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Para entender a crise

Para entender a crise

Celso Ming

Sociólogo e jornalista, editor de economia do Jornal da Tarde

Não basta entender que estamos atolados na maior crise econômica da história do Brasil. É preciso entender por que isso está acontecendo. Sem esse porquê, não será possível encontrar a saída.

A gravidade da crise é transparente. Nunca tivemos, por exemplo, uma inflação anual de 210% como agora. Nem uma recessão econômica tão profunda, com tanto desemprego, subemprego, perda de renda, falências e concordatas. Mesmo nas mais profundas depressões econômicas do passado, como a dos anos 30, o trabalhador desempregado após o abandono dos cafezais recorria à cultura de subsistência, escapatória impossível em nossa sociedade altamente urbanizada.

Nunca tivemos, tampouco, uma dívida externa tão pesada a carregar: nada menos que 100 bilhões de dólares. Mas o peso maior não é sequer o tamanho dessa dívida. É o fato de que aproximadamente 80% das amortizações vencem nos próximos seis anos. E, mais do que isso, o fato de que, apenas o serviço dessa dívida, ou seja, as despesas com amortizações, e juros, nos estão custando cerca de 21 bilhões de dólares, o que dá mais de 90% do faturamento brasileiro com exportações.

Se, por um ato de generosidade (inteiramente fora de cogitações), os credores externos perdoassem o principal da dívida externa, ainda assim, o Brasil não teria sequer condições para pagar os 12 a 13 bilhões de dólares anuais com juros, porque já tem uma despesa de 17 a 20 bilhões de dólares com importações e mais 4 bilhões de dólares com outros serviços (principalmente, transportes, turismo, remessa de royalties, aluguéis, etc). Para completar o quadro dramático, as nossas reservas internacionais são, hoje, negativas, entre 4 e 5 bilhões de dólares.

Se voltarmos apenas dez anos para trás, entenderemos que a situação econômica era inteiramente diversa: o Brasil vivia o melhor momento de sua história econômica. Em 1973, a inflação estava a 15,4%. Mesmo levando em conta que o então ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, manipulou estatísticas, naquele ano a inflação real não foi superior a 20 ou 22%. O Produto Interno Bruto, isto é, a produção total, crescia a mais de 10% ao ano; a dívida externa era de apenas 12,6 bilhões de dólares. E, se forem descontadas as reservas externas de 6,4 bilhões de dólares, a dívida líquida não passava, então, de 6,2 bilhões de dólares.

A pergunta imediata é, então, a seguinte: o que se passou, em apenas dez anos, para que a economia brasileira se deteriorasse tanto e tão depressa?

De 1968 a 1974: tempo de vacas gordas

Antes de entender o fundo do poço, é preciso ter bem claro que o tal milagre brasileiro, período de vacas gordas, que se estendeu de 1968 a 1974, nada teve de milagroso. Foi apenas o resultado da confluência feliz (e bem aproveitada) de um punhado de fatores favoráveis, tanto interna como externamente.

No final de 1973 o "milagre" começa a desmoronar

A partir do segundo semestre de 1973, todo esse quadro favorável ao milagre econômico desfez-se quase de repente não só com o primeiro choque do petróleo, mas, também, porque a indústria produtora de matérias-primas e de bens de consumo estava operando com sua capacidade máxima, exigindo fortes investimentos para ampliar a produção a partir daquele nível.

Além disso, os países industrializados que também viveram um período de grande prosperidade até então, adotaram a retranca econômica com o objetivo de reduzir suas despesas com importação de petróleo. E isso prejudicou as exportações do Brasil.

Qual foi a política adotada pelo governo brasileiro depois da reviravolta que se seguiu no primeiro choque de petróleo? Os pronunciamentos das autoridades econômicas a partir de 1974 são muito elucidativos. O ministro Mário Henrique Simonsen, por exemplo, repetia, a cada contato com a imprensa que "o Brasil é uma ilha de prosperidade", inexplicavelmente imunizado contra a crise que tomava conta do mundo. O governo ignorou a crise. Toda a política econômica, a partir de 1974, tinha como base a hipótese de que a prosperidade continuaria para sempre. E isso ficou claro, não apenas nos discursos, mas também na ação e na omissão do governo.

Em vez de ajustar a economia aos novos tempos, o governo adotou o mais ambicioso e perdulário programa de desenvolvimento econômico da história do Brasil. Tratava-se da implantação do II Programa de Desenvolvimento Econômico (II PND) que previa investimentos de mais de 60 bilhões de dólares em hidrelétricas, siderúrgicas, plantas petroquímicas, ferrovias, mineração, metalurgia dos não-ferrosos, química básica, corredores de exportação, programa nuclear... e por aí afora.

