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Ponto de vista de uma geração

LIVROS QUE TODOS LÊEM

Ponto de vista de uma geração

Marcelo Paiva

Escritor

Em 1977 éramos alguns milhares de estudantes com o coração inflamado e faixas em punho, que saíamos nas ruas para ... fazer a revolução? derrubar o regime? não, nem tanto, apesar de que alguns mais exaltados o acreditassem. Debaixo de uma ditadura, dava um tremor delicioso enfrentar uns macacos armados: a praça é do povo. Você que é explorado, passe para o nosso lado. Os edifícios de concreto abriam espaço para a gritaria: "Abaixo a Ditadura!", "Mais Feijão, Menos Canhão". Mas sem dúvida que a mais mobilizante, prioritária para para qualquer luta democrática, era "Anistia Ampla, Geral e Irrestrita!".

Quantas bombas de gás amarelas, verdes, rosas, quantos chutes e cacetadas não tomamos por causa dessa tal anistia. No fundo, no fundo, a massa não sabia direito o que era isso, quem eram estas pessoas que, por discordância com o pensamento militar, tiveram que sair do país e viver "de favor" pelo mundo afora. Mas saíamos em passeata, orgulhosos e lúcidos, para acabarmos envolvidos numa grande pancadaria.

Até que, dois anos depois, para surpresa nossa, Figueiredo proclama que "lugar de brasileiro é no Brasil", e anuncia o próximo passo da abertura: Anistia, só que, restrita. Ridículo, até um tempo apanhávamos quando defendíamos essa bandeira. Nos roubaram? Não, é que o movimento ganhou. Afinal era anistia o que queríamos.

Finalmente, o decreto fora assinado, transformando os aeroportos do país em ponto de encontro da esquerda brasileira. Choros e abraços, os vencidos retornavam. Era o início de um novo Brasil. Os debates foram abertos, cineclubes exibiam obras até então proibidas. A agitação tomou conta do país do futebol. Novas idéias borbulhavam nas ruas, nas universidades e nas fábricas. E para completar, começamos a saber a outra versão dos fatos. O que ocorreu nos porões da ditadura. Quem lutava contra o quê. Alex Polari, Renato Tapajós, Alfredo Sirkis deram seus depoimentos. Houve, mesmo, luta armada. Uma geração inteira abraçou com convicções e despreparo uma insurreição tropical: bananas contra bazucas.

Eis que, no meio da praia, queimado de sol e usando uma tanga que deu o que falar, um sujeito narigudo perguntou "o que é isso, companheiro?" e também deu seu depoimento. Um livro que desmistifica a posição do herói solitário, lutando contra um regime fascista. Que pergunta se adianta resolver apenas os problemas sociais de um povo, sem antes (ou durante) resolver os problemas do indivíduo. Somos gente, ou somos máquinas revolucionárias? Onde fica a relação homem-mulher? E a natureza, é frescura? Nossos problemas existenciais, nosso corpo. Afinal o que é prioritário, um prato de comida, ou a felicidade? Uma escola, ou o prazer? Medicina gratuita, ou abaixo o machismo?

Vamos continuar a desejar o impossível, e para isso, mudemos a relação dentro de casa, para transformar o planeta. Gabeira não disse nada de novo. Mas, numa época em que líder político está mais para Mick Jagger que para Getúlio Vargas, o narigudo escritor ocupou um espaço de inspiração para uma juventude em que o sexo-drogas and rock faz parte do cotidiano. E durante o crepúsculo, o macho se revolta com sua própria condição, e grita: eu também sofro com o machismo, não concordo, não quero, tenho dúvidas. Acendendo um cachimbo de haxixe na cabine de comando do metrô, Gabeira percebe que não era tão importante assim, para ser tratado como um Che Guevara Brasileiro. E isso não tinha importância. A aventura armada em que a classe média brasileira se meteu era inevitável, mas absolutamente fora de proporções. E para admitir isso, o sujeito tem que rever todo o seu passado, todos os seus valores, se jogar na parede e dizer "OK, você perdeu".

Mas alguém disse por aí que na natureza nada se cria, tudo se transforma, e todos os cento e vinte milhões de alguéns por aqui circulam entre secas e enchentes dizendo que cada vez mais estamos aprendendo. E admitir a derrota é um ensinamento proveitoso. Perdemos, ora, perdemos.

O tempo foi passando por entradas e bandeiras, a utopia continua a ser o nosso destino, e o país vai se formando, inconfortavelmente e sem conforto. Só que, agora, não esquecendo que o que move nossas cabeças não é apenas um ideal, mas também um corpo.

PS —Espero ter aprendido direito a lição.

Quem mais surpreendeu o mercado editorial foi Marcelo Paiva, o jovem memorialista que já vendeu 130.000 exemplares de seu único livro publicado, "Feliz Ano Velho".

Desejando o impossível, a luta de cada um no dia-a-dia poderá transformar o planeta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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