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Cristãos e Marxistas aprendendo a conviver

Cristãos e Marxistas aprendendo a conviver

D. Angélico Sândalo Bernardino

Bispo da Zona Leste-II da Arquidiocese Metropolitana de São Paulo

Quero falar-sonhando sobre aspectos do relacionamento de cristãos e marxistas, sobretudo na prática. O fato de que urgentes questões teóricas não sejam aprofundadas aqui não indica, em absoluto, desconsideração aos princípios, nem a ingenuidade de se pretender uma prática divorcidada de teorias. Creio que a teoria é a melhor prática e não concordo com a afirmação de que "na prática a teoria é outra".

Estou particularmente convencido do acerto de uma das conclusões tiradas na terceira conferência dos bispos latino-americanos, realizada em Puebla, no México, que advertia para o perigo de "aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista, deixando de perceber o tipo de sociedade totalitária e violenta a que conduz tal processo".

Houve tempo — e ainda perdura — em que cristãos e marxistas rispidamente se picharam. Construíram muros, verdadeiras cidadelas, donde se flechavam uns aos outros. A postura da Igreja mudou a partir do Concilio Vaticano II, quando ficou claro que a Igreja busca é um diálogo sincero. Partindo da fraternidade e observando a prudência, desse diálogo ninguém deve ser excluído, nem os que não crêem em Deus, nem mesmo os que se opõem à Igreja e a perseguem. Esse ensinamento confirmou-se, na prática, na ocasião histórica em que o papa João XXIII acolheu, pela primeira vez, um dirigente comunista como Alexei Adjubei. Paulo VI completou o gesto do papa recebendo no Vaticano, em 1967, o presidente da União Soviética, Nicolai Podgorny.

Diálogo, na verdade, em constante esforço de quebra de preconceitos. Diálogo que vê, com lucidez, as diferenças profundas, radicais e os pontos de possível encontro. Diálogo que não deixa para segundo plano o caráter coletivista do marxismo, sua profissão sistemática de ateísmo militante, sua ideologia da riqueza em forma coletiva, sua visão parcial do homem...

O marxismo poderá dar o pulo para descobrir Deus

Diálogo que leva a Igreja a reconhecer sua própria postura prática, muitas vezes ambígua, aliada aos senhores do capital, responsáveis pela miséria de multidões entre nós. Ambigüidade presente numa prática nem sempre coerente com as exigências evangélicas de pobreza, justiça e fraternidade.

O ponto de partida para esse diálogo deve ser o homem concreto, com todos os seus problemas, com as causas que os motivam, as circunstâncias que os agravam e suas perturbadoras conseqüências. Homem a ser libertado das opressões de toda ordem.

Do militante marxista podemos aprender sua paixão pelo concreto, sua capacidade organizativa, de análise da realidade (o que não quer dizer que devamos aceitar a análise marxista) e sua disposição de luta para a transformação da sociedade. Nossa contribuição poderá ser oferecida na visão magnífica e globalizada do homem que não pode ser reduzido ao homem-econômico, coletivizado, nem tampouco na afirmação de Marx de que "o homem é, para o homem, o ser supremo".

De maneira especial, toda a caminhada da Igreja na América Latina e, particularmente, no Brasil, poderá oferecer ao marxista a visão de uma religião aberta não fechada e alienante. E fazendo distinção entre religião aberta e fechada, o marxista brasileiro poderá mesmo dar o necessário pulo para a descoberta de Deus. Esse passo será muito importante para um diálogo proveitoso entre cristãos e marxistas, levando estes à descoberta de profundos valores a respeito do homem.

É claro que diálogo supõe possibilidade de evolução no comportamento e correção de órbita na formulação de certos princípios. Tanto Marx quanto Engels estudaram a religião apenas no cenário da luta de classes. Mostraram como a religião, no jogo da exploração do grande pelo pequeno, pode ser manipulada pelas classes dominantes. Quando o marxismo tenta ir além e começa a questionar a existência ou não de Deus, entra, como diz o pensador Domingos Barbé, num tipo de raciocínio "que não é nem materialista, nem científico, nem dialético". Ou seja, entra em contradição com sua própria teoria. Na prática, o objetivo de cristãos e marxistas é salvar o homem em sua totalidade.