Por trás do II PND havia a doutrina da Escola Superior de Guerra, cujo sonho era tornar o Brasil a grande potência do futuro. Para isso, seria necessário — é claro — aproveitar as oportunidades históricas que se criavam. E a oportunidade havia chegado: enquanto todos os demais países industrializados davam marcha a ré, o Brasil poderia continuar usando a quarta-marcha, queimando etapas e tirando o atraso, aproveitando os recursos financeiros ociosos no mercado internacional que os banqueiros desejavam nos emprestar.

Mas o governo ignorou a crise. A rigor, não levou a sério a crise energética e não tomou a iniciativa de atacar a falta de petróleo. A tentativa de reduzir o consumo de derivados abortou no tragicômico episódio das "simonetas". Aliás, o desperdício de óleo diesel e de óleo combustível cresceu porque estes passaram a ser subsidiados, isto é, passaram, em boa parte, a ser pagos ou pelo governo ou pelo consumidor de gasolina. O Programa de Álcool, na verdade, só foi mesmo tocado a partir de 1979.

Acaba o mito da "ilha de prosperidade"

Faltou também uma política agrícola capaz, a um só tempo, de assegurar: 1) o abastecimento interno, 2) excedentes exportáveis que pudessem reduzir o déficit provocado por importações fortemente mais altas do que as exportações e 3) matérias-primas vegetais que pudessem ajudar a substituir derivados do petróleo. Em 1978 e 1979, a política de abastecimento interno de alimentos baseava-se na importação: passamos a importar arroz da Tailândia; feijão, do México; milho, dos Estados Unidos; trigo, dos Estados Unidos, Canadá e Argentina; carne, do Uruguai; e leite em pó, do Mercado Comum Europeu.

Mas veio o segundo choque do petróleo, em 1979, e, com ele, desabaram todos os alicerces da política econômica de até então. Foi a hora em que o ministro Mário Henrique Simonsen, já no governo Figueiredo, botou as mãos na cabeça e pediu uma economia de guerra. Mas, era tarde demais e, acima de tudo, o país não estava preparado para o jogo da retranca. Não era uma "ilha de prosperidade".

Então, veio a substituição de ministros, que apenas aprofundou a crise porque o novo ministro do Planejamento, Antonio Delfim Netto, respondeu a ela com medidas inconseqüentes baseadas na prefixação da correção monetária e da correção cambial, em 50 e 55%, respectivamente. Aí a inflação encarregou-se de derrubar a política do ministro. Em 1980, pulava para 110,2%.

Sem saída, mergulhamos na recessão

A principal causa da inflação era o fato de que o país inteiro estava em obras, gerando renda, sem que houvesse um aumento correspondente da produção porque os projetos estavam, simultaneamente, em fase de implantação. O aumento da produção só ocorreria à medida que as novas unidades fossem sendo inauguradas.

Em 1981, o ministros desistiram do desenvolvimentismo e atiraram o país na recessão, tão atabalhoadamente como o tinham submergido no consumo artificial. (Artificial porque financiado com uma taxa de juros fortemente negativa em conseqüência da prefixação da correção monetária; e por importações excessivamente baratas, em conseqüência de um dólar barato demais em cruzeiros).

E, em 1981, já havia um fato novo que vinha solapando o já precário equilíbrio externo: a partir de fins de 1979, o governo dos Estados Unidos abandonou a política de pagar suas despesas cada vez maiores com novas emissões de moeda e, em vez disso, passou a tomar dólares emprestados à comunidade financeira internacional. A partir do momento em que o elefante entrou na banheira, as taxas internacionais de juro (que é o preço do dinheiro) espirraram para cima. E isso pegou no contra-pé os países endividados em dólares. Foi um golpe decisivo para a estratégia de endividamento externo porque as despesas com juros da dívida passaram a ficar mais altas do que as próprias despesas com importação de petróleo.

Mas, a essa altura, o governo brasileiro já não tomava dólares por empréstimo para financiar grandes obras. Recorria pesadamente a empréstimos externos apenas para pagar os juros e a amortização da dívida, aumentando ainda mais o endividamento.

Os credores negam novos empréstimos

O que veio depois foi apenas o ritual de execução: a política econômica já estava condenada à morte. Veio a crise do Irã, depois a crise da Polônia e, em março de 1982, a crise das Malvinas. Essas crises assustaram os banqueiros e deram a eles a consciência de que a saúde financeira dos países em desenvolvimento não garantia o retorno do capital a eles emprestado. Sobreveio, então, em agosto de 1982, a quebra do México e, a partir de setembro (chamado "negro"), os credores externos foram tomados pelo pânico e deixaram de canalizar um centavo de dólar sequer para o Brasil e outros países endividados.

Independentemente dos erros de política econômica, a partir de 1974 uma das principais razões da tragédia da crise brasileira está no fato de que todo o II PND, que incluía projetos de largo prazo de maturação (isto é, levavam muitos anos para começar a produzir), foi financiado por empréstimos de curto prazo, de cinco a oito anos. Se qualquer assalariado tem 20, 25 ou até 30 anos para devolver o financiamento obtido para compra de casa própria, não tem sentido construir hidrelétricas, siderúrgicas, pólos petroquímicos, indústrias químicas e de metais não-ferroros com empréstimos de prazo curto.

