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BNCC DE GEOGRAFIA DO ENSINO FUNDAMENTAL E AS CONTRADIÇÕES PARA UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL E ANTIRRACISTA

BNCC DE GEOGRAFÍA PARA LA EDUCACIÓN PRIMARIA Y LAS CONTRADICCIONES PARA UNA EDUCACIÓN GEOGRÁFICA DECOLONIAL Y ANTIRRACISTA

RESUMO:

Este artigo estimula o debate sobre as políticas educacionais no Brasil considerando, sobretudo, como as alterações do currículo escolar oferecem implicações diretas para a formação docente e a transformação social da realidade brasileira. O objetivo é desevolver uma análise sobre as contradições da Base Nacional Curricular Comum - BNCC para a promoção de uma educação geográfica decolonial e antirracista. Para isso, o documento foi submetido a uma análise dos conteúdos e referenciais associados às questões étnico-raciais apresentados no seu texto introdutório e, nos descritores de habilidades e competências orientados para a disciplina Geografia no Ensino Fundamental. A análise possibilitou a identificação de um conjunto de contradições e uma série de retrocessos estruturais e conjunturais que não garantem o desenvolvimento de uma duração decolonial e antirracista a partir da geografia. Alguns desses resultados reiteram que a BNCC foi produzida como parte das ações de agentes sociais conservadores da sociedade brasileira, portanto, demonstra baixas possibilidades de promoção de uma educação transformadora e emancipatória.

Palavras-chave:
sistema educacional; ensino fundamental; educação geográfica; currículo

RESUMEN:

Este artículo debate las políticas educativas en Brasil considerando cómo los cambios en el currículo educativo tienen implicaciones directas para las prácticas docentes y las transformaciones sociales de la realidad brasileña. El objetivo es analizar los límites de la Base Curricular Nacional Común - BNCC (nuevo sistema educativo brasileño) para la promoción de una educación decolonial y antirracista. Para ello, el documento fue sometido a un análisis de los contenidos y referencias asociadas a las cuestiones étnico-raciales presentadas en su texto introductorio y, en particular, en los descriptores de habilidades y competencias orientadas a la asignatura Geografía en la Enseñanza Fundamental. El análisis permitió identificar un conjunto de contradicciones y una serie de retrocesos estructurales y coyunturales que no garantizan el desarrollo de una educación decolonial y antirracista. Algunos de estos resultados reiteran que el BNCC fue producido como parte de las acciones de los agentes sociales conservadores en la sociedad brasileña, por lo tanto, demuestra bajas posibilidades de promover una educación emancipadora.

Palabras clave:
educación primaria; educación transformadora; educación geográfica; currículo

ABSTRACT:

This article debates the educational policies in Brazil considering how changes in the education curriculum have direct implications for teaching practices and the social transformations of Brazilian reality. The objective is to analyze the limits of the Common National Curricular Base - BNCC (the new Brazilian education system) for the promotion of a decolonial and anti-racist education. For this, the document was subjected to an analysis of the contents and references associated with the ethnic-racial issues presented in its introductory text and, in particular, in the descriptors of skills and competences oriented to the subject Geography in Elementary School. The analysis made it possible to identify a set of contradictions and a series of structural and conjunctural setbacks that do not guarantee the development of a decolonial and anti-racist education. Some of these results reiterate that the BNCC was produced as part of the actions of conservative social agents in Brazilian society, therefore, it demonstrates low possibilities of promoting an emancipatory education.

Keywords:
elementary education; transforming education; geographic education; curriculum

INTRODUÇÃO

Políticas e sistemas educacionais também preciam ser sempre submetidas à análise e interpretações críticas, para que essas possam indicar tanto as implicações na adequação curricular e nos espaços acadêmicos de formação, quanto, e principalmente, avaliar os impactos no cotidiano escolar e as possibilidades de transformação da sociedade.

No Brasil, esse momento está em curso, sendo representado pela recente elaboração e implantação da Base Nacional Curricular Comum - BNCC em 2018. Em linhas gerais, a BNCC é o documento que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação - PNE (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE. Diário Oficial da União: Poder Legislativo, Brasília-DF, 26 jun. 2014, edição extra, p. 1.).

E a realidade brasileira apresenta uma variedade importante de instituições de ensino, e em momentos como esse, movimentos sociais para defesa da educação sumariamente questionam as possibilidades de acesso ao direito à educação de qualidade à qual grande parte da população não tem, historicamente, tido acesso.

Os argumentos utilizados para explicar essas dificuldades contemplam desde justificativas formais dos sistemas de educação - orientadas pelos dicursos sobre a extensão continental do país, até as condições implicadas pela diversidade regional e ambiental, pluralidade étnica, racial e identidades no território nacional.

Nessa perspectiva, os argumentos mais conservadores tratam dessas questões como excepcionalidades, ou seja, considerando-as uma preocupação exarcebada com o futuro das gerações, e que a superação de problemas históricos é sempre um devir. Não à toa, os problemas da educação são sempre relativizados na contemporaneidade, e o debate mais radical é suprimido, já que supostamente não ofereceria caminhos alternativos à história no presente.

Notadamente contrários ao princípios democráticos, esses argumentos em grande parte são reivindicados pelos agentes hegemônicos da educação como principais entraves para a construção de políticas públicas no âmbito nacional, mas também formam uma espécie de álibi para legitmar e manter os projetos de desenvlvimento de uma sociedade desigual, injusta e antidemocrática.

Por isso, apesar dos ideiais mais conservadores, a discussão do processo de educação no país pode ser fundamentada no sentido de abrir essas questões e ampliar o arco de possibilidade para a problematização dessas posturas e incoenrências, considerando por exemplo, a implementação de um novo processo educacional que considere a diversidade étnica e racial da formação socioespacial brasileira.

A título de exemplificação, as Leis Federais 10.639/03 (Brasil, 2003BRASIL. Lei 10.639, de 9 de Janeiro de 2003. Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências, 2003Disponível em: http://www.planalto.gov.br>leis>2003>/.../.
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) e 11.645/08 (Brasil, 2008BRASIL . Lei. 11.645, de 10 de Março de 2008. Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no10.639, de 9 de Janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília-DF, 2008. Disponível em: http://www. planalto.gov.br>leis>2008>/.../.
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), que tornaram obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, têm colocado, no centro do debate, a politização dos conteúdos escolares, ainda clássicos e tradicionais, para orientar práticas pedagógicas que estimulem o combate à discriminação étnico-racial e de gênero no Brasil.