O grande e comum inimigo com o qual nos defrontamos é o capitalismo liberal selvagem que nos esmaga. É esse câncer que devora nosso povo, drenando nossas riquezas aos países ricos que nos exploram e aos quais maus brasileiros nos venderam e vendem. Em outras partes do mundo, a própria ditadura do proletariado é responsável pelo esmagamento do homem. Entre nós, porém, o inimigo é o capitalismo.

Nesta luta contra o inimigo comum, o cristão pode indicar ao marxista o sentido do poder como serviço, proporcionando-lhe ocasiões para purificação de seus métodos, por vezes, golpistas e ditatoriais na conquista do poder. O cristão pode dizer ao marxista que, para a libertação de um povo, não basta a queda do imperialismo capitalista que pode ser substituído pelo imperialismo comunista, continuando o homem a ser esmagado.

A caminhada na luta dará aos homens de boa vontade a possibilidade de elaboração de projetos-esperança na construção da sociedade justa e fraterna, de comunhão e participação, na liberdade e cor-responsabilidade. Poderá ir mudando o coração do homem sedento de poder, convertendo-o em coração-serviço. Essa nova situação de "convertido" fará com que não sejam possíveis gestos vividos entre nós, por exemplo, no "Movimento do Custo de Vida" e nas últimas eleições do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.

No caso do Movimento do Custo de Vida, um grupo de partido, na clandestinidade, conseguiu a direção do movimento e, falando em propósitos democráticos, começou a ditar normas de cima para baixo. Em conseqüência, as bases, constituídas de Clubes de Mães integrantes de Comunidades Eclesiais de Base, maciçamente se retiraram, esvaziando o movimento. Caso não menos triste, tivemos nas últimas eleições do Sindicato dos Metalúrgicos: a falta de visão e a ambição pelo poder de uma das chapas de oposição deu a vitória à situação peleguista que se eterniza à frente do sindicato.

Nisto tudo é preciso ter em vista, sempre e antes de tudo, o povo a ser libertado. Tudo cai por terra quando os interesses do povo são colocados em segundo plano, com prioridade oferecida ao fortalecimento de partidos ou aos interesses pessoais ou de pequenos grupos.

À luz da Bíblia o povo descobre a realidade...

Precisamos valorizar muito a caminhada histórica de nosso povo! Particularmente, precisam cair por terra certos preconceitos a respeito de marxismo e cristianismo. Para não poucos cristãos, ainda hoje, ser marxista é sinônimo de alguém que devora criança com farinha. E também não são poucos os marxistas que se aferram a ultrapassados dogmas de Marx-Engels querendo fazer de toda religião "ópio do povo" que precisa ser sempre combatida, aberta ou veladamente.

Em nosso país cresce, sempre mais, a consciência da classe trabalhadora de que é tremendamente explorada. Aumenta a convicção popular de que o sistema capitalista é pecaminoso, sendo frutos seus: fome, desemprego, analfabetismo, mortalidade infantil...

Nosso povo, em sua esmagadora maioria, vai tirando esta convicção da visão injusta da realidade, do julgamento que faz desta realidade à luz da Bíblia lida em comum. As ações concretas, que vão desde reivindicação dos bairros (água, luz, coleta de lixo, escolas...) até o debate sobre sindicatos e participação em partidos políticos comprometidos com o povo, estão oferecendo excelente treinamento à nossa gente, dando-lhe nova visão da sociedade. Esse imenso trabalho na cidade e no campo vem sendo desenvolvido, de maneira privilegiada, pela Igreja, sobretudo nas Comunidades Eclesiais de Base, na Pastoral Operária, na Pastoral dos Direitos Humanos e na Comissão Pastoral da Terra.

É evidente que os marxistas não podem desconhecer estes fundamentais dados de nossa realidade cultural-religiosa que exercem, hoje, significativo poder de pressão. Qualquer luta ideológica, em nosso país, que não leve em conta a religiosidade de nosso povo está fadada a se colocar paralelamente ao leito fundamental por onde corre o rio da história.

A "Informação Rockefeller" e o instituto "Religião e Democracia", de Washington, fundado em 1980, não cessam de proclamar a importância que certas igrejas têm na luta ideológica na América Latina e alertam para o perigo que constitui, para o poderio capitalista, o cristianismo que chamam de progressista, especialmente a Teologia da Libertação.

