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Mãe, Mulher ou Pessoa: discutindo o aborto

Mãe, Mulher ou Pessoa: discutindo o aborto

Marilena Chauí

Professora de filosofia da USP

O que há de mais importante no "feminino" está contido na maternidade ou na individualidade da mulher? A opção pelo aborto é um exercício de liberdade ou apenas uma necessidade imposta pela sociedade? Este artigo procura aprofundar a discussão destas questões.

É preciso ter delicadeza ao tratar o drama do aborto. Sobretudo quando ouvimos depoimentos de mulheres que abortaram em condições chocantes e violentas, especialmente as meninas. Os depoimentos de todas as mulheres revelam que, em sua maioria, os abortos são uma necessidade, raramente uma liberdade. Mas, aqui, quero voltar minha atenção apenas para a situação das meninas entre 13 e 18 anos.

Uma das características da sociedade capitalista de hoje é tentar retardar o quanto possível a entrada dos jovens no mercado de trabalho. Esse retardamento pode ser medido tanto pelo prolongamento da permanência na escola (para a classe média) quanto pelos salários extremamente baixos que são oferecidos aos menores (para as classes populares). Ao mesmo tempo, a declaração de maioridade costuma coincidir com um período de ausência da estabilidade no emprego, de ausência de salário suficiente para a sobrevivência (no caso das meninas das classes populares) e de busca de trabalho (para a maioria das meninas de classe média).

Essa realidade reforça a idéia, corrente em nossa sociedade, de que é preciso esperar condições mínimas de segurança econômica para estabelecer uma relação amorosa duradoura (identificada com o casamento) e para a procriação (também dependente do casamento).

Tais exigências contrariam a sexualidade dos jovens e, para garantir a obediência a elas, a sociedade, através da ideologia, valoriza a virgindade, a relação amorosa casta e oferece substitutivos (as prostitutas) para os meninos. Às meninas não oferece nada, pois se acredita que elas não têm desejos sexuais. A confirmação desse controle social pode ser vista ainda na marginalização a que estão sujeitas as meninas que abortam e as mães solteiras.

Para as meninas que estão mais ou menos entre os 13 e 18 anos, o aborto encarna uma realidade crua: na maioria das vezes, elas não têm como se responsabilizar pela maternidade, desde a própria gravidez, o pré-natal, o parto, até a criação de uma criança. A não ser que ocorra o de sempre: o casamento obrigatório, cujos desastres se farão sentir logo depois, além da vergonha que essa obrigação causa num meio social que atribui importância fundamental ao casamento da virgem.

E do ponto de vista pessoal, as meninas não suportam as pressões sociais, as reprovações religiosas e morais da maternidade fora do casamento, nem desejam a humilhação do casamento obrigatório. Pode-se mesmo afirmar que a própria gravidez inesperada possui um sentido preciso, que é o de revelar que as meninas não tomam anticoncepcionais porque não são prostitutas prontas a relações sexuais "sem amor". Estranhamente, portanto, a gravidez inesperada das meninas significa, ao mesmo tempo, pureza e pecado.

Em casos excepcionais, sobretudo na alta classe média e na burguesia, as famílias podem aceitar com naturalidade tanto a necessidade do aborto quanto a da maternidade e socorrem as meninas em ambos os casos. Mas, em geral, as meninas abortam porque estão aterrorizadas com a própria gravidez, enquanto algo físico; porque estão aterrorizadas com a idéia de criar filhos sem condições para fazê-lo (seja porque foram abandonadas pelos parceiros, seja porque estes também são muito jovens e não têm como arcar com a paternidade); e porque estão aterrorizadas com as punições que desabarão sobre elas.

Por não terem aguardado o casamento, são marcadas como imorais, pervertidas e anti-sociais. Se estão na escola, são expulsas para evitar o "mau-exemplo"; se estão empregadas, são despedidas porque "mulher grávida é um problema". Freqüentemente, se sentem abandonadas pelos parceiros e pela família. É um abandono muito especial porque não significa necessariamente que são deixadas sozinhas e ao deus-dará, mas sim porque parceiros e famílias são os primeiros a propor imediatamente o aborto, sem maiores indagações e com naturalidade, quando elas ainda não sabem se é isto que realmente desejam.

