Iniciação à loucura
Fauzi Arap
Ator, diretor e autor de teatro
Fauzi Arap é um homem de teatro. Começou a carreira como ator, nos idos de 1961, com o grupo que fundou o teatro Oficina, em São Paulo. Os mais velhos ainda se lembram de sua brilhante atuação em Os Pequenos Burgueses e Andorra. Mas a sua carreira de ator foi curta. Em 1967, passou a diretor. Foi responsável pelas montagens das peças de estréia de Plínio Marcos (Dois Perdidos numa Noite Suja e Navalha na Carne) e José Vicente (O Assalto), além de ter dirigido os mais expressivos shows de Maria Bethânia.
Em 1975, estreou como autor, com Pano de Boca, e firmou sua atuação nessa área com Um Ponto de Luz, Mocinhos Bandidos e, recentemente, Quase 84.
Para ele, a palavra dita as regras da realidade. A palavra dita as regras dos papéis que vivemos e da ficção. E, através da palavra, Fauzi Arap nos traz fragmentos de sua fantástica viagem pelo mundo da loucura.
Em 1971 e 1972, Fauzi trabalhou no Rio de Janeiro, com a psicanalista junguiana Nise da Silveira, dirigindo atividades de arteterapia para os internos do Centro Psiquiátrico Pedro II. Os textos que apresentamos aqui fazem parte de um amplo estudo, dedicado à Dra. Nise, que o autor amadureceu lenta e cuidadosamente durante mais de dez anos.
Vamos nos entregar à iniciação.
Á vida pulsa: dia e noite, dentro e fora. Horror é precisar agir quando o ciclo pede um voltar-se pra dentro.
O louco: horror ao fora.
O são: horror ao dentro.
NOSSO TEMPO É DESEQUILIBRADO PRA FORA.
(momento histórico?)
Ação compulsiva de muitos, contrapontuada pela parada compulsiva de poucos.
O LOUCO É MINORIA.
A loucura espelha objetivamente o
desequilíbrio inerente à ordem total
extrovertida: a introversão total. O
materialismo não deixou espaço a religião,
querendo abranger tudo com a ciência.
A desconsideração do mundo interno na
cultura contemporânea é causa direta da loucura.
Não existe sistema político capaz de absorver o
louco. Ele não escapa nem da direita nem da esquerda.
Os sistemas sociais primitivos, como no caso
dos negros e dos índios, continham em si o
dispositivo capaz de lidar com ele a religião.
O homem branco (ocidental?) perdeu-se de
suas origens, e a linguagem objetiva, científica
materializa uma esquizofrenia social, e para
manter-se alheio ao problema, sacrifica
indivíduos aos ídolos contemporâneos tais
como a tecnocracia, a economia, a
produtividade, as ideologias, etc., etc.
No Comunismo praticado em partes do
mundo, a opinião (dissidente) individual é
identificada com loucura.
No mundo capitalista, a desabilitação para a
competitividade necessária também conduz ao
hospício o sujeito desintegrado.
A cura individual é possível, mas só quando
se reconhece a natureza coletiva (social) do
problema.
A repressão é contra todos.
E a divisão é de cada um.
A tentativa de exterminar fora de nós aquilo
que na verdade se oculta dentro conduz ao
fascismo, a nível político, ou ao fanatismo, a nível religioso.
A ciência exerce uma espécie de fascismo do mundo objetivo contra o subjetivo.
A repressão é luta para manter as aparências.
A DOENÇA MENTAL É UMA DENÚNCIA.
A LOUCURA DESMASCARA A
VIOLÊNCIA QUE A SOCIEDADE
EXTROVERTIDA PRATICA CONTRA SI,
SOMENTE VALIDANDO COMO
REALIDADE O QUE É MATERIAL, O
QUE É FACTUAL, O QUE É CONCRETO.
ANTI-SUBVERSÃO
O silêncio não é uma greve
a ausência não é deserção
nem ameaça nem violência.
O exílio não é geográfico
nem a subversão voluntária.
Toda transformação implica um salto
qualitativo, onde se atravessa o nada, o vazio.
Não há como transformar-se, sem morrer para
o que se era antes.
A MORTE INICIA.
Morrer significa não planejar
e significa des-cobrir.
Morrer significa não ter mais futuro,
e por isso, reconhecer
o eterno presente
oculto atrás da face do agora.
Morrer é ver através.
A morte é um desligar-se do tempo, da linearidade da duração.
A MORTE TORNA O ABSOLUTO PRESENTE.
A loucura parece com a morte.
MORTE NÃO É AUSÊNCIA.
MORTE EM VIDA SIGNIFICA
DESIDENTIFICAR-SE.
O indivíduo que "morre" para a
personalidade descobre-se vida no espaço
um ESPAÇO MÃE, análogo ao útero
materno, mas de natureza cósmica.
