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A "Folha" e as Diretas

A "Folha" e as Diretas

Entrevista de Otávio Frias Filho

PERGUNTA – Como surgiu o engajamento da Folha pelas eleições diretas? Foi algo de momento ou era parte de um projeto mais amplo do jornal?

OTÁVIO – No começo do segundo semestre do ano passado, houve discussões em cima da forma da sucessão e da forma de escolha do futuro presidente da República. Havia duas ordens de preocupação na Folha: de um lado, com relação ao tipo de peso que o jornal podia exercer ou poderia colocar nessa discussão pública: tanto poderia adotar uma atitude mais tática, multiplicando e aumentando a chance de intervir no curso dos acontecimentos, como poderia se pretender a uma posição, mais doutrinária, mais teórica e, nesse caso, também marcaria uma posição. A segunda ordem de preocupação era relacionada ao conteúdo, ligada à forma mesma de eleição. Havia quem opinasse pela idéia de que o jornal devesse bater pé em cima de uma forma que fosse legítima, fosse ela direta ou indireta, e havia quem postulasse, pelo contrário, que o jornal deveria se colocar claramente a favor das eleições diretas.

As coisas começaram a se definir no sentido de que o jornal teria que ter uma posição mais doutrinária do que tática, de que o que o público esperava da Folha era uma posição mais ideológica e menos política, no sentido de interferir no rumo dos acontecimentos. Ficava também definido que o jornal deveria se colocar, claramente, por uma forma de eleição que fosse a eleição direta, embora reconheça a possibilidade de se organizarem eleições indiretas que sejam reconhecidas pelos grupos sociais e pela opinião pública, como legítimas. O jornal achava, por uma série de circunstâncias específicas, que a necessidade que se colocava, hoje, no Brasil, era de se voltar à eleição direta, ao método do voto popular pleno, para escolher o presidente da República. Havia uma série de raciocínios que pesavam em favor dessa decisão que foi tomada em novembro. Quando houve o comício da Praça Charles Miller, no dia 23 de novembro, na semana que antecedeu ao comício, a Folha fez uma grande divulgação e a reportagem estava bastante mobilizada, para dar força para o comício.

EDISON – Se eu entendi bem, em algum momento você disse que o público queria uma posição mais doutrinária da Folha. Como é que vocês perceberam isso?

OTÁVIO – Eu não sei como esse tipo de avaliação é feito nos outros jornais. Na Folha, é muito impressionística. Na verdade, se concluiu, na base da capacidade de avaliação pessoal de cada pessoa, de cada um dos integrantes das reuniões do Conselho Editorial, editores e editorialistas. E um pouco na base de algumas pesquisas de opinião e algumas sondagens que a gente faz junto aos leitores e assinantes. A gente faz uma pesquisa anual junto a leitores e assinantes, que é pra definir o seu perfil. Então, a gente tinha essas pesquisas anuais, mas não chegamos a fazer nenhuma pesquisa perguntando, especificamente, com relação à sucessão de Figueiredo, com relação à eleição direta e indireta. O que havia era um pouco desse clima. A sociedade está muito cansada dessas soluções que andam passo a passo, dessa espécie de engenharia política com estes anos todos de abertura, acerta aqui, põe ali, vamos compor, vamos negociar... Há um certo cansaço material desse tipo de solução. Isso já estava bastante claro no ano passado, e agora, então, acho que está mais claro do que nunca.

MARÍLIA – Quando foi feita essa opção por assumir deliberadamente uma atitude doutrinária, de o jornal, além de informar, intervir exatamente numa realidade que se colocava, qual era a expectativa que vocês tinham?

OTÁVIO – Olha, a expectativa que a gente tinha era que a campanha não ia mobilizar massas, não seria uma campanha de massas, não tínhamos a expectativa de que seria uma campanha semelhante à campanha da anistia ou da constituinte. Aquilo era uma posição que o jornal ia levar até onde desse, no sentido de continuar falando em diretas ou, simplesmente, ficar falando para nenhum interlocutor. Agora, você tem milhares de interlocutores, entidades que são interlocu-toras. Quer dizer, deu-se uma capacidade, um potencial de interlocu-ção em cima desse tema, que é enorme. A gente não tinha essa expectativa.

EDISON – Eu queria que você me contasse um pouco, como é que foi e como é que está sendo a estratégia da Folha, em se tornar um interlocutor pra sociedade? E como é que as eleições diretas se encaixam dentro dessa estratégia, de se credenciar como ator político?