Neste escopo, o presente artigo estimula esse debate a partir de: qual é o projeto de nação elaborado a partir da nova BNCC para o Brasil? De que modo seus conteúdos podem estimular processos de transformação da sociedade brasileira, sobretudo no combate ao racismo e à cultura colonial?

Assim, o objetivo é avaliar os conteúdos referentes à disciplina Geografia no Ensino Fundamental apontando suas contradições para uma educação geográfica decolonial e antirracista.

Para isso o texto foi dividido em quatro partes. Na primeira discuti-se os processos utilizados para análise da BNCC realizados a partir do tratamento dos descritores de conteúdos e de competência. Em seguida, apresenta-se aspectos históricos da organização da política e as condições conflituosas de sua formulação, e depois, a análise dos conteúdos apresentados nas unidades temáticas e sua relação com os princípios para um educação geográfica antirracista e decolonial. Finaliza-se o texto com as considerações finais.

Metodologia

A avaliação dos conteúdos referentes à disciplina Geografia no Ensino Fundamental da nova BNCC foi desenvolvida a partir da análise do tratamento das questões étnico-raciais no documento, de modo que a identificar os níveis de contribuição para uma educação geográfica decolonial e antirracista, e o da sistematização dos aspectos históricos que ajudam a contextualizar o escopo, os agentes envolvidos na formulação, a elaboração e a implantação desse documento no Brasil como um todo.

Assim, os conteúdos analisados remeteram-se às unidades temáticas apresentadas para a disciplina de Geografia dos ciclos fundamentais I e II(anos iniciais e anos finais), elencados no descritores de conteúdos e de competência.

Destaca-se que no documento, cada unidade temática é designada por um código alfanumérico, como identificador do nível de ensino, por exemplo, a sigla EF, significa a unidade relacionada ao Ensino Fundamental, e EM para Ensino Médio. Depois da identificação da série, o código apresenta a sigla da disciplina, neste caso Geografia (GEO), com a última estrutura representando a ordem da habilidade por série escolar.

Não há nenhum problema em designar códigos alfanuméricos para indicação de unidades temáticas. Mas sua importância para a análise contemplou a valorização de uma divisão minuciosa de temas e conceitos, que indicam não só a composição do currículo, mas, sobretuto, o caráter lógico de níveis separados do processo de ensino.

Neste sentido, a análise partiu da organização das prescrições de conteúdo nas cinco unidades temáticas para este nível de Ensino, a saber: 1) o sujeito e seu lugar no mundo; 2) conexão e escalas; 3) mundo do trabalho; 4) formas de representação e pensamento espacial; 5) natureza, ambiente e qualidade de vida. Na BNCC, essas unidades são subdivididas em objetos do conhecimento (conteúdos) e se multiplicam em uma diversidade de habilidades específicas distribuídas para cada série.

Os descritores de competência, por sua vez, designam a coerência da mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos) e habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), que possam direcionar atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Esse caráter foi essencial para extrair, do documento, o grau de complexidade da compreensão dos conteúdos e a definição de objetos de conhecimentos e habilidades que deveriam garantir a continuidade e a progressão das aprendizagens dos anos iniciais aos finais do ensino fundamental.

Todos esses parâmetros foram utilizados separadamente para desenvolver avaliações sobre os elementos conceituais, formativos e pedagógicos que envolvem os limites, as possibilidades, os retrocessos e os avanços e, principalmente, as contradições da BNCC para uma educação antirracista e decolonial, levando em consideração a aderencia às recomendações apresentadas nas Leis Federais 10.639/03 e 11.645/08, a coerência para uma gestão democrática e cidadã da educação no país (Lei de Diretrizes e Bases da Educação ou Lei nº 9.394/1996BRASIL. Lei 10.639, de 9 de Janeiro de 2003. Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências, 2003Disponível em: http://www.planalto.gov.br>leis>2003>/.../.
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), além de contribuições teóricas e metodológicas de estudiosos que se dedicam ao debate étnico-racial, antirracismo e decolonialidade.

CRIVO INTRODUTÓRIO: AS CONTRADIÇÕES INICIAIS DA BNCC

A construção de um currículo nacional ocorre a partir de uma rede assimétrica de relações de poder. Neste caso, o currículo, transformado de fato em um campo de disputa, é o instrumento central que deve ser usado para garantir a permanência de uma determinada ordem social, ao passo que também serve para legitimar determinadas visões de mundo, e invisibilizando outras (ARROYO, 2011ARROYO, M. G. Currículo, território em disputa. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.).

Por meio do currículo escolar, diferentes agentes e sujeitos sociais, com visões de educação e perspectivas políticas distintas, podem entrar em conflito e negociarem suas concepções e modelos de sociedade, definindo intencionalmente os conteúdos e os temas que são imprescindíveis para a formação de um sujeito representativo desse projeto (dimensão política), como também deliberando sobre as formas operacionais e didáticas que deverão ser implementadas para desenvolvê-lo (dimensão pedagógica). Sendo assim, a construção de um currículo nacional ocorre sempre por meio de várias tensões, e, com a BNCC, a contradição se deu a partir de conflitos políticos e ideológicos do entendimento de projetos de sociedade.

No Brasil, a exigência de uma base curricular comum para a educação básica aparece inicialmente no artigo 210 da Constituição Federal (1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília- DF: Centro Gráfico do Senado Federal, 1988.) e, em seguida, no artigo 26 da Lei nº 9.394BRASIL . Lei. 11.645, de 10 de Março de 2008. Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no10.639, de 9 de Janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília-DF, 2008. Disponível em: http://www. planalto.gov.br>leis>2008>/.../.
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/96 - Lei das Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, que estabelece que os currículos do Ensino Fundamental e Médio

[...] devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9394/96. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília-DF, 1996 Disponível em: http://www.planalto.gov.br>leis>20031996>/.../.
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).

A diretriz revela uma preocupação nacional para com a educação no país, e essa primeira Base Comum Curricular chegou a ser parcialmente atendida e reduzida a apenas uma referência para a educação básica com os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs (Brasil, 1997, 1998, 2000), que, por sua vez, não foram admitidos como uma obrigação legal.

O impacto maior desse plano, sem dúvida, ocorreu principalmente na possibilidade de serem pautados os conteúdos fundamentais necessários aos currículos escolares, sobretudo aqueles que apresentam algum direcionamento para as avaliações nacionais do Ensino Fundamental e Médio, como a Prova Brasil, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e, mais recentemente, o Plano Nacional de Educação Lei nº 13.005/2014BRASIL. Ministério da Educação. Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE. Diário Oficial da União: Poder Legislativo, Brasília-DF, 26 jun. 2014, edição extra, p. 1.(Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE. Diário Oficial da União: Poder Legislativo, Brasília-DF, 26 jun. 2014, edição extra, p. 1.).

