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Videoprogresso

Videoprogresso

Gabriel Priolli

Jornalista

Está mudando a televisão do Brasil? O que significa a "nova TV" ou a "TV alternativa", como contraponto ao sistema estabelecido, hoje composto de quatro redes nacionais (Globo, SBT, Manchete e Bandeirantes), algumas redes regionais e diversas emissoras isoladas? Em especial, o que ela significa enquanto mudança de conteúdo e forma dos programas? Existe uma ou várias "TVs alternativas"? A "TV alternativa" é a TV do futuro?

São dúvidas que assaltam não apenas os telespectadores, mas também – e principalmente – aos próprios empresários e trabalhadores do setor de televisão. Elas refletem um momento de crise, um momento de passagem a um estágio que ninguém sabe ao certo qual é ou qual será. Vivemos, na verdade, a grande transição da Era da TV – concentradora, monopolística, impositiva, autoritária – para a Era do Vídeo, da explosão da TV em mil TVs, do acesso do consumidor à produção.

O vídeo está na moda. A classe média sonha em comprar o seu videocassete e mostrar à vizinhança que, no meio do naufrágio geral, até que não está tão mal assim. A rapaziada já não sonha mais em fazer conjuntinhos de rock, mas em formar núcleos de vídeo: há uma microprodutora em cada esquina ou em cada coração. Há bares com vídeo, festas, aulas, o diabo. Os filmes Super-8 viram peça de museu diante do equipamento de vídeo. Florescem os videoclubes e aumenta nos telespectadores o desejo de mais canais de TV, seja pelo sistema a cabo (como o telefone), seja em UHF, seja a TV por assinatura (com aparelhos especiais, alugados). Enfim, é a febre do vídeo, ardendo nos brasileiros.

Gozado é pensar que dez anos atrás, nem isso, a coisa era exatamente inversa. Pegava muito mal o sujeito confessar que trabalhava em televisão. Diziam que era um alienado, a serviço da manipulação ideológica da ditadura ou, no mínimo, que era um diluidor cultural, um oportunista devotado a banalizar, tornar "consumível" a cultura, mascatear com o conhecimento.

Em 1977 – tão perto! – estudantes em passeata no Viaduto do Chá cobriam o rosto para não sair nos teipes e gritavam para nós, da TV: "Dedos-Duros! Policiais!" – enquanto a tropa de choque nos baixava igualmente o cacete, demonstrando seu enorme carinho por jornalistas. Hoje, num grande comício como o do Vale do Anhan-gabaú, estudantes e outras pessoas registram tudo em suas câmaras domésticas de video-teipe, sem problemas, sem traumas. E todos ficam loucos para ver essas imagens.

Caminhamos para uma civilização da imagem

Essa mudança da água ao vinho decorre de um conjunto complexo de fatores. Para começar, há um processo universal de crescimento da comunicação visual, em detrimento da comunicação verbal. Diz-se que estamos avançando cada vez mais no rumo de uma civilização da imagem, da apreensão do mundo na descontinuidade, nos fragmentos dos milhares de informações de que ele é composto. É o tempo da instantaneidade, de uma consciência cósmica mais ampla: eu estou aqui, na minha máquina de escrever, mas posso ver na TV os tailandeses lutando pela democracia ou o Líbano sucumbindo sob bombas de procedência variada. Meu mundo é o mundo todo. Meu horizonte é pra lá de Bagdá. É um mundo que a palavra já não abrange, que precisa da imagem para existir.

O sistema internacional de comunicações, controlado pelos países desenvolvidos – dos quais dependemos econômica, política e culturalmente – bombardeia-nos através de filmes, revistas, discos e da própria TV com a noção de que o homem moderno hoje olha para o vídeo como para um espelho.

Claro que, para isso existir, é preciso que o vídeo seja cada vez mais acessível ao cidadão comum, ao consumidor da sociedade de massas. Mas a indústria eletrônica já se encarregou de oferecer videocassetes, videodiscos, câmaras cada vez mais leves e menores, TVs tamanho de bolso {Watchmen), telões, antenas domésticas para rastrear satélites de comunicações, uma parafernália de sofisticados objetos de consumo, que materializem essa tendência no sentido da imagem. Os equipamentos de vídeo e derivados são hoje, no mundo todo, a vanguarda do consumo, aquilo que dá mais status a quem os possui. Aqui entra o Brasil: evidentemente, não iríamos ficar fora da moda.