Antes de mais nada, uma questão política

As linhas de socorro financeiro prestado pelos países ricos são, de longe, insuficientes e inadequadas para resolver a crise do Brasil e dos demais países em desenvolvimento, entre outras razões porque exigem, como contrapartida, a adoção de uma política de recessão econômica, insuportável para economias não inteiramente consolidadas.

Parece claro que a maior fragilidade da posição brasileira está na falta de legitimidade do governo, de modo a assegurar o respaldo da população para uma posição de força nas negociações com os credores. Falta, portanto, poder. E isso, evidentemente, é uma questão política e não propriamente econômica.

Antes de resolvido esse problema fundamental, as discussões a respeito de uma moratória negociada ou unilateral são descabidas. É imprescindível, também, que um país tenha um programa econômico capaz, ao mesmo tempo, de dar um sentido à atividade econômica, hoje caótica, retomar o desenvolvimento e eliminar os principais focos de tensão social, mas, também, de assegurar o próprio pagamento da dívida externa. A estratégia atual, de tentar eliminar o déficit pela compressão das importações só tende a aprofundar a recessão e as tensões sociais — além de não proporcionar nenhuma saída.

Mas, apesar do aprofundamento da recessão, do aumento do desemprego e do provável aumento de falências e concordatas, não é certo que haja uma explosão social nem um brutal sucateamento da indústria nacional — com vem sendo predito por alguns.

Aliviando as tensões, uma economia subterrânea

É importante levar em conta que há uma economia paralela ("por fora"), que está exercendo a função de um poderoso pára-choque para as tensões econômicas e sociais. O aumento da carga fiscal e, mais do que isso, a falta de garantia do suprimento de matérias-primas e componentes importados, está atirando as empresas — grandes e pequenas — ao subfaturamento nas exportações, ao superfaturamento nas importações e à sonegação pura e simples de salários, encargos sociais, impostos e taxas.

O mesmo começa a intensificar-se entre as pessoas físicas. Proliferam como nunca os bicos e as atividades não contabilizadas ou não registradas. E isso não se restringe às faixas anteriormente catalogadas como de subemprego. Aumentou fortemente a comercialização "sem nota" ou "por fora". O profissional liberal aprendeu a cobrar honorários "com recibo" e "sem recibo". Uma fortíssima atividade agropecuária passou a vicejar inteiramente fora das contas nacionais.

Ora, a existência dessa economia paralela é fator fundamental para entender por que não tivemos ainda um cataclisma social. Essa economia subterrânea está reabsorvendo as tensões e diluindo eventuais focos de alta pressão social.

Também não devemos esperar para 1984 nem grandes soluções nem a implosão das instituições econômicas ainda prevalescentes. É óbvio que não é mais possível manter a atual estrutura financeira; a deterioração do perfil da dívida interna do Tesouro Federal aponta para uma espécie de moratória interna que contrariaria interesses. Além disso, o Sistema Previdenciário está falido e ameaça os benefícios do aposentado; o Sistema Financeiro da Habitação também está quebrado e ameaça o patrimônio dos aplicadores em cadernetas de poupança; o endividamento de alguns importantes setores estatais (como o de energia elétrica, o siderúrgico e o petroquímico) está impedindo que o aumento brutal dos custos financeiros seja absorvido por meio de aumentos convencionais de tarifas... Enfim, as estruturas econômicas, qualquer que seja o governo que venha a assumir o poder em 1985, terão de ser inteiramente revistas.

Ocorre que a estratégia da atual administração é claramente a de adiar o desfecho da crise, inclusive o da renegociação da dívida externa. Em outras palavras, a atitude básica do atual governo é a de encompridar o pavio para que a bomba estoure depois da transferência do mandato ao governo seguinte.

A embarcação ainda consegue flutuar

É preciso projetar o futuro usando um duplo radar. No radar de longo alcance fica clara a necessidade de mudanças profundas que, mais cedo ou mais tarde, terão de ser enfrentadas. E essas mudanças vão provocar grandes transferências de renda e, possivelmente, agravar tensões. Mas isso, decididamente, deverá ser adiado para depois de março de 1985.

Antes disso, o atual governo não vai produzir soluções. Apenas um acontecimento inteiramente imprevisto, como um eventual terceiro choque do petróleo, uma quebra excepcional de safras ou um fato político de suma gravidade (um atentado, por exemplo) poderiam precipitar definições e gerar traumatismos irrecuperáveis.

Por isso, é preciso usar também um radar de curto alcance. E na tela desse radar é possível visualizar uma embarcação ainda à tona, sem grandes riscos de naufrágio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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