A primeira versão da BNCC- Educação Infantil e Ensino Fundamental foi publicada em junho de 2015, durante o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Esse documento foi elaborado inicialmente por especialistas da educação e, em seguida, entregue para a apreciação da sociedade, quando contou com mais de 12 milhões de contribuições elaboradas por consulta pública e agentes e profissionais da educação, através do Fórum Nacional de Educação (FNE).

Pode-se afirmar que a BNCC de 2015 foi um documento construído, de fato, sob os princípios da participação democrática e serviu para subsidiar a reformulação do segundo documento, dando origem à versão publicada em maio de 2016. Entretanto, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, a gestão do presidente Michel Temer, deliberadamente, substituiu a segunda versão do documento por uma terceira, apresentada em março de 2017 - a chamada nova BNCC.

Apesar das severas críticas, em especial sobre a falta de participação popular e discussão pública do documento, a nova BNCC foi aprovada, reforçando a fragmentação da educação em dois documentos: o da Educação Infantil e Ensino Fundamental em novembro de 2017 e o do Ensino Médio em 2018.

De forma geral, a BNCC tem caráter normativo e contempla não somente o que pode ser ensinado e aprendido nas instituições de ensino, mas sobretudo, como o país concebe seus princípios formativos para o desenvolvimento da educação para as futuras gerações e enquanto componente das políticas públicas e do projeto de nação.

É importante, então, considerá-la como resultado de um golpe, provocado pelas forças conservadoras da sociedade brasileira e usado, no setor educacional, para criar um currículo nacional que corroborasse a manutenção de um projeto de nação liberal, elistista, conservador, antidemocrático e racista. Esse projeto torna-se evidente quando se colocam alguns argumentos.

Em primeiro lugar, não foi garantida a continuidade do processo democrático desenvolvido e contemplado nas versões anteriores. A participação popular da chamada “terceira versão” foi muito reduzida, já que sua organização resultou apenas de conferências regionais, o que implicou a concentração das decisões exclusivamente em algumas cidades. Por exemplo, na Região Norte, a conferência ocorreu na cidade de Manaus-AM, no Nordeste, em Recife-PE, no Sul, em Florianópolis-SC, no Sudeste, em São Paulo-SP e, no Centro-Oeste, em Brasília-DF.

Em segundo, por ser apressadamente aprovada por um governo notadamente neoliberal, a representação no currículo explicita mais os interesses dos setores conservadores ou grupos empresariais da sociedade brasileira, como os grupos econômicos da Fundação Lemann, Fundação Airton Senna, Fundação Itaú Social (Movimento pela Base Nacional Comum) e Todos pela Educação, que se opuseram ao currículo proposto desde sua primeira versão, mas que, no governo Temer, encontraram caminhos abertos para propor e ditar o currículo organizado a partir de competências e habilidades que atendessem às aspirações acríticas e conformistas de uma educação direcionada apenas para o mundo do trabalho.

Reconhece-se que a BNCC é enfática e repetitiva no debate acerca da garantia de direitos iguais de aprendizagem, sobre a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conhecimento e o estímulo à sua aplicação na vida real, sobre a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende e sobre o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e na construção de seu projeto de vida.

Essa visão tem auxiliado na forma como o documento foi e tem sido usado por diversos agentes produtores de livros e material didático. Quanto a esse aspecto, o novo currículo atende à exigência do mercado editorial no sentido de elaborar uma proposta pedagógica única para todo o território nacional, o que facilita a padronização e homogeneização dos conteúdos distantes da realidade escolar concreta, que não atendem aos argumentos sobre a diversidade, autonomia e formação emancipadora, pelo contrário, os reduzem a discurso altamente idealista e sedutor, a uma leitura apressada e acrítica.

Para garantir um currículo notadamente conservador e liberal, a BNCC também rompe com o desenvolvimento processual e contínuo da educação, já que houve a separação quase absoluta entre Educação Infantil/Ensino Fundamental e o Ensino Médio, em dois documentos construídos em tempos distintos.

Quanto às inconsistências teóricas, na Introdução, evidencia-se que o documento não apresenta os conceitos e definições fundamentais do processo educativo, como, por exemplo, o que se entende por educação, currículo e avaliação em termos de uma base considerada comum. Essa contradição também é observada no conjunto de habilidades, que, em grande parte, valoriza o termo “diversidade”, sem apresentar sua concepção, já que o conceito pode indicar diferentes acepções, em termos teóricos, de conteúdo e prática pedagógica.

Além disso, todos esses processos são supervalorizados exclusivamente pela pedagogia das competências, amplamente criticada desde a década de 90 no Brasil. De forma geral, essa abordagem pedagógica defende abertamente uma educação voltada para atender às demandas do mercado de trabalho em uma economia neoliberal, que tanto se resume à lógica de um processo formativo exclusivo em saber-fazer, como também fortalece, sobremaneira, os princípios da meritocracia, ao passo que reduz as possibilidades de formação cidadã-crítica (GIROTTO, 2017GIROTTO, E. D. Dos PCNs à BNCC: o ensino de geografia sob o domínio neoliberal. GeoUerj, n. 1, v. 2. p. 419-439, 2017)

Para além das contradições estruturais, a BNCC também apresenta alguns equívocos formais. Por exemplo, ao final do texto introdutório de 15 páginas, segue-se uma divisão das etapas de ensino por componente curricular com mais de 500 páginas, centenas de quadros e longas listas de habilidades, cada qual antecedida de um descritor composto por oito dígitos, entre letras e números, para facilitar a elaboração de itens das provas nacionais. Em uma leitura atenta, o caráter prescritor da BNCC entra em contradição com as concepções apresentadas logo na introdução (concepções de currículo interdisciplinar) e corrobora a pedagogia clássica (conteudista e fragmentada), que sempre existiu nos currículos da educação básica brasileira.

Outra exclusão que marca a BNCC foi a retirada dos conceitos de identidade de gênero e diversidade sexual, por conta da pressão da denominada “bancada da Bíblia” do Congresso (grupo de políticos cristãos de viés reacionário) no governo Temer, justificadas pelos ideais de “manutenção dos valores da família tradicional brasileira” (composta de pai,mãe e seus filhos), que, na lógica, atende mais à representação e à manutenção do patriarcado e da colonialidade, do que à real situação da família brasileira.