Há uma clara relação entre as mudanças nos hábitos de consumo de televisão, no Brasil, através da onda do vídeo, e a emergência dessa linha de "TV alternativa". O primeiro aparelho doméstico de videocassete nacional foi lançado em 1982. Antes dele, entretanto, já havia na praça milhares de outros, estrangeiros, introduzidos por um pujante setor da nossa economia: o contrabando. Raras vezes houve um negócio que crescesse tão depressa. Formaram-se redes de video-clubes e locadoras de fitas, operando integralmente com material "pirateado", e o antigo fenômeno dos "televizinhos" (as pessoas que iam assistir TV na casa dos outros, quando ela surgiu aqui, em 1950) voltou à cena: eram os "videovizi-nhos".

O mais importante nisso tudo, entretanto, é que a mudança introduzida no consumo da TV criou novas exigências nos telespectadores: quem tem um videocassete não quer ver nele coisas iguais às que a TV já mostra. Exige novidades e, com isso, pressiona a produção.

O efeito geral da introdução do vídeo no Brasil foi o de dinamizar o setor de televisão, apesar da crise econômica. Mesmo contra as estimativas de baixo lucro, em razão do "congestionamento" da área por um número elevado de redes e emissoras, num mercado publicitário em retração, a iniciativa privada entusiasmou-se com a comunicação televisiva. Empresas editoriais como a Abril e a Gazeta Mercantil abriram seus núcleos de vídeo. Mas o dado mais significativo é que houve um verdadeiro boom paralelo da pequena produção, microprodu-ção, melhor dizendo, que prolifera em centenas de grupos, às vezes nem organizados como empresas, mas todos com o mesmo desejo: instituir uma nova linguagem e conquistar os canais de TV para a sua difusão. Para mim, é esta – e apenas esta – a produção que se pode qualificar de "TV alternativa".

Vamos colocar os pingos direi-tinho nos "i". Existem empresas que produzem programas de TV e detêm os canais de transmissão, concedidos pelo governo: Globo, SBT, Manchete, Bandeirantes, o "sistema dominante" da televisão. Existem empresas, do mesmo porte ou pouco menores, que produzem programas, mas não detêm os canais: Abril Vídeo, Gazeta Mercantil, Lemos Brito, Multimeios, Clack são as "produtoras independentes", que na verdade têm independência apenas quanto à produção, mas não quanto à exibição do que fazem. Além do que, não diferem esteticamente daquilo que "o sistema dominante" faz. E existem, finalmente, grupos de produtores de vídeo, organizados como micro-empresas ou como equipes comunitárias, sem capital, máquinas ou divisão do trabalho. São estes – Olhar Eletrônico, Usyna, TVDO, Videoverso, TeleCine Maruim, Canal Independente, Fast Vídeo, Via Vídeo, VTV, dezenas e dezenas – que contestam mais radicalmente o que é feito e o modo de fazer do sistema dominante da TV. Algumas já encontraram espaço nos poucos canais disponíveis. Outras estão nos circuitos específicos de vídeo e lutam para "chegar ao ar". Esta é, enfim, a produção realmente alternativa ao padrão dominante.

Sob pressão o sistema muda

A grande produção "independente" pressiona o sistema dominante apenas num sentido: o de maior espaço para a difusão de seus programas, o que implica duas frentes de luta. Por um lado, as redes e emissoras de TV estão sendo pressionadas a deixar gradualmente a produção, transformando-se mais em "distribuidoras" e montanào suas programações com base em programas comprados de terceiros. É o que fazem hoje a TV Gazeta de São Paulo e, em menor escala, a Rede Manchete.

Por outro lado, o governo está sendo pressionado para modificar o sistema de concessões de canais de rádio e TV, muito restritivo. As grandes produtoras querem seus próprios canais, venham eles da forma técnica que vierem: cabo, UHF, etc. Quanto à pequena produção "alternativa", além de lutar nessas duas frentes – mais na base da vontade do que do poder de pressão, que não tem nenhum – ainda ataca em outros dois pontos: na organização da produção e na linguagem dos programas.

A TV Alternativa é essencialmente comunitária, artesanal. Não há funções rigidamente definidas: todos fazem um pouco de tudo. Quem cuida das finanças também opera a câmara, quem administra também mexe na edição. A hierarquia é frágil, o magro dinheiro resultante do trabalho é dividido igualitariamente, na maior parte dos casos.

