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O Brasil das indiretas: cenário 1

PENSANDO O BRASIL

O Brasil das indiretas: cenário 1

José Álvaro Moisés

Sociólogo, diretor do CEDEC, editor da revista Lua Nova e professor de ciência política na USP

15 de abril de 1985. A nossa dívida é sagrada, costuma dizer o novo presidente do Brasil que, escolhido pelas indiretas, vai exercer o poder até 1991. Dias depois da posse, o país ainda tentando sentir os rumos da nova situação, surgiram os primeiros sinais do que isso realmente significa. Tocado pela obsessão dos grandes lances, o novo presidente fez um gesto dramático, ao qual não deixou de emprestar um tom de grandiloqüência. Em cadeia nacional de rádio e televisão, desafiou o seu colega Ronald Reagan, dos Estados Unidos, a se reunir com ele, os seus conselheiros econômicos e os principais banqueiros internacionais, em Granada, agora considerada o novo quintal do imperialismo, para ali iniciarem as discussões sobre a renegociação da dívida externa brasileira.

A imprensa não deu muita atenção, chegando a considerar a iniciativa uma bravata. Mas começou a mudar de atitude quando, cautelosamente, o presidente norte-americano admitiu que não considerava a reunião impossível, se os seus termos fossem previamente discutidos pelo Departamento de Estado. Por que Reagan se dispunha a negociar com um país cuja economia está quebrada e cuja dívida já ultrapassa, em meados de abril de 1985, a casa dos 120 bilhões de dólares?

Generosidade: a dívida, o petróleo e as 7 irmãs.

Fragmentos de declarações do principal conselheiro econômico do novo presidente, o senador Roberto Campos, levantaram o véu de névoa do caso. O novo governo faz saber, por canais diplomáticos próprios para ocasiões como essa, a sua disposição de quebrar o monopólio da exploração de petróleo no país. Esteio do nacionalismo dos anos 50, a Petrobrás será loteada entre as "Sete Irmãs", isto é, as grandes empresas internacionais que operam com o negócio de óleo. Objetivo da operação: aumentar o poder de barganha do governo para negociar novos prazos, novas taxas de juros e nova carência para o pagamento da dívida externa. Afinal, falou-se tanto em renegociação da dívida no período anterior. Pois bem, o novo governo dispõe-se a fazê-lo, agora, mas segundo as suas condições.

Fala mansa, nova imagem, mas tudo será como antes.

Um mês depois da posse do novo presidente, portanto, o país começa a ruminar as suas certezas e as suas incertezas. A curto prazo, cavalgamos o descrédito, quase esquecidos de que a esperança existe. O Brasil não vai mudar nada, vai continuar o mesmo desse vinte anos que começaram em 1964. Quanto ao futuro, além da indiferença do povo diante de um governo que a maioria não escolheu, estamos incertos e com medo. Quem garante, por exemplo, que, dessa vez, apesar do amansa-mento da fala, não estamos diante de um ditador paisano que, ao contrário do que costumavam fazer os generais-presidentes, veio para ficar um tempo ainda mais longo?

Certa vez, numa dessa entrevistas atabalhoadas que a imprensa consegue arrancar dos homens públicos, ele insinuara a resposta: "Precisamos, de qualquer forma, dar ao povo a idéia de que algo de melhor está por vir". Os novos senhores sabem que precisam limpar a imagem deixada por esses vinte anos de ditadura. Mas não querem e não podem colocar em dúvida nada do que foi feito durante esse longo tempo de exceção que vivemos. Afinal, como trataram de esclarecer bastante precisamente alguns generais (Job Lorena, entre eles, aquele do inquérito do Rio-Centro, lembram-se?), "nós não somos a Argentina".

Mas os homens da nova ordem parecem acreditar piamente que estamos diante de um novo começo no Brasil. É uma questão de dar tempo ao tempo, dizem eles. O novo governo acabará por vencer as "resistências" que se formaram durante as grandes mobilizações populares do ano passado pelas diretas. Vencidas essas "resistências", segundo eles manipuladas, o governo pós-aberturista mostrará tudo o de que é capaz. Bastará reconquistar a simpatia do povo, algo que não acreditam difícil e, a partir daí, construir a legitimidade de que tanto se ressente o governo. No entanto, depois de todos esses anos, será realmente possível um novo começo no Brasil?

Ostentação, desperdício, indignação e... silêncio.

Algumas perguntas não têm respostas imediatas. Mas elas servem para apontar indícios. Não é só a arrogância do cavaleiro montado que nos assusta. Os sinais são muitos e, sobretudo, insistentes. Mesmo quando querem parecer exatamente o contrário do que realmente são. Eles começaram, nesse caso, com o espalhafato da festa da posse, em Brasília, esse paraíso dos burocratas sempre prontos a servir a qualquer governo.