OTÁVIO – Essa questão remete para um panorama mais amplo. Durante os anos 60, e até o começo dos anos 70, a Folha – com alguns períodos de exceção – se manteve numa posição bastante fria com vista à política. Era um jornal bastante omisso que, na maior parte do tempo, se limitava a noticiar os fatos e não emitia opiniões. Tanto que a Folha nunca esteve sob censura. A Folha sempre acatou a censura por telex. Nesse período – anos 60 começo dos anos 70 – foi feito um trabalho muito grande de organização econô-mico-financeira do jornal. No final da década anterior, o jornal estava numa situação econômico-finan-ceira bastante precária, enfrentando uma série de dificuldades. E houve um trabalho muito duro de organização econômica da empresa. Foi um trabalho bem-sucedido.

Depois, já em meados da segunda metade dos anos 60, houve uma modernização tecnológica muito grande na Folha. Foi a época em que se instalou a impressão por off set, a fotocomposição, a fotomecânica. No começo dos anos 70, tinha um patrimônio de leitores bastante grande. Tinha consolidado o público que tinha desde os anos 50, quando já era um jornal de circulação bastante ampla, e possuía uma rede de distribuição muito eficiente. Junto com esse parque industrial moderno, estava numa situação econômica invejável, realmente: não tinha dívidas e era uma empresa que dava lucro.

Nessa época, houve uma série de discussões sobre o papel político que um jornal como a Folha poderia ter. A Folha teve algum papel político antes do golpe aqui em São Paulo. Era um jornal especificamente pequeno-burguês, urbano, de muita penetração no professora-do, tinha alguma influência em certos temas restritos, em nível municipal e estadual, vamos dizer. Basicamente, participavam dessas discussões o Cláudio Abramo, que na época dirigia a redação, o meu pai, e eu próprio. Me lembro que havia muito uma preocupação com certo tipo de espaço em que o jornal podia, mesmo naquela época, penetrar. Por exemplo, a defesa do consumidor e a defesa dos direitos humanos; dois temas que eram colocados como temas em que o jornal já tinha condições de interferir.

1974: A Folha adota uma posição mais crítica

Então, em 74, a Folha fez um editorial a respeito da distensão. Um editorial muito enigmático, publicado na capa, que saiu no primeiro dia de 74, ou no dia 31 de dezembro de 73. Acenava com uma necessidade de se fazer algumas mudanças, de se proceder a algum tipo de distensão. E eu me lembro de que, na redação, o editorial foi interpretado como uma inclinação da Folha para adotar de vez uma posição fascista. Isso reflete um pouco o clima de temor que se vivia, em 73, e também a falta de comunicação, muito grande, que havia.entre os propósitos da direção e os da redação.

No começo de 74, antes do Geisel tomar posse, o meu pai teve uma conversa com o general Golbery no Rio de Janeiro. E nessa conversa, ele disse ao meu pai quais eram os planos do governo Geisel, o que eles queriam... Enfim, na linguagem dele, queriam recolocar o regime nos trilhos iniciais. Queriam acabar com os abusos e seria muito importante ter um jornal que caminhasse nesse sentido.

O meu pai, que já tinha deixado se sensibilizar pelas discussões que a gente vinha tendo internamente, achou que aquilo era quase um sinal de novos tempos no país. E começou a orientar o trabalho da gente um pouco nessa direção. A Folha começou a ter posições mais críticas com relação ao governo estadual e começou a fazer denúncias na área municipal.

Isso foi indo num crescendo até que, no dia da morte do Vlado Her-zog, a Folha fez uma edição que a gente considera histórica. Não que seja histórica para o país, mas para o jornal. Foi uma edição de grande impacto. A gente já tinha vários articulistas escrevendo no jornal, que deram opiniões bastante críticas sobre aquilo. O jornal fez algumas edições indignadas após a morte do Vlado, especialmente a edição que cobriu a missa de 7º dia dele.

Alguns anos mais tarde, o Golbery teria enviado uma espécie de um recado para a Folha: quando teve aquelas conversas iniciais com meu pai, não estava nos planos dele trocar O Estado como jornal político em vez de ter a Folha. Esta foi a origem de tudo.

Há vários documentos que traduzem a linha desse projeto, basicamente: fazer um jornal liberal, burguês, preocupado com a defesa dos direitos do cidadão, preocupado com os direitos que os grupos sociais têm de se organizar, de se mobilizar, de ter o peso e presença no Estado, preocupado em democratizar a estrutura do Estado, preocupado em introduzir algumas reformas sociais na estrutura do capitalismo.

