, Viviane Tavares Leite. Educação para a cidadania global (UNESCO): um discurso reformista neoliberal. Belo Horizonte: Rev. Carta Internacional, v. 17, n. 3, e1255, 2022, DOI: 10.21530/ci. Disponível em: Disponível em: https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/1255 Acesso em 06 de jun. 2023.
    » https://doi.org/10.21530/ci» https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/1255
  • SANTOS, Maria Rosimary Soares. Autonomia, participação popular e educação em um contexto de reforma do Estado. Marília, 2007. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2007.

Editado por

1
Editora participante do processo de avaliação por pares aberta: Suzana dos Santos Gomes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2023
  • Aceito
    17 Jun 2023
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