O abandono é tanto maior quando sua imaginação se povoa com as figuras trágicas das mães solteiras suicidas, das prostitutas, das mulheres estéreis após o aborto mal realizado, figuras desprezadas pela hipocrisia da moral vigente. As meninas que têm formação religiosa são pressionadas em duas direções enlouquecedoras, ao mesmo tempo são acusadas de dois pecados: engravidar sem o matrimônio (o que inclui o pescado da luxúria) e abortar, destruindo uma vida. O melhor exemplo desse drama é a "novela" "O Direito de Nascer". (Quem não se lembra?)

Quando forçadas ao aborto clandestino, qual sua experiência? Se as condições financeiras o permitem e são atendidas por médicos decentes em locais decentes, a preservação de seu físico não chega a compensar o dano psíquico, por causa das condições que apontei acima. Se, ao contrário, recorrem aos açougueiros, passarão por uma experiência duplamente dramática.

Na verdade e por estranho que pareça, os açougueiros não admitem o aborto e descarregam sobre as mulheres o ódio e o ressentimento pelo ato que, cinicamente, aceitam realizar. Não usam anestésicos, não usam qualquer recurso de assepsia, organizam o local de "trabalho" de modo a marcar a ilegalidade e a "linha de montagem" do atendimento, usam linguagem agressiva e de baixo calão, fazem propostas sexuais indecentes durante o próprio aborto. Em suma, transformam o aborto em castigo e punição. Esse valor negativo e repressivo do aborto lhes aparece como procedimento necessário para incriminar as mulheres e, assim, "enquadrá-las" de alguma maneira na sociedade.

Apenas a maternidade faz da mulher um ser feminino?

Há, enfim, o aborto doméstico a que recorrem sobretudo as meninas das classes populares. Aqui, além da violência dos procedimentos usados (giletes, tesoura, colher, barbante, ervas intoxicantes), há também a violência das conseqüências (câncer, esterilidade, abortos espontâneos posteriores, horror à sexualidade, sadomasoquismo, histeria). Como há de ficar uma menina que, entre os 13 e os 18 anos, passou por experiência como estas?

Se tais experiências revelam a necessidade da legalização e da descriminalização do aborto, também sugerem a necessidade de discutirmos o próprio aborto dentro de nossa sociedade. Sem essas discussões corremos o risco de condenar as mulheres ao círculo vicioso do que é legal, mas ilegítimo. E médicos e parteiras, contrários ao aborto, o praticarão sob a forma repressiva do castigo e da punição.

Simplesmente legalizar o aborto não será suficiente para transformar a moralidade em sentido amplo nem as convicções íntimas dos seres humanos. Ao mesmo tempo que a legislação sobre o aborto, é o próprio aborto que merece ser o centro de nossas reflexões.

E como se tem discutido o aborto? Há, quase sempre, duas posições contrárias. Os que têm uma posição conservadora consideram que o que faz da mulher um ser "feminino" é a maternidade e encaram a sexualidade através da procriação (mulher = mãe). Do ponto de vista das feministas liberais (que começaram a questionar o problema primeiramente nos Estados Unidos e na Inglaterra) a mulher é encarada como uma pessoa que pensa, que ama, que tem consciência, que é capaz de se comunicar e se relacionar com os outros, que é livre e dotada de direitos e, portanto, pode escolher ou não a maternidade (mulher = pessoa).

Há questões que se repetem durante a discussão. Tanto conservadores como liberais discutem, por exemplo, a possibilidade de determinar em que momento um feto é vida. Para os primeiros, há vida a partir do momento da concepção.

Aproveitando-se da controvérsia sobre o assunto, as feministas liberais afirmam que só há vida, como vida humana, com o nascimento. Por isso, os conservadores consideram a legalização do aborto um infanticidio e, na mesma linha de argumentação, são contrários aos anticoncepcionais e ao planejamento familiar (ambos considerados pelas feministas liberais como necessários e preferíveis ao aborto, pois são métodos preventivos).

Essa discussão tem conseqüências práticas, como se pode observar pelo exame das várias legislações existentes sobre o aborto e nas quais, de maneira subentendida, vale o ponto de vista conservador.

Em quase todas elas, quatro pontos principais sempre aparecem: primeiro, o aborto só pode ser realizado em hospitais com licença especial para isso e nos quais deve haver uma "comissão para caso de aborto" que decide se ele pode ser ou não realizado, independentemente da decisão da mulher grávida.