Quanto à campanha das diretas, eu acho que é um desdobramento natural. Tá dentro dessa delimitação ideológica que eu coloquei. A gente tem uma perspectiva, que não é a perspectiva do Estado, por exemplo. A perspectiva do Estado é a seguinte: eles são um jornal liberal, mas não levam esse liberalismo até a radicalidade do que é possível dentro do parâmetro liberal. E, embora sejam favoráveis a eleições diretas, eles não fazem uma defesa privilegiada dessa tese, por duas razões: a primeira, é porque não acham que o processo é mais essencial do que a pessoa, e a segunda é porque têm receio que o processo direto conduza ao que qualificam de demagogia, a líderes populistas enfim, à manipulação de massa que vai acabar sendo uma ameaça para a própria ordem democrática da república.

A posição da Folha é de que o fundamental é o processo, e os nomes são secundários. E de que a sociedade brasileira já é suficientemente desenvolvida e diversificada, do ponto de vista interno, para que haja controles no próprio nível social, controles em relação a esses perigos, de dirigentes populistas se transformarem em grandes caudilhos. A sociedade brasileira, hoje em dia, é muito complexa, com interesses muito antagônicos, e interesses já bem enraizados na estrutura da sociedade e da economia. Na opinião da Folha, os próprios grupos sociais não vão permitir que um líder de massas, ou um presidente eleito pelo voto direto, venha se transformar numa espécie de Perón ou Vargas.

EDISON – Como você caracteriza o compromisso e o papel que a Folha escolheu para desempenhar?

OTÁVIO – Eu li, a semana passada, uma entrevista que o Per-seu Abramo deu para um jornal estudantil da PUC, onde ele fazia uma análise da imprensa. Dizia que o Estadão é um jornal mais coerente, que a Folha é muito incoerente ideologicamente. E que, por outro lado, a Folha é um jornal que tem uma grande sensibilidade conjuntural, uma sensibilidade até oportunística, que é coisa que o Estadão não tem. Eu concordo com o que ele falou, mas inverto a posição dele. Eu acho que o desejável é o que a Folha faz, não o que o Estadão faz. Porque é muito mais útil que a sociedade tenha um jornal que é sensível às mudanças que ocorrem a cada dia, muito mais útil que os leitores tenham um jornal que se modifica à medida que a disposição deles, leitores, vai se modificando, do que ter um jornal fossilizado, que é uma ideologia incrustada na sociedade, que não se modifica há décadas. Eu acho que jornal não é partido político, jornal não é grupo teórico, não é escola ideológica. Eu acho que jornal tem que ser movido pela conjuntura mesmo. E a Folha faz isso. O nosso compromisso é com os nossos leitores. Quando esses leitores tinham uma atitude politicamente neutra, quando eles tinham uma atitude até de endossar o regime, a Folha tinha uma atitude correspondente nessa linha e, quando os leitores se deslocam para uma posição mais crítica, mais reivindicante, a Folha se desloca também. Eu acho que se por um lado isso pode ser visto como oportunismo, por outro lado, também com a mesma razão, eu posso chamar de fidelidade ao grupo social para quem a gente trabalha e a quem a gente está servindo.

Partidos fracos, imprensa forte

HAMILTON – E o poder político dos jornais?

OTÁVIO – Eu acho que isso até o governo está percebendo. No dia em que o Figueiredo completou 5 anos de mandato, que eles foram comemorar na plataforma de Campos (RJ), o Leitão deu uma entrevista falando que, no Brasil, a imprensa está tendo um poder excessivo, até mais que os partidos. Ele falou literalmente isso, que a imprensa – idiotamente –deu com pouco destaque. Eu acho que isso está acontecendo. Enquanto esses vestígios aí da ditadura não forem removidos de uma vez, enquanto a gente não abrir espaço para partidos mais fortes, partidos ideológicos, mais enraizados, etc., a imprensa vai continuar usurpando esse espaço que pertenceu aos partidos e que durante uma época foi usurpado pela Igreja.

HAMILTON – Você acha que com a organização da sociedade esse poder tende a diminuir, então?

OTÁVIO – Acho sim.

HAMILTON – Mas não é o caso dos Estados Unidos, por exemplo?

OTÁVIO – É verdade, não é o caso dos Estados Unidos. O símbolo disso é Watergate, que ficou um verdadeiro golpe de Estado. A maneira como se fazem golpes de Estado nos Estados Unidos é daquele jeito. Aquilo foi um golpe de Estado, porque ninguém há de imaginar que a administração Nixon fosse a única administração americana onde acontece aquele tipo de práticas... Mas é bem lembrado isso, nos Estados Unidos eles conservam um grande poder. Apesar disso, a estrutura partidária americana, embora não seja muito enraizada, embora não seja ideológica, é uma estrutura forte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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