Em parcela significativa, porém, a família no Brasil vem apresentando uma diversificação importante, observada tanto no crescimento de famílias compostas por mães e pais sozinhos (ou solos), casais de divorciados que unem suas famílias, crianças que são criadas pelos avós, e ainda famílias coparentais ou formadas por casais homoafetivos (IBGE, 2015INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD). Brasília-DF, 2015 Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br>livros/.../.
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).

Essa contradição é impeditiva para processos de reflexão sobre as iniquidades no espaço geográfico, uma vez que, o colonialismo, o patriarcalismo, e o capitalismo são os três principais sistemas de opressão no mundo moderno (SANTOS, 2019SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72).

A questão, por isso, se amplia e se dimensiona ao se pensar sobre os impactos dessas contradições para uma educação geográfica decolonial e antirracista. É possível ter uma aprendizagem significativa e entender as complexidades da realidade de uma sociedade diversa e intercultural apenas operando o conceito de classe social? Como um currículo nacional, depois de tantos avanços nos diálogos sobre interseccionalidade, pode repetir uma leitura de mundo cega à presença de pessoas LGBTQI+ e de espaços geográficos não generificados?

Por isso, no que se refere aos anseios de um currículo escolar que possa transgredir o lugar comum que ignora impactos assimétricos de poder, em relação aos regimes de representação e autorização de fala de sujeitos subalternizados (DINIZ; & MOURA, 2020DINIZ, V. L. D., & Moura, O. de. Interlocuções sobre currículo e a implementação da BNCC de Geografia: buscando pedagogias decoloniais para o contexto amazônico. Revista e-Curriculum, São Paulo, n.18, v. 4, p. 1668-1690, 2020. http://dx.doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i4p1668-1690
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), tal proposta não foi atendida no novo currículo nacional. Infelizmente, a BNNC vigente não consegue romper os cânones ocidentais e hetenormativos de sentido de mundo, não questiona os conhecimentos invisibilizados e os processos de controle de poder que têm, como estratégia, a dominação pautada em concepções de raça, gênero e classe.

A BNCC ainda aposta na composição de um currículo sob a lógica de perpetuação do domínio do poder hegemônico nacional, vinculado aos interesses do capitalismo global, com a intenção de reduzir os conflitos étnico-raciais e de gênero e implementar a eficiência do Estado neoliberal na produção do espaço geográfico

Por esse viés as supressões pontuadas sugerem posicionamentos heteropatriarcalistas e conservadores, oriundos de uma interferência reacionária que afeta, profundamente, uma leitura de mundo mais crítica e plural. É evidente que a orientação conservadora e liberal produz um quadro de ocultamento e desconsideração da realidade do Brasil, evidenciada, sobretudo, no discurso colonizador eurocentrado, fundado na continuidade do desenvolvimento capitalista como via de mão única para toda a sociedade.

Por esses aspectos, o processo de implementação da BNCC tem sido marcado por muitos questionamentos, em especial, dos profissionais da educação que refutam implementar esse novo currículo e tentam produzir várias pedagogias de emergência que possam garantir insurgências pedagógicas pautadas em desobediência política e epistêmica ao currículo nacional.

A GEOGRAFIA NA BNCC? LIMITES DA EDUCAÇÃO DECOLONIAL E ANTIRRACISTA

Na BNCC, a Geografia, como disciplina do ensino fundamental, é apresentada como componente curricular da área de Ciências Humanas, sendo contextualizada a partir do desenvolvimento do raciocínio geográfico, que deve ser ativado considerando sete princípios: analogia, conexão, diferenciação, distribuição, extensão, localização e ordem.

No documento, esta disciplina é fundamental para que os estudantes consigam responder algumas questões a respeito de si, das pessoas e dos objetos: Onde se localiza? Por que se localiza? Como se distribui? Quais são as características socioespaciais? Essas perguntas mobilizam as crianças e os adolescentes a pensar sobre a localização de objetos e pessoas, permitindo que compreendam seu lugar no mundo (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p. 367).

Mas deve-se reconhecer que essas questões conseguem contemplar os conteúdos ancorados em pedagogias decoloniais e, por isso, sugerem abrir outras problemáticas para, primeiramente, questionar o sentido dessas localizações no mundo, muito mais do que saber onde fica ou onde está. Nesse aspecto, consideramos que as pedagogias decoloniais, segundo Walsh (2009WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In CANDAU, V. M (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro, 2009, p. 12-43), são cruciais para desenvolver metodologias produzidas em um contexto de práticas insurgentes de lutas e resistências contra a modernidade/colonialidade e que possibilitam aos seres subalternizados maneiras de ser, pensar, estar, saber, sentir, existir e viver fora do padrão da colonialidade de poder, saber e ser, estabelecida a partir do século XVI quando da invasão da América por alguns países europeus. Tais pedagogias questionam, essencialmente, as epistemes da Modernidade geradas pelo colonialismo.

Maldonado Torres (2007MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In S. Castro-Gómez, & R. Grosfoguel (Orgs.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 127-167.) e Quijano (2009QUIJANO, A. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 73-117.) explicam que o colonialismo é resultado de um processo de ocupação territorial de dominação e exploração econômica, militar, jurídica e administrativa que se inicia em 1492, sendo um marco do período histórico denominado Modernidade (1453-1789), impulsionado pelo sistema econômico e político de exploração, o capitalismo comercial e mercantil.

A combinação entre Modernidade, Colonialismo e Capitalismo foi fundamental para a sujeição e desumanização de indígenas e africanos, dominação centrada em uma organização social baseada na ideologia da existência de raças superiores e inferiores. Tal ideologia, como nos apresentam Cesaire (1978CESAIRE, A. Discurso sobre a colonização. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1978.) e Mbembe (2018MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2018.), serviu para justificar discursos de invasão, genocídio, violência e espoliação e, ao mesmo tempo, coisificou o corpo negro e o indígena submetendo-os primeiramente à desumaninação seguida de escravização.

Mesmo após o processo de independência política das ex-colônias, o controle manteve-se contínuo, por meio da colonialidade do poder (sistema de dominação que se mundializa a partir da invasão da América). Quijano (2009QUIJANO, A. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 73-117.) o caracteriza como sendo um sistema ideológico, social, político e econômico de controle do poder combinado com colonialidade do ser (coisificação do outro ao destruir sua identidade, memória, saberes, cultura e linguagem) e colonialidade do saber (apaga outras formas de produção de conhecimento que não sejam as do europeu, não reconhecendo o legado intelectual dos povos subalternizados nos territórios colonizados). Essas três formas de colonialidade agem em conjunto para subalternizar e invisibilizar os corpos racializados, inclusive construindo sua subjetividade.