Entre sorrisos amarelos e formais, mais de 25 mil convidados do novo presidente se comprimiram a se amassaram, um mês atrás, em meio a um verdadeiro festival de ostentação, de desperdício e de opulência para ouvir um longo discurso de posse em que não faltaram referências indignadas à pobreza, a miséria do povo e, finalmente, à sempre lembrada necessidade de devolver o país à "normalidade institucional".

Nem todos os presentes eram beócios ou vacas fardadas. Por isso, não escapou a alguns deles, apesar do seu interesse material na nova situação, o tom de cinismo escrachado das afirmações presidenciais. Eles se entreolharam rápido (como aconteceu, também, com alguns diplomatas estrangeiros). Mas, depois, na hora da cerimônia do beija-mão, foram devidamente cobrados pela ousadia com pequenas frases de pé-de-ouvido do capo, pronunciadas em meio a outros sorrisos amarelos e formais. Tudo como se fosse em família.

No entanto, ali, como no palácio do governo, ninguém deu maior atenção ao fato de que, a menos de cem metros de distância, uma multidão de mais de 100 mil pessoas protestou contra a posse do presidente eleito indiretamente. O novo governo, cautelosamente, ignorou as manifestações que, em todo o país, somaram mais de 1.800 mil pessoas. Era como se nada acontecesse: nem mesmo a velha cantilena da "agitação comunista" foi usada dessa vez. Aliás, comportamento semelhante foi adotado, também, quando um dos ex-presidenciáveis, alegando razões éticas, anunciou a sua disposição de retirar-se da vida pública. O silêncio manteve-se.

Hoje, ante uma desconfiança crescente, temas outrora pertencentes à oposição passaram obsessivamente para a retórica dos discursos oficiais. O novo presidente não pára de falar em "eliminar as mordomias", "combater a corrupção", "renegociar a dívida externa com patriotismo", "retomar urgentemente o crescimento econômico", "distribuir justamente os frutos do trabalho", "desestatizar a economia" e assim por diante. Ele apenas não fala, é claro, sobre como pretende fazer para chegar a tudo isso.

Clima de contra-reforma

Mas o novo governo colhe alguns êxitos. É o caso, nos últimos dias, da criação do Ministério do Nordeste, somas fantásticas liberadas para as primeiras providências, e ao qual se atribuiu a função de "redimir, de vez por todas, o sofrimento daqueles brasileiros". Um general do Conselho de Segurança Nacional chegou a falar em perigo de separatismo ou de inssurreição popular se algo não for feito. Mas, para o governo, bem como para o novo ministro, o ex-governador baiano Antonio Carlos Magalhães (chamado por alguns oposicionistas de "Toninho Malvadeza"), bom mesmo é a nova campanha nacional desencadeada pela Rede Globo para arrecadar fundos que serão repassados ao novo ministério. Milhares de pessoas já enviam as suas quantias e o novo presidente vibra feliz, declarando que, finalmente, o povo começa a entendê-lo.

Essa é a atmosfera dos primeiros trinta dias do novo governo brasileiro. A derrota da campanha das diretas começa a cobrar o seu preço. E é isso que começamos a entender sob o impacto das medidas tomadas pela nova administração. Aliás, o rádio e a televisão acabam de informar que, após uma longa reunião com o Alto Comando das Forças Armadas, convocada pelo novo ministro do Exército, general José Luís Coelho Neto, o novo governo decidiu promover a reforma da Constituição do país. Com "as mais altas expressões da nossa inteligência", o presidente formou uma Comissão de Elevado Nível, integrada pelos juristas Manoel Gonçalves Filho, Miguel Reale e o general Golbery do Couto e Silva, para preparar o texto da nova Carta Magna que, segundo o presidente, para a salvaguarda da propriedade e a segurança das instituições, deverá incorporar os dispositivos da antiga Lei de Segurança Nacional.

É o Brasil das indiretas. Não é preciso explicar muito. Voltamos à estaca zero. Ingressamos no tempo da contra-reforma. Até quando?

O Brasil das diretas: cenário 2

15 de abril de 1985. Nós pode-mos ser acusados de não ser um país sério, mas sabemos dar um certo toque às coisas que nos são caras. Quando parecia que começávamos a retornar à normalidade, depois de quase dois meses ininterruptos de comemorações, em todo o país, pela conquista das eleições diretas, duas medidas do novo governo reabrem o ciclo de festas populares, ampliando, o tempo de duração do carnaval desse ano: primeiro, a denúncia dos acordos com o FMI, cuja política recessiva tanta miséria infligiu ao país; e, segundo, a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte que, por acordo entre os partidos de oposição, será eleita em 1986.