Em segundo lugar, somente médicos devidamente autorizados podem fazê-lo. Segundo as feministas, isso signifia não só o aumento dos custos de intervenção decididos exclusivamente por quem a realiza, mas também a criação de um aparato institucional complicado e desproporcional para a simplicidade da intervenção, que pode ser efetuada com um simples aparelho, tipo "aspirador".

Terceiro, o aborto só pode ser «realizado até uma certa fase da gravidez na qual a mulher não corre perigo, sendo excepcionalmente permitido em caso de algum acidente que tenha tornado a gravidez ou o parto perigosos. As feministas alegam que se o aborto é possível neste segundo caso é porque pode ser realizado em qualquer etapa da gravidez, sendo necessários métodos diferentes em cada situação.

Finalmente, o aborto só poderá ser feito na mulher casada, com o consentimento do marido e, na mulher solteira, com o consentimento dos pais ou responsáveis. As feministas alegam que, nos dois casos, a liberdade feminina é totalmente desconsiderada.

As discussões permanecem presas ao quadro do pensamento conservador

Assim, embora a defesa feminista da liberdade consciente da mulher para dispor de seu próprio corpo seja burlada pela legislação, na verdade isso é conseqüência da estreiteza das discussões que permanecem presas ao quadro da ideologia conservadora.

Um dos aspectos interessantes das discussões feministas consiste na denúncia da natureza masculina das teses sobre o aborto (ainda que defendidas por homens e mulheres, evidentemente). Isto transparece não só na ambigüidade da atitude masculina (contrário ao aborto, os homens logo o propõem quando uma gravidez os incomoda), mas sobretudo no fato de seus discursos terem sempre dado atenção especial ao feto, que se torna um instrumento eficaz e necessário para impedir o discurso das mulheres sobre o aborto.

Na busca de novos rumos onde fica a culpa, há séculos interiorizada?

Num esforço para superar esse quadro de discussões, as feministas e as mulheres não conservadoras têm trilhado um novo caminho onde defendem as seguintes idéias: 1) o aborto é clínica e cirurgicamente muito simples, menos difícil e menos perigoso do que um parto, podendo ser feito por pessoas que recebam rápido e adequado treinamento; 2) o aborto é um direito feminino não só de autodefesa, mas também de opção face à maternidade (podendo ser opção de momento ou definitiva); 3) tanto o aborto perigoso e mortal quanto o aborto clandestino e traumático decorrem da falta de uma verdadeira saúde pública que informe as mulheres e as auxilie com métodos anticoncepcionais adequados e que seja capaz de propor um planejamento familiar que não fira a liberdade de cada um quanto à procriação.

No entanto idéias tão corretas podem fazer um caminho apressado e imediatista, pois, com exceção da primeira idéia (ausência de perigo no aborto), o restante da argumentação parece deixar de lado séculos de ideologia procriadora e de interiorização de culpa. Há uma tendência generalizada a tratar o aborto como se não fosse um fenômeno cultural, físico e psíquico dotado de simbolismos profundos e como se, na prática, não fosse vivenciado pelas mulheres como um ato sem liberdade e sem autonomia, algo que lhes é tão imposto quanto a maternidade, avesso e direito da mesma ideologia repressiva, uma forma de culpa.

Justamente porque defendo intransigentemente a legalização e a descriminalização do aborto, considero necessário levar em conta o modo como é vivenciado pelas mulheres brasileiras.

É vivido como ausência de liberdade (imposição social e moral) e como violência. É imposição porque há punições e sanções variadas para as mulheres, tanto quando não abortam como quando abortam. É violência física não só por causa das péssimas condições em que é realizado pela maioria das mulheres, mas também porque nele algo é extirpado de nosso corpo, ainda que sem dor. Simbolicamente o aborto é investido de uma carga afetiva mais dramática que a extração de um dente ou de um apêndice, ainda que clinicamente seja tão ou mais simples. É violência psíquica porque numa cultura cristianizada, na qual não há acordo quanto à vida ou não-vida do feto e na qual a maternidade define a essência do feminino, o aborto surge como se fosse culpa ou falha.

Que essa "culpa" e essa "falha" nos tenham sido inculcadas histórica e culturalmente e que façam do aborto um ato de violência, ninguém duvida. Mas isto significa também que se não são parte de uma "essência eterna da mulher", nem por isso as eliminaremos rapidamente só porque a nossa vontade e nossa razão nos mostram que podem ser eliminadas. Afinal, a ideologia não é uma crosta desagradável que se remove com um bom detergente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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