O "espaço" interior é a-temporal (science
fiction) viagem no tempo e o encontro do
tesouro, a história real. ("A verdadeira
história da humanidade está presente nas células
anímicas de cada um" JUNG)
Quem é capaz de morrer para a personalidade
vivencia em si o além: as leis cósmicas ocultas
que regem a vida da superfície. Há uma
espécie de revelação. Incomunicável.
Impossível a representação segundo critérios da
superfície. Os mistérios falam uma linguagem
poética, e somente por analogia, pode-se
construir um mapa.
INICIAÇÃO é arqueologia.
Nos desvãos do subsolo, descobrimos que
todas as palavras designam coisas ou estados
ou entes reais. TUDO existe. Fantasmas,
duendes, fadas, Deuses, anjos, passado e futuro.
A hipótese antipsiquiátrica, que vislumbra na
coragem de aceitar a espontânea viagem, o
caminho de cura, somente revela meia verdade.
Muitas são as cidades, muitos são os países,
muitas as estradas e os descaminhos do mundo interior. Não basta aceitar perder-se para chegar, ou para se ter a certeza de que se chegará algum dia.
O número de possibilidades, de "lugares", de
estados de consciência possíveis é refletido
no plano externo pelo enorme número de
associações que pretendem dominar ou
controlar tais acessos.
As seitas, as escolas esotéricas, a psicanálise,
as muitas religiões, todas elas apontam
vagamente na mesma direção, apesar de
adotarem sistemas diferentes de disciplina e de ensino.
O fascínio e o terror que provocam a loucura
se prendem ao próprio fato dela tangenciar a
vocação mais profunda do ser humano: sua
vocação religiosa. (RE-LIGARE, a busca de
seu centro imortal, seu selbst, seu si mesmo.)
Os indivíduos que se comprometem
conscientemente com a aventura interior
sabem que devem conservar na aproximação
do "desconhecido" um porto seguro, um
referencial, sua identidade humana. E que não
devem abdicar de sua responsabilidade social,
mas ao contrário, chegam a perceber que, de
alguma forma, o novo conhecimento
individualizado a que tiveram acesso os
compromete mais ainda com o outro e com o
grupo humano ao qual pertencem.
Chamados de "místicos", eles sabem que
devem sujeitar-se a uma direção e disciplina no
que tange á vida pessoal, para alcançar seu
objetivo de comunhão com o absoluto e conservá-lo.
O homem pessoal, protegido por sua própria
ignorância, contenta-se com sua vida comum,
e não pretende ir além disso.
O louco, numa espécie de "suicídio
psicológico", tem acesso involuntário a esse
tipo de saber, mas perde-se do CHÃO sobre o
qual seria possível caminhar. Ele tenta chegar,
sem ir. Desiste do corpo e da responsabilidade
que ele implica e se DES-PERSONALIZA.
A CURA IMPOSSÍVEL:
A última prisão dupla que vitima o
esquizofrênico é a tentativa de cura quando
tenta a confirmação de sanidade justamente
com quem o "exilou": a maioria.
Desencontro ele é convidado a compactuar
com a OPINIÃO GERAL de que seu
INTERIOR não existe: as vozes, as
alucinações e todo o resto devem ser
esquecidos, chamados "a doença". Mas nadaé explicado. O mais forte dá as cartas.
Marcadas. As regras do jogo são TEATRO. E
a ele cabe o personagem absurdo: o louco.
Para não ser o louco, resta o silêncio, o não
personagem. Querem dele o
drama psicológico, a normalidade cotidiana, a volta
ao passado. Não pode. Está perdido dentro.
Ninguém pode desistir de si, de sua vocação.
O curador é hábil. Ele também não sabe. Mas,
sabe, sim, permanecer em silêncio. Como se
soubesse. O silêncio de um é doença, e o do
outro não o é. Ele percebe o desencontro
total, mas não tem palavras para desmascarar
o terrível jogo demoníaco no qual se envolveu.
Cada vez mais encurralado tenta não estar,
tenta não ser, tenta escapar. O silêncio
aparente se enche de vozes que ele
inconscientemente anima em sua autocensura
seus fantasmas mais terríveis. Como não
acreditar que está "louco"?
A arte abre uma porta no que tange a resolver
as duplas prisões originais, que paralisaram o
sujeito, no que tange a COMUNICAR-SE.
Todas as artes, do desenho ao psicodrama, e
mesmo a literatura, se prestam excelentemente
como veículos de EXTROVERSÃO
ARTIFICIAL. Na arte, expressar-se não
significa um compromisso imediato com a
realidade concreta, e mesmo sentimentos
violentos em vários níveis podem ter lugar,
resolvendo-se sem ameaçar o indivíduo com
sua natureza anti-social. É preciso que o
indivíduo compreenda que a nível de arte vale
tudo. Que ele não se mantenha timidamente
desenhando apenas o conveniente, mas
justamente ouse expressar mesmo o proibido a
nível do socialmente aceitável. E que possa
experimentar o alívio dessa extroversão.
A ARTE É O TRUQUE DO INTROVERTIDO PARA CABER NUM MUNDO DE EXTROVERTIDOS.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Jan 2011 -
Data do Fascículo
Set 1984