Sobre as consequências da colonialidade, Santos (2009SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72) ressalta a produção contínua do epistemicídio, que seria o apagamento de conhecimentos produzidos pelos povos subalternizados pelo colonialismo, ou a substituição dos conhecimentos locais por alienígenas. Infelizmente, o genocídio dessas epistemes está presente nos currículos escolares, quando se invisibilizam os conhecimentos, a presença (antes e depois de 1500), as lutas, as religiões, os modos de vida e as experiências dos indígenas e negros em favor de sentidos de mundo eurocêntricos, brancos, coloniais, racionais e neoliberais. Agindo assim, a escola aciona a produção de mecanismos legitimadores (práticas educativas) da colonialidade de poder, ser e saber.

Uma educação que pretende ser crítica e emancipadora precisa apresentar currículos na perspectiva decolonial, que garantam possibilidades do resistir, do emancipar, do humanizar e do insurgir dos povos historicamente subalternizados e desumanizados pela colonialidade, como nos apresentam Farias & Faleiros (2010FARIAS, M., Nunes, E., & Faleiros, W. Movimento de educação do campo enquanto fenômeno decolonial: afirmando percursos de desobediência político-epistemológica. Revista Educação e Cultura Contemporânea, n.15, v.39, 357-374, 2018. http://dx.doi.org/10.5935/2238-1279.20180038
https://doi.org/10.5935/2238-1279.201800...
) e Araújo (2020ARAÚJO, G. C. C de. Decolonialidade e geografia a escolar: revisitações didático-pedagógicas. Revista de Educação, Ciência e Cultura: Canoas, n.25, v.3, p. 91-102, 2020. http://dx.doi.org/10.18316/recc.v25i3.6694
https://doi.org/10.18316/recc.v25i3.6694...
), e que concebam a decolonialidade como um paradigma que rompa com concepções coloniais, eurocêntricas, modernas/racionalistas de mundo, considerando o conhecimento eurocêntrico como mais um e não apenas o único e hegemônico sentido de pensar o mundo.

A incorporação de currículos decoloniais passa por uma produção de prescrição de conteúdos pautada em desobediência político-epistêmica, de resistência teórica e prática àquela que prega a modernidade/colonialidade (Mignolo, 2008MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de Identidade em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, 287-324, 2008.), com potencial de gerar uma educação para a liberdade, conforme defendida por Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.), constituindo, assim, um movimento de contrariedade, questionamento e superação.

Diante dessa contextualização, a pesquisa partiu da investigação do texto introdutório da BNCC - Geografia Ensino Fundamental (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.359-366), das competências, unidades temáticas, objetos do conhecimento e habilidades para o ensino fundamental (p.366-394).

Com a leitura crítica, buscou-se perceber a contextualização da produção do espaço e sua relação com o processo de colonização, bem como a ativação de pensamento emancipatório para uma educação antirracista, entendendo que tais abordagens são fundamentais para a problematização crítica e reflexiva da formação socioespacial do Brasil (objeto do conhecimento do quarto e sétimo anos), América Latina e África (objeto do conhecimento do oitavo ano), Europa, Oceania e Ásia (objeto do conhecimento do nono ano).

Logo na apresentação da disciplina, há, no primeiro parágrafo, a seguinte recomendação:

Ao mesmo tempo, a educação geográfica contribui para a formação do conceito de identidade, expresso de diferentes formas: na compreensão perceptiva da paisagem, que ganha significado à medida que, ao observá-la, nota-se a vivência dos indivíduos e da coletividade; nas relações com os lugares vividos; nos costumes que resgatam a nossa memória social; na identidade cultural; e na consciência de que somos sujeitos da história, distintos uns dos outros e, por isso, convictos das nossas diferenças. (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.359).

Diante da preocupação com uma reflexão crítica da memória social e a convicção de que somos diferentes, esperava-se que os objetos de conhecimento e as habilidades mobilizassem para a discussão na sequência, a contextualização da colonização, com o objetivo de demarcar em que período da história do mundo moderno a humanidade passou a ser reconhecida como fragmentada entre “nós” e os “outros”? Fanon (2005FANON, F. Os condenados da Terra. Juiz de Fora-MG: Editora UFJF, 2005), Quijano (2009), Santos (2009SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72) e Mbembe (2018MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2018.) apresentam discussões fundamentais sobre essa demarcação da diferença: quem a demarcou? Essa diferença é definida apenas pelo viés cultural ou pela concepção da existência de raças superiores e inferiores, conforme Quijano (2009)?

Infelizmente, observa-se que essa contextualização, que seria crucial para a compreensão da diferença, não aparece nem na sequência desse extrato de texto e em nenhuma parte de todo o documento. Sendo assim, acredita-se que a ausência desse debate impede a Geografia Escolar de garantir aos estudantes uma consciência emancipadora da história e das razões por que “somos diferentes”.

Na sequência das páginas, há uma intensa preocupação em gerar conhecimentos críticos e reflexivos sobre a produção do espaço, fato visível na apresentação dos princípios para despertar o raciocínio geográfico, “estimular pensamento geográfico para representar e interpretar o mundo...” e compreender os “impactos da distribuição territorial em disputas geopolíticas e as desigualdades socioeconômicas da população em diferentes contextos urbanos e rurais” (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.360; 361).

Entre as unidades temáticas, em especial na primeira, “o sujeito e seu lugar no mundo”, o foco deve ser as noções de pertencimento e identidade como estratégia para a compreensão de “cidadãos produtos de sociedades localizadas em determinado tempo e espaço, mas também produtores dessas mesmas sociedades, com culturas e suas normas” (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.362). Seguindo os mesmos passos, a terceira competência específica do ensino fundamental determina:

Desenvolver autonomia e senso crítico para compreensão e aplicação do raciocínio geográfico na análise da ocupação humana e produção do espaço, envolvendo os princípios de analogia, conexão, diferenciação, distribuição, extensão, localização e ordem (BRASIL, 2018, p.366)

Assim, os trechos acima são marcados por uma ausência incômoda, para uma análise minimamente adequada, da produção de conhecimentos críticos que compõem o almejado raciocínio geográfico, pois não há nenhuma abordagem de como a lógica colonial foi uma ação geográfica fundante para definir a produção do espaço nos países colonizados. Sendo assim, como refletir sobre a produção do espaço em sua totalidade de forma crítica e reflexiva sem acionar conhecimentos que possam visibilizar as ações do empreendimento militar, econômico e político colonial na configuração dos arranjos espaciais?

