O operário da utopia
Affonso Romano de Sant'Anna
Apanhado em meio à noite, |
jogado ao chão da cela, |
o corpo nu conhece |
a primeira humilhação. |
Outras virão: o soco, |
o choque, a ameaça, |
o urro na escuridão. |
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Quantos volts
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suporta um corpo |
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até que dele escorra o fel |
da delação? |
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O que procura o tortura/dor |
nas pedras do rim alheio |
como vil minera/dor? |
O que ama esse ama/dor |
da morte? |
esse morcego suga/dor
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sob os porões da corte? |
esse joga/dor
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do jogo bruto |
e cria/dor
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O tortura/dor se sente, e acaso o é, |
um trabalha/dor diferente: |
seu trabalho é destruir |
o sonha/dor insistente, |
como o médico que resolvesse |
matar de dor |
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Mas sob a tortura |
o que há de melhor no homem |
jamais se manifesta. Quando muito |
podeis catar no chão |
o pouco que dele resta. |
Mas soltai-o em festa, ao sol, |
e vereis que a verdade |
de seus gestos se irradia. |
Livre |
vestindo a pele do dia
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o torturado caminha |
com seu corpo tatuado |
de violência e poesia. |
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Mas ele não marcha só. |
Apenas segue na frente |
na direção da utopia. |