Da mesma forma, a TV alternativa não engole as práticas consagradas de linguagem televisiva, aquela TV "Papai-Mamãe" da Globo e das outras. Faz imagens tortas ou de ponta-cabeça. Não oculta os cortes na montagem/edição, revelando ao telespectador a manipulação que opera nos teipes gravados. Não se preocupa com a linearidade ou a objetividade da narrativa visual. Troca as longas cenas por fragmentos de imagem, montados em ritmo vertiginoso: é a "estética do estilhaço". Enfim, transgride onde pode transgredir, satiriza a linguagem convencional, faz muita paródia e é permanentemente sarcástica com as "estrelas" do sistema dominante. É contra-informação, numa palavra.

A relação entre o sistema dominante e a TV alternativa é, portanto, contraditória, dialética: uma é a antítese da outra. Uma luta para dominar a outra. Quem vai ganhar? As armas estão do lado do sistema e é ele que tende a transformar-se, cooptando os "alternativos". Quer dizer: é muito pouco provável que haja uma ruptura no esquema da TV dominante, causado pela força da TV alternativa. Se houver, virá de mudanças políticas e sociais mais amplas no país.

Encontrar um mercado próprio

A tendência é a Grande-TV incorporar a linguagem da Micro-TV, gradualmente, sem mudar, entretanto, o caráter industrial de sua produção, com a divisão técnica e social do trabalho, a alienação do produtor, etc. A Micro-TV só crescerá e encontrará seu espaço na medida em que resistir ao canto de sereia da Grande-TV e buscar os telespectadores para uma relação direta, fazendo e exibindo imediatamente seus programas, discutindo com o público ali no calor da hora, atuando diretamente no movimento social, o que a TV jamais poderá fazer. É preciso explorar as possibilidades do mercado do vídeo, além de conflitar com o mercado estabelecido da TV.

Senão, vejamos. A TV alternativa não ameaça o poderio econômico da TV dominante. Ela dirige-se, fundamentalmente, a públicos informados, com um repertório visual sofisticado, capazes de compreender e assimilar a modernidade de suas inovações estéticas. São, é claro, públicos pequenos. Portanto, nada significa, em termos econômicos, o 1% de audiência da Olhar Eletrônico na TV Gazeta, contra os 60% da novela das oito da Globo, em todo o Brasil. Um rende tostões, o outro, bilhões. É a contradição entre uma televisão de massas e uma televisão para públicos dirigidos. Enquanto não houver mais canais, ganha a primeira. Mesmo quando houver, o poderio das redes nacionais será incontestável.

Em contrapartida, a TV dominante já começa a invadir aquele território que seria, em princípio, da TV alternativa: o mercado do video doméstico. A Globo já criou uma Globovídêo, há uma Manchete-Vídeo, há uma Videoban (da Bandeirantes) e por aí iremos. Agora mesmo, essas grandes empresas estão discutindo com as distribuidoras de filmes estrangeiros (Warner, Network), e com as redes nacionais de videoclubes e locadoras, a organização e legalização do mercado do vídeo doméstico.

Todos estão garantindo a sua fatia, menos... os pequenos produtores, os "alternativos". Ou seja: enquanto lutam para chegar às residências via TV, deixam de chegar via videocassete. Por quê? O setor ainda não tem uma consciência política, uma consciência de classe. Não tem uma entidade representativa e ainda prevalece o individualismo sobre a solidariedade.

Portanto, o único contraponto que a TV alternativa faz hoje ao sistema dominante é a nível da linguagem – o que é pouco. Nada impede que as inovações de linguagem sejam logo absorvidas e, de qualquer forma, as pequenas produtoras não pretendem viver como pilotos de prova daquilo que as redes vão depois copiar e faturar em cima. Assim, há várias coisas por fazer. Os pequenos produtores devem organizar-se e encontrar formas de cooperação e solidariedade, que lhes dêem força e unidade na ação.

Só assim vão poder enfrentar a luta para receber o seu quinhão dos futuros novos canais de TV e do mercado de vídeo doméstico regulamentado. Os pequenos produtores precisam também desenvolver um trabalho de conscientização dos telespectadores, aproveitando o prestígio que têm na imprensa, para uma luta mais ampla e mais profunda: a do controle democrático das telecomunicações do país. Quem está pelo novo e por mudanças radicais nas estruturas da sociedade brasileira está também por um novo vídeo – livre, criativo, sintonizado com o nosso tempo. O que falta é uma consciência mais ampla e abrangente do que está acontecendo por trás das coloridas imagens do tubo eletrônico. E uma consciência do que é preciso fazer para mudar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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