Ainda analisando o documento, outra preocupação que aparece no texto inicial, direcionado a refletir sobre os objetos de conhecimento para o Ensino Fundamental I, são as relações assimétricas de poder e seus impactos na produção do espaço:

Nessa fase final do Ensino Fundamental [...] anos iniciais em níveis crescentes de complexidade da compreensão conceitual a respeito da produção do espaço. Para tanto, é preciso que os alunos ampliem seus conhecimentos sobre o uso do espaço em diferentes situações geográficas regidas por normas e leis historicamente instituídas, compreendendo a transformação do espaço em território usado - espaço da ação concreta e das relações desiguais de poder. (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p. 381)

Como contextualizar tais relações sem apresentar os impactos da experiência colonial na formação das relações de poder geradas pela herança econômica, política, cultural e social do colonialismo e seus impactos na espacialidade?

Os objetos de conhecimentos e as habilidades direcionados para a primeira, segunda, terceira e sexta séries (Geografia) indicam como conteúdos o entendimento dos lugares, das paisagens e das comunidades de vivência, com ênfase na contextualização de como os fenômenos da natureza vinculados à ação humana podem produzir usos desiguais de espaço.

Portanto, esperava-se que, ao dar notoriedade aos conteúdos relacionados ao entendimento da organização do espaço mais próximo da criança ou do adolescente, a BNCC poderia apresentar alguma habilidade capaz de problematizar a colonialidade como ação produtora da configuração dos lugares e paisagens de vivência, em um país que esteve 322 anos sob o ditames do poder colonial.

Entende-se que produzir uma geografia decolonial que possa desvelar as relações desiguais de poder, nas práticas educativas com crianças e adolescentes, passa por questionar os conhecimentos, as lutas, as experiências e as cosmologias invisibilizadas que geraram processos de dominação presentes no espaço vivido. Infelizmente, não é isso que se percebe e, por último, constata-se que a ausência incomoda, e a invisibilização do sistema colonial como um produtor de espaço se mantém.

No quinto ano, os objetos de conhecimento e habilidades direcionam para as unidades federativas (Estados) onde se localiza cada escola, e, no quarto e sétimo ano, para a formação territorial do Brasil:

Espera-se que os alunos compreendam e relacionem as possíveis conexões existentes entre os componentes físico-naturais e as múltiplas escalas de análise, como também entendam o processo socioespacial da formação territorial do Brasil e analisem as transformações no federalismo brasileiro e os usos desiguais do território. (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.382).

Mesmo com essas preocupações de análise da formação territorial do Brasil no sétimo ano, continuam as ausências incômodas no currículo da disciplina e, embora apareça a habilidade “(EF07GE05) Analisar fatos e situações representativas das alterações ocorridas entre o período mercantilista e o advento do capitalismo”, esta, como ressaltam Quijano (2009), Santos (2009SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72) e Mbembe (2018MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2018.), não delimita a relação intrínseca entre o processo de colonização e o limiar da Modernidade e do Capitalismo.

Desse modo, o professor não tem um conteúdo explícito para pensar o Brasil vinculado ao sistema colonial e às implicações para a produção do território nacional por mais de três séculos e que ainda normalizam as relações sociais e de produção, agora ancoradas na colonialidade do poder.

No oitavo, o foco central é o estudo de América e África, e o documento recomenda: “As relações de como ocorreram as ocupações e as formações territoriais dos países devem ser analisadas por meio de comparações, por exemplo, de países africanos com países latino-americanos, inserindo, nesse contexto, o processo socioeconômico brasileiro” (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.382). Essa recomendação é vaga e generalista, pois não demarca com precisão a centralidade da colonização no processo de formação territorial dos dois continentes e, por conta disso, não existe nenhuma habilidade para essa série que aponte para uma discussão que possa desvelar os arranjos espaciais em África e América construídos pela colonização.

A visibilidade dos conflitos e tensões nos continentes subjugados pela colonização está presente em duas habilidades (EF08GE05 e EF08GE11) e, em um movimento contrário à decolonialidade, ainda reforça a ideia da Europa como um espaço irradiador de democracia, revolução e república. Contrariamente, as ex-colônias são tidas como territórios de invisibilidade, mergulhadas em desorganização social (Europa/moderna/racional/civilizada versus ex-colônias/bárbaras/atrasadas/tradicionais/ irracionais).

Além do mais, na análise das habilidades do oitavo ano, configura-se outra presença incômoda, a centralidade da “importância” da tutela dos organismos internacionais para gestar os problemas de África e América: “(EF08GE06) Analisar a atuação das organizações mundiais nos processos de integração cultural e econômica nos contextos americano e africano, reconhecendo, em seus lugares de vivência, marcas desses processos”.

Essa habilidade aciona um sentido de mundo eurocêntrico, na medida em que apresenta os países dos dois continentes como sendo incapazes de gerir seus desafios políticos (na maioria deles gerados pela colonização), necessitando de intervenção externa. Estranhamente no nono ano, na abordagem da Europa, a presença dos organismos internacionais não aparece.

E, por último, quando são abordadas, no nono ano, Europa, Ásia e Oceania, os aspectos do processo de globalização e seus desdobramentos estão entre os conteúdos prescritos. Apenas nesta série, a BNCC de Geografia parece ter uma preocupação com a o papel da colonialização, primeiramente na descrição dos conteúdos e problematização das discussões:

Por conta do estudo do papel da Europa na dinâmica econômica e política, é necessário abordar a visão de mundo do ponto de vista do Ocidente, especialmente dos países europeus, desde a expansão marítima e comercial, consolidando o Sistema Colonial em diferentes regiões do mundo. É igualmente importante abordar outros pontos de vista, seja o dos países asiáticos na sua relação com o Ocidente, seja o dos colonizados, com destaque para o papel econômico e cultural da China, do Japão, da Índia e do Oriente Médio. (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.383).

No objeto de conhecimento, aparece “A hegemonia europeia na economia, na política e na cultura”, apresentando duas habilidades para atender a esse objeto:

(EF09GE01) Analisar criticamente de que forma a hegemonia europeia foi exercida em várias regiões do planeta, notadamente em situações de conflito, intervenções militares e/ou influência cultural em diferentes tempos e lugares e (EF09GE06) Associar o critério de divisão do mundo em Ocidente e Oriente com o Sistema Colonial implantado pelas potências europeias. (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p. 393).

