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Cabra marcado pra morrer

Cabra marcado pra morrer

Eduardo Coutinho

Cineasta

Não foi a primeira vez que aconteceu. Mas é, no mínimo, muito especial quando a própria realização de um filme acaba se transformando em novo roteiro, diferente do que estava programado e, de repente, diretor, atores, técnicos e fotógrafos passam a ser os personagens centrais de uma história tão dramática e humana quanto a dos personagens originais.

Em fevereiro de 1964, uma equipe de cinema do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o famoso CPC da UNE, instalou-se no engenho de Galiléia, em Pernambuco, para iniciar as filmagens de Cabra Marcado Pra Morrer, uma epopéia sobre a luta dos camponeses do Brasil pré-64.

O diretor do filme era Eduardo Coutinho que, na época, tinha 30 anos. O projeto era contar a vida de João Pedro Teixeira, importante líder das Ligas Camponesas da Paraíba, que lutava pela reforma agrária e por melhores condições de vida para os trabalhadores do campo e que fora assassinado numa emboscada, dois anos antes.

Elizabeth Teixeira, a viúva de João Pedro, faria o seu próprio papel. Os outros atores seriam escolhidos entre os moradores do engenho. Mas, no dia 1? de abril de 1964, o trabalho foi interrompido pelo golpe militar.

O exército invadiu Galiléia, ameaçou a população, prendeu os líderes camponeses e os membros da equipe da filmagem que não tinham conseguido fugir e apreendeu todo o equipamento. Mas, a maior parte do negativo filmado foi salva. Sobraram também oito fotografias de cena.

Dezessete anos depois, aos 47 anos de idade, Eduardo Coutinho voltou a Galiléia para completar o filme. Iniciou, então, uma longa peregrinação destinada a fazê-lo reencontrar todos os camponeses que tinham trabalhado em Cabra Marcado Pra Morrer e traçar a sua trajetória daquela época até hoje. Completava-se a aventura.

O personagem mais forte que Coutinho conseguiu reconstituir é, sem dúvida, Elizabeth Teixeira. Obrigada a fugir, abandonar filhos e a esconder-se na cidadezinha de São Rafael (RN), ela viveu quase vinte anos na clandestinidade, sob o nome de Marta Maria da Costa. O reencontro de Coutinho com Elizabeth foi tenso, marcado pela presença do filho, Abraão, que interferiu muito no depoimento. Ela pareceu amedrontada.

ELIZABETH – Como conseguiu isso?

COUTINHO – Foi o que sobrou, que salvou. O fotógrafo tinha guardado umas fotografias escondidas e salvou.

ELIZABETH – Eu admiro...

COUTINHO – Pegaram o original, mas a cópia não pegaram.

ABRAÃO – Mãe, reconheça a abertura política do presidente Figueiredo.

ELIZABETH – É, o presidente Figueiredo...

ABRAÃO – Graças a ele nós estamos aqui.

ELIZABETH – É, graças a ele eu estou aqui hoje. Porque foi o único governo... ele merece toda a dignidade nossa, de ter dado este amplo direito, de todos os presos políticos que se encontravam fora do Brasil voltar a encontrar com seus familiares. E a quem nós vamos agradecer, né? As minhas esperanças é só... Eu não tinha mais esperança de encontrar sequer com meus filhos. Porque eu tinha medo, eu sofri muito. A perseguição era grande, os caras tiveram muita vontade de... me exterminar.

COUTINHO – A senhora está aqui há muito tempo?

ELIZABETH – Há dezesseis anos. Depois daquele movimento eu tive que fugir pra aqui, não sabe? A coisa ficou um pouco puxada mesmo, era perseguição por todos... não podia conseguir ficar ali no Recife. Quando cheguei aqui a coisa melhorou mais. Eu escondida, ninguém sabia quem eu era. Eu cheguei aqui, eu dizia... eu não ia dizer que tinha filhos. Depois que eu tomei intimidade com algumas pessoas foi que eu disse assim: eu tenho filhos, eu sou viúva, meu marido foi assassinado, Mas antes eu era caladinha, não dizia nada, calada, assombrada. Mas graças a Deus eu estou hoje aqui contando a história. E outros... esses...

No dia seguinte, longe da presença inibidora de Abraão, Elizabeth e Coutinho se reencontraram. Ela se soltou, pôde retomar sua história e a filmagem continuou. Contou como conheceu João Pedro, como viu nascerem as ligas camponesas de Sapé (PB) e Galiléia (PE) e como seu marido encarava a luta dos camponeses.

ELIZABETH– Por várias vezes ele foi preso por muitos policiais. E ele facilitou um pouco. Eu ensinando os meninos, os meninos assim na mesa, ele sentado na calçada, nu da cintura pra cima, quando chegou vários policiais. Aí, não deu tempo de nada, nada, nada. Eles pegaram ele e levaram preso, nu da cintura pra cima. Ele acreditava na luta. O latifúndio unido, ofereceram dinheiro a ele para que ele deixasse a luta. Eles davam outro, qualquer meio de vida pra ele sobreviver. Eu recordo isso todos os dias e todas as noites. A dureza que ele enfrentou e nunca esmoreceu. Ele nunca chegou em casa pra dizer: "Elizabeth, eu estou arrependido". Isso nunca. Era firme. Aí disse: "Vou preparar uma concentração para o sábado". Eu disse: "Não é possível preparar a concentração". Ele disse: "Preparo a concentração". Eu disse: "Conte comigo".