Marx e Engels, na Ideologia Alemã, proclamaram que a "classe que tem o poder material também tem o poder espiritual". É certo que, freqüentemente, isso acontece e, é assim nas democracias burguesas. ' Mas, segundo nos adverte Gramsci, nem sempre isto necessariamente deve acontecer e acontece. Um grupo social pode ter o poder político-militar e não conseguir o poder cultural. A experiência histórica após Marx, em países comunistas inclusive, dá razão a Gramsci.

Se há urgente apelo a ser feito por cristãos aos marxistas, neste continente americano, está em que respeitem o puro e genuíno sentimento cristão de nosso povo. Que não deseja outro Rei além de Cristo!

É certo que existem alienações religiosas: devem ser combatidas. O grande fato histórico emergente, porém, reside no surgir de um povo novo que se constrói na sede e fome de justiça, sob inspiração do Evangelho de Cristo. Não é por acaso que os lacaios da CIA arrancam a Bíblia das mãos de camponeses conscientes em El Salvador, porque tal livro é tido como instrumento de subversão!

Algumas tarefas urgentes

Sem pretender oferecer receitas prontas, para a complexa realidade, creio que devamos, na atual conjuntura, somar forças no sentido de empreender algumas tarefas urgentes:

1) Luta por eleições diretas para presidente da República, já. Estamos fartos de ditadura. (Ah! Que santa inveja da Argentina de agora!) O novo governo, eleito pelo povo, terá força moral para reorientar nossa economia falida, renegociando, inclusive, nossa dívida externa;

2) Exigência de Assembléia Nacional Constituinte que nos dê nova Carta Magna, pois nossa atual Constituição é lamentável colcha de retalhos, alinhavados ao sabor de circunstâncias e interesses de grupos.

3) Luta em torno de urgentes e tradicionais bandeiras: reforma agrária, reforma urbana, de ensino, de saúde...

Para isso: mobilização popular, pois somente o povo unido, mobilizado, organizado é força libertadora e eficaz contra os tiranos sócio-políticos e econômicos. O povo deve ocupar a praça — tribuna livre — que lhe pertence! Todas as iniciativas tendentes a fortalecer sindicatos autênticos, movimento populares, partidos políticos comprometidos, de fato, com o povo, precisam ser pronta e entusiasticamente apoiados.

Os problemas vividos por milhões de homens são demasiadamente grandes para que fiquemos fechados e nos agredindo mutuamente. A fome aniquila milhões de criaturas humanas. Governo malucos fabricam sempre mais sofisticados arsenais atômicos. Os que acreditam que a miséria deva ser vencida devem unir-se em projetos concretos, bem determinados, de libertação.

Finalizo dando a palavra a D. Hélder Câmara, mestre, irmão e amigo, falando no dia 29 de outubro de 1974, na Universidade de Chicago, justamente sobre o diálogo entre cristãos e marxistas. "Dialogar com marxistas? Mas com que marxistas se, em pouco mais de 50 anos de governo, eles já se dividem em grupos que se combatem e se excomungam, com extrema violência?

Se é necessário não ser ingênuo e ter os olhos abertos para as distorções e divisões do mundo marxista, nós cristãos, não podemos ter o farisaísmo de apresentar-nos como vivendo o Evangelho de Cristo apresentando o espetáculo edificante de um só coração e de uma só alma.

O espetáculo do mundo cristão: Pouco cristão...

Tenhamos a coragem de reconhecer que é cristã, ao menos de nome e de origem, a minoria mínima que, de maneira injusta, detém a quase totalidade dos recursos da terra, deixando mais de 2/3 da humanidade em situação subumana.

Tenhamos a coragem de reconhecer que a parte cristã do mundo produtor de matéria-prima — a América Latina — oferece o espetáculo bem pouco cristão do pior dos colonialismos: o colonialismo interno, isto é, latino-americano, mantendo a própria riqueza às custas de mais de 2/3 de concidadãos que se afundam na miséria e na fome.

Tenhamos a coragem de reconhecer que, ao bater-nos pela mudança pacífica mas efetiva e rápida das estruturas injustas, que esmagam a maior parte da humanidade, nós cristãos, vemos a Igreja também atingida pela engrenagem capitalista e com uma sobrecarga de estruturas a rever. Isto, aliás, embora crie obrigações urgentes, para as quais ainda nem vemos saída, não chega a escandalizar-nos, pois sabemos que a Igreja, divina em seu Fundador, o Cristo, está entregue à nossa fraqueza humana".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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