A presença do sistema colonial na contextualização da Europa é um ponto positivo da BNCC de Geografia, e a pergunta é: Por que a mesma discussão não apareceu quando do debate da contextualização da produção do espaço geográfico brasileiro, latino-americano e africano? Mais ainda, a centralidade da dominação e da organização socioespacial europeia, baseada na ideologia de existência de raças superiores e inferiores, não foi acionada nas duas habilidades em destaque, o que pode dificultar a elaboração de conteúdos mais precisos para um debate decolonial que possa produzir uma educação antirracista.

Outra ausência que incomoda é a da contextualização da identidade de gênero, para refletir sobre as iniquidades do espaço geográfico na disciplina Geografia no Ensino Fundamental. Sendo o colonialismo, o patriarcalismo e o capitalismo os três principais sistemas de opressão no mundo moderno (Santos, 2009SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72). Então, qualquer leitura da totalidade das iniquidades/desigualdades precisa centrar nas consequências desses três sistemas em um viés interseccional para compreender as configurações sociais, políticas e culturais contemporâneas do pensar e do agir colonial, patriarcal e capitalista.

Ao se analisar o currículo em questão, esperava-se uma abordagem do cruzamento de opressões centrada em gênero, raça e classe para desvelar as ações de uma sociedade eurocentrada, cisheteropatriarcal e articulada com os processos de superexploração do trabalho humano, que se combinam para produzir um espaço geográfico com relações desiguais de poder (preocupação recorrente nas recomendações do texto).

Porém, infelizmente, não é o que se observa na prescrição dos conteúdos, pois o centro de percepção das desigualdades é classe social, não havendo nenhuma menção ao entrecruzamento de identidades e consequente opressão, como no extrato:

No Ensino Fundamental - Anos Finais, espera-se que os alunos compreendam os processos que resultaram na desigualdade social, assumindo a responsabilidade de transformação da atual realidade, fundamentando suas ações em princípios democráticos, solidários e de justiça. (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.364-365).

No quinto ano, chamam a atenção dois objetos do conhecimento, prescritos para a unidade temática “o sujeito e seu lugar no mundo”, que menciona, como conteúdo, o diálogo entre as diferenças étnico-raciais e étnico-culturais e desigualdades sociais (p.378) e, depois, entre as habilidades mobilizadas para atender esse conteúdo aparece “(EF05GE02) Identificar diferenças étnico-raciais e étnico-culturais e desigualdades sociais entre grupos em diferentes territórios” (p.379). Estranhamente, esta habilidade reconhece as diferenças étnicas-raciais e culturais, mas supreendentemente apenas a desigualdade de classe.

Na contextualização dos conteúdos do oitavo ano, a ausência inoportuna se mantém:

Considera-se que os estudantes precisam conhecer as diferentes concepções dos usos dos territórios, tendo como referência diferentes contextos sociais, geopolíticos e ambientais, por meio de conceitos como classe social, modo de vida, paisagem e elementos físicos naturais. (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.383).

É possível entender as complexidades da realidade por meio apenas do conceito de classe social? Como um currículo nacional de Geografia, depois de tantos avanços nos diálogos sobre intencionalidades, pode repetir uma leitura de mundo marcada por espaços geográficos não colonizados, racializados e não generificados?

Observa-se que a retirada de qualquer menção à identidade de gênero na proposta, por conta de posicionamentos extremistas, interfere em uma leitura mais crítica e plural das várias formas de existir no mundo, além de reforçar os sistemas de opressão destacados por Santos (2009SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S. & M. P. de MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72), no quinto país do mundo em crimes de feminicídio e o primeiro que mais mata pessoas LGBTQI+. Outrossim, a escola e a disciplina Geografia, por meio do seu currículo prescrito, nada podem contribuir para alterar essa cruel realidade baseada na hetonormatividade.

Na análise da listagem de habilidades sobre os conteúdos das relações étnico-raciais, observa-se a presença indigesta e inoportuna de uma geografia positivista, em especial no Ensino Fundamental I (EF04GEO01, EF04GEO06 e EF05GEO2), onde os verbos descrever, identificar e selecionar acionam um conhecimento de mera enumeração e identificação sobre os “tipos” de populações tradicionais que existem no espaço geográfico. Há apenas uma habilidade que se diferencia um pouco das demais “reconhecer os modos de vida de povos e comunidades tradicionais em distintos lugares” (EF3GEO03), porém, embora o verbo inicial avance em uma perspectiva mais analítica, o restante da redação é vago e generalista, em um comando que mobiliza pouca ou quase nenhuma reflexão.

Observa-se, ainda, outra presença marcante e igualmente inoportuna e fora de propósito nas habilidades relacionadas aos conteúdos para atender ao artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004), observa-se um recorrente reforço sobre a simples existência das comunidades tradicionais no espaço geográfico. Parece que, para se discutir uma educação antirracista no currículo de Geografia, basta relatar a presença de povos indígenas e quilombolas no espaço geográfico brasileiro, sobretudo no currículo do Ensino Fundamental I.

Do primeiro ao quinto ano, há quatro habilidades, mobilizadas neste sentido. São elas: EF3GEO03, EF04GEO01, EF04GEO06 e EF05GEO2. E ainda, no sétimo ano do Ensino Fundamental, em EF07GEO03, repete-se a identificação, no espaço geográfico, da presença dos povos tradicionais.

Um geografia que pretende discutir a produção do espaço, por meio do estudo da natureza, dos lugares, das regiões, das paisagens de vivência, diferenciados por níveis de complexidade (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.361), não consegue promover uma educação decolonial e antirracista na perspectiva da interculturalidade crítica de Walsh (2009WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In CANDAU, V. M (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro, 2009, p. 12-43) ao arrolar como objeto de aprendizagem apenas a simples descrição e enumeração da existência de comunidades tradicionais no espaço geográfico.

É preciso ir além, desvelar o conceito de diferença e diversidade, por meio da prescrição de conteúdos que gerem uma prática pedagógica e política centrada em discussões da subalternização ontológica, da negação das epistemes dos grupos racializados, apresentando-os como seres de resistência e insurgência, apesar de sofrerem com a desumanização e subordinação, como argumenta Walsh (2009WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In CANDAU, V. M (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro, 2009, p. 12-43).