O povo comemora nas ruas

Se é certo que, desde a posse do novo governo, um mês atrás, o país mergulhou em um processo de debates e de negociações que, pela primeira vez em muitas décadas, envolve gente que sempre esteve à margem da política, não é menos certo que, uma vez alcançado o consenso entre os principais líderes oposicionistas do país (em torno da data da eleição e do início do funcionamento da Constituinte), a onda de comemorações populares aumentou.

Festa, mobilização, participação

Alguém já disse que a festa popular e, por conseqüência, a alegria não são incompatíveis com a política, desde que a primeira não sirva de pretexto para fazer da última um assunto apenas dos entendidos, só acessível aos que têm assento nos confortáveis gabinetes de Brasília ou, mesmo, nos salões atapetados dos palácios dos governos oposicionistas, enquanto ao povo reserva-se a função de festejar o que foi decidido pelos círculos dos privilegiados.

Felizmente, no nosso caso, as atuais celebrações populares estão relacionadas seja com a ampla mobilização de massas que desde o final de 1983 ajuda a apressar o fim da ditadura no Brasil (já que, por uma série de circunstâncias, este é o verdadeiro sentido que a campanha pelas eleições diretas ganhou), seja com a intervenção organizada de amplas camadas da população no debate político atual.

Todo mundo quer participar da política, como vimos, recentemente, quando o novo governo propôs que a Constituinte fosse eleita, já em 1985, em condições herdadas do período de 20 anos de ditadura. Ou seja, sem mudar toda a legislação política e partidária que tantas restrições impõe à participação popular e, em especial, às correntes político-ideológicas que ainda permanecem na clandestinidade.

Todos querem dar sua opinião

Então, uma onda de debates começou a varrer o país e não há setor da população que nesse momento não se disponha a realizar as suas reuniões ou publicar o seu manifesto para opinar e influir. A Constituinte deve ser convocada já, debaixo da legislação autoritária, ou a sua convocação deve ser precedida de uma série de iniciativas do novo governo, propondo ao Congresso a revogação de coisas como a Lei de Segurança Nacional, a lei antigreves, as atuais limitações ao direito de organização partidária etc? É isso o que todos querem decidir, mesmo se contrariando a posição do novo governo.

Após anos de retórica vazia sobre a "abertura", o país respira uma atmosfera de verdadeira transição política. Aspira a passar da ditadura para algum tipo de regime democrático. Claro, a democracia que se quer construir ainda não está definida, graças a Deus. Ela é objeto, precisamente, das disputas entre os vários partidos de oposição que, agora, pela primeira vez, são obrigados a falar a linguagem dos problemas concretos.

Várias opiniões e um objetivo comum

Aliás, em 1984 não houve, no Brasil, uma só, mas várias campanhas pelas eleições diretas, cada qual correspondendo aos interesses das forças que participaram dela. É natural que tenha sido assim, depois de vinte anos de ditadura, pois embora aliados no objetivo comum de derrotar o regime militar, trabalhadores e empresários, por exemplo, expressam posições diferentes, e até mesmo contraditórias, no que se refere a questões como a autonomia dos sindicatos diante do Estado, o direito de greve e, também, a mencionada legalidade dos partidos clandestinos.

Unidos, mas sem esconder as diferenças

O Brasil começa a pulsar moderno após a conquista das diretas. Adormecemos unidos, para ter força para exorcizar um demônio que por vinte anos atormentou a todos nós, mas despertamos plurais, sem esconder as nossas diferenças, ao tratar dos nossos problemas mais sérios.

É por isso, também, que, quando o novo governo propõe, como hoje, a mudança das leis salariais, a sociedade inteira não aceita mais que a decisão se faça de cima para baixo; a ditadura nos ensinou que, sem participação, a política se faz contra todos nós. E as grandes mobilizações pelas diretas, do ano passado, que chegaram a reunir mais de 4 milhões de brasileiros, demonstraram que, ademais, temos força para influir nas decisões do governo. Por isso, ninguém aceita mais leis salariais que não sejam discutidas com a sociedade inteira. Aliás, foi exatamente isso que acabaram de dizer à sociedade os líderes das duas centrais sindicais, a CUT e a CONCLAT.

Agora, os desafios da democracia.

Essa forma nova de ver as coisas e, principalmente, de participar, também ficou clara quando se abriu, recentemente, o debate da questão da dívida externa. Denunciados os acordos com o FMI, estamos a um passo do rompimento com aquela agência internacional. Mas, a partir daí, o que faremos com a dívida externa global é algo que ainda não está decidido. Não-pagamento ou suspensão da dívida? Temos de decidir.

Eis a perspectiva que se abriu entre nós, com a conquista das diretas. É a perspectiva da democracia a se construir. Saberemos responder aos desafios que ela coloca?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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