"Pegou o jipe, saiu pelos sítios e nesse dia nós fizemos a maior concentração em protesto. Ele tinha certo como o latifúndio ia tirar-lhe a vida. Um dia eu chamei ele: "João Pedro, vamos sair deste estado, não tá dando mais pra nós, a situação tá difícil. Chega um e outro aqui, diz que o latifúndio fala só em tirar a sua vida, fala até que no dia que você for assassinado eles têm que tirar a orelha pra beber com cana sua orelha. Não é possível uma coisa desta. Vamos se retirar daqui, vamos ver se nós vamos para o Sul".

Ele olhou pra mim e disse: "É, você e meus filhos está aí. Tirei o retrato, fica como lembrança. Mas que eu não me acovardo. Sei que a minha vida eles vão tirar, tenho certeza. Eu vejo o ódio na cara do latifúndio. Pra onde eu passo eu ouço resmungar e vejo a ira tirana que eles estão de mim. Eu sei que vou tombar, eles vão me tirar a vida. Agora, tem uma coisa que eu digo a você: tiram a minha vida covardemente".

Depois da emboscada que vitimou João Pedro, Elizabeth começou a participar mais diretamente da atividade política.

COUTINHO – Vinte dias depois do assassinato de João Pedro, Elizabeth Teixeira viajou para o Sul do país.

ELIZABETH – Eu tive que ir ao Rio de Janeiro participar da Comissão Parlamentar de Inquérito. Chegando ao Rio, fui a Brasília. Em Brasília, os deputados, junto com o Presidente, achavam que eu devia substituir o lugar de João Pedro, principalmente para a manutenção de meus filhos e pra que a liga engrandecesse com a minha presença – eu era a viúva do líder. E eu aí continuei.

Disse que substituía o lugar dele com a perda da minha vida. E substituí; e trabalhava autêntica. E, na minha luta, protestei contra o assassinato de João Pedro; e não só de João Pedro como de todos os companheiros que tombaram. Eu também cheguei a ponto de ir presa. E não foi com um polícia, nem dois, nem três não. E chegaram e mais atiraram em meus pés. Atiraram, nem parei a marcha em que ia. Entrei dentro do carro efui com eles.

Depois do segundo encontro com Coutinho, Elizabeth Teixeira pôde reassumir a sua identidade verdadeira. Entrou em contato com os outros filhos, que nunca mais tinha visto, e passou a reconstruir a sua vida.

Em sua despedida da equipe de filmagem, podemos ver, intacta e vigorosa, a sua força original para encarar os fatos e enfrentar a vida.

COUTINHO – Até logo, dona Elizabeth.

ELIZABETH – Até. Vocês já vão partir mesmo?

COUTINHO – Vamos partir.

ELIZABETH – Vocês desculpem alguma coisa.

COUTINHO – Foi tudo maravilhoso.

ELIZABETH – A luta é que não pára. A mesma necessidade de 64 está plantada, ela não fugiu um milímetro. A mesma necessidade está na fisionomia do operário, do homem do campo e do estudante. A luta que não pode parar. Enquanto se diz que tem fome e salário de miséria, o povo tem que lutar. Quem é que não luta por melhores dias de vida? Tem que lutar. Quem tem condições, quem tem sua boa vida que fique aí. Eu, como venho sofrendo, eu tenho que lutar e tenho peito de dizer: é preciso mudar o regime, é preciso que o povo lute. Enquanto tiver esse regimezinho, essa democraciazinha aí... democracia sem liberdade, democracia com salário de miséria, de fome, democracia sem o filho do operário e do camponês ter direito de estudar, ah... não pode, ninguém pode.

SOBRE A REALIZAÇÃO DO FILME

Cabra Marcado Pra Morrer é mais um filme que vem se reunir ao ciclo de cinema memorialista iniciado há alguns anos – em que se inclui Jango, de Silvio Tendler – e que recupera a história brasileira dos últimos 20 anos.

Iniciado em 1964, com o apoio do CPC da UNE, e interrompido no mesmo ano (com o "apoio" do golpe militar...), Cabra Marcado Pra Morrer é um documentário interessantíssimo sobre a trajetória dos militantes das Ligas Camponesas do Nordeste brasileiro.

O Centro Popular de Cultura (CPQ era uma instituição dirigida pela União Nacional dos Estudantes (UNE) mas que, além dos estudantes, reunia artistas profissionais. Esse era o caso do diretor do filme, Eduardo Coutinho, que chegara dois anos antes da França, onde tinha feito um curso de cinema.

Quando retomou as filmagens, em 1981, Coutinho contou apenas com recursos próprios. O filme foi feito em 16 milímetros e tem 1 hora e 58 minutos de duração. E, exatamente por ter sido feito em bitola de 16 milímetros é que ainda não pode entrar no circuito comercial (a bitola dos filmes comerciais é de 35 mm) e tem sido exibido em sessões especiais, em São Paulo e Rio.

A luta de Coutinho continua. Agora para levantar recursos para poder copiar o filme para exibição comercial.

Trechos escolhidos do roteiro de Eduardo Coutinho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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