Outra presença marcante na BNCC geral da Educação Básica é o “respeito à diversidade” ou “respeito à diferença” para mobilizar o reconhecimento dos grupos étnico-raciais, bem como de suas culturas. Essa referência é muito recorrente em todo o documento, tanto na Introdução como na parte específica de cada disciplina. Para exemplificar, pode-se destacar o conceito ‘diversidade’ nas competências sexta e oitava da Educação Básica (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.9-10). Além disso, das sete competências gerais da área de Ciências Humanas para o Ensino Fundamental, novamente aparece o conceito de diferença e diversidade na primeira e na quarta (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versao final_site.pdf.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
, p.361).

A BNCC de Geografia não ficou alheia a esse discurso, pois, logo na apresentação, expressa que “a aprendizagem da Geografia favorece o reconhecimento da diversidade étnico-racial e das diferenças dos grupos sociais, com base em princípios éticos (respeito à diversidade e combate ao preconceito e à violência de qualquer natureza)” (Brasil, 2018, p.361). E, depois, essa recomendação se repete em várias partes das 36 páginas desse conteúdo.

Segundo Walsh (2009WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In CANDAU, V. M (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro, 2009, p. 12-43), o discurso de reconhecimento e respeito às diversidades e diferenças surge na década de 90, nas políticas educacionais, em relação aos países da América Latina, bem como nos editais de projetos e programas financiados pelos organismos internacionais como Banco Mundial, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID), entre outros. Para a autora, essa demanda é consequência da pressão dos movimentos negros e indígenas que disputam sua participação no desenho de políticas de gestão de seus territórios.

Os conceitos de diversidade e diferença cultural inseridos nas políticas educacionais apresentam um problema de interpretação, pois o reconhecimento da diversidade e da diferença cultural que a BNCC apresenta está assentado em uma lógica que Walsh (2009WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In CANDAU, V. M (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro, 2009, p. 12-43) denomina de re(colonialização), racionalidade neoliberal e política multicultural, que não reconhece, como parte da construção histórica da América Latina, o papel fundante da raça como instrumento de classificação social, domínio e controle, fundamental para o desenvolvimento do capitalismo mundial. Sendo assim, a diferença imposta desde o processo da colonização não foi pautada em cultura ou apenas na dominação por classe, mas por meio da visão de raça, racismo e racialização de corpos de indígenas e negros que foram subalternizando e escravizados.

Portanto, a disseminação das políticas de educação, em especial na composição dos currículos que oferecem ênfase ao reconhecimento da diversidade e da diferença cultural, ocorre em uma lógica de contínuo domínio do poder hegemônico nacional vinculado aos interesses do capitalismo global, com a intenção de reduzir os conflitos étnico-raciais e implementar a eficiência do Estado neoliberal na gestão do espaço geográfico.

O currículo nacional, em particular o de Geografia, está em consonância com tais determinações, pois, no conjunto de sua prescrição, a BNCC dessa disciplina não aponta para conteúdos que podem questionar e problematizar a transformação da estrutura colonial, moderna, ocidental e eurocêntrica, pautada na colonialidade do poder, ser e saber, como nos apresenta Quijano (2009), mas administrar o pluralismo étnico-racial do país com a finalidade de amenizar os conflitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática pedagógica sempre exige parar, refletir, avaliar e criticar. E o momento oportuno de desenvolver esse exercício, sem dúvida, ocorre quando os processos de ensinar, aprender e praticar a educação são postos como elementos dos planos de desenvolvimento e das políticas públicas para educação.

Ao analisar o conjunto das propostas da BNCC - Geografia, em especial as habilidades, foi possível observar a presença inoportuna de uma geografia descritiva, mais preocupada em localizar e descrever as características dos fenômenos do que analisar a materialidade da sua espacialidade, bem como as lógicas e processos socioespaciais de dominação, controle, exclusão e marginalização no estágio atual da colonialidade do poder.

Esse argumento foi construído a partir dos descritores de habilidades e analisados segundo suas contradições e ausências para uma educação geográfica decolonial e antirracista. Por isso, foi importante dimensionar a intervenção política na construção do currículo nacional, que pressionou para retirar, da proposta, as menções a identidade de gênero e diversidade sexual, além do caráter antidemocrático, neoliberal e do reforço de ideias colonialistas.

Por conseguinte, esse documento apresenta grandes contradições para uma educação geográfica decolonial e antirracista. Não existe uma abordagem que auxilie o professor desvelar os processos de subalternidade da construção de um país na lista dos dez mais desiguais do mundo, marcado por uma exclusão cruel, produzida pelo colonialismo e racismo. Sendo assim, trata-se de um currículo colonial usado para que os sentidos hegemônicas de mundo e de dominação persista na educação brasileira.

Por outro lado, sendo o currículo um território em disputa, a BNCC aponta a relevância de os professores politizarem o currículo em ação, em busca de uma educação decolonial, antirracista, libertadora e emancipadora, aquela que, não sendo capaz de, por si, mudar os sistemas de opressão, produza sujeitos que possam questioná-los.

Assim essa luta ficará, mais uma vez, para aqueles e aquelas que subvertem o currículo, que inventam outros tempos e outros espaços para produzir o direito à vida digna. Essas qualidades, por sua vez, estão bem elaboradas, sendo possível sua implementação no âmbito da educação escolar e geográfica.

A contextualização histórica e das contradições que envolveram a elaboração do documento demonstra que o lugar das relações étnico-raciais na BNCC está subsidiado e concebido por fundamentos elitistas e eurocêntricos. Ela ainda oferece sobreposição de obstáculos para transformação da sociedade brasileira e garante o fortalecimento das estruturas racistas e colonialistas na educação do país.

Neste sentido, a educação não deve ser pensada como a panaceia para a solução de todos os problemas da nação, mas ela ocupa, sem dúvida, um lugar privilegiado para problematizar os sentidos de desenvolvimento, da história colonial, da degradação ambiental predatória, da violência dos conflitos territoriais e dos níveis de exclusão e segregação socioespacial.

Em outras palavras, as políticas e sistemas educacionais são um processo de natureza altamente conflituosa, e seu debate mostra o caráter transformador e fundamental da educação como política, que deve ser usado como aspecto central para revelar as contradições dos agentes e movimentos sociais e as conflitualidades dos projetos de educação enquanto possibilidades de transformação da realidade brasileira, e promover processos educativos decoloniais e antirracistas.

REFERÊNCIAS

  • ARAÚJO, G. C. C de. Decolonialidade e geografia a escolar: revisitações didático-pedagógicas. Revista de Educação, Ciência e Cultura: Canoas, n.25, v.3, p. 91-102, 2020. http://dx.doi.org/10.18316/recc.v25i3.6694
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

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