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Maluf ou o novo corpo do rei

Maluf ou o novo corpo do rei

Marilena Chauí

Professora do Departamento de Filosofia da USP

Uma aura de mistério cerca os setores ou forças sociais que apóiam o candidato Paulo Maluf. Números pipocam pelos ares, mas nunca esclarecem quem se esconde sob eles. Simpatizantes são mencionados. Mas logo vêm a público desmentir a simpatia.

Sabe-se, vagamente, que ele recebe apoio de algumas Associações Comerciais, como as de São Paulo e Rio, do setor das microempresas, de uma parcela do chamado "empresariado nacional", como José Ermírio de Morais e Mário Garnero, de grupos latifundiários do Nordeste, à volta de Flávio Marcilio e Albano Franco. Certamente, a presença de Golbery, Roberto Campos e Delfim sugere o apoio de algumas multinacionais e fala-se em petro-dólares financiando a campanha, o que faz supor vínculos com setores da indústria bélica. E divide com Andreazza as simpatias das empreiteiras de todo o país.

Ideologicamente, Maluf se dirige à baixa classe média, beirando as classes marginalizadas (repetindo sempre os seus valores, sobretudo trabalho e coragem), e à classe média do "milagre" (prometendo-lhe outro surto de desenvolvimento econômico).

Ficam no ar algumas perguntas. Por que Maluf é, não só impopular, mas, sobretudo, tão assustador? Afinal, não seria o malufismo apenas nova roupagem da ditadura? O que o faz tão temível, a ponto de se firmar a necessidade de pagar qualquer preço (como a ida ao Colégio Eleitoral e a aliança de setores da oposição com setores do PDS) para impedir Maluf de governar o país?

A luz dos fatos

No plano dos fatos, o que torna Maluf um político temível parece ser seu estilo de ação, suas práticas que parecem obedecer regras e normas alheias à política propriamente dita. Costuma-se falar em sua ambição desmedida, em sua insaciável sede de poder, no manejo da corrupção como instrumento preferencial de ação. Mas seriam aqueles que têm governado o país nos últimos vinte anos tão diferentes dele? Menos arrogantes, menos ambiciosos, menos corruptos? A diferença entre eles seria a mesma que existe entre os estadistas e o arrivista? Seria apenas uma questão de boas maneiras? Afinal, o general Newton Cruz não é exatamente um campeão em etiqueta...

O que parece tornar Maluf tão assustador é que tenha conseguido destruir o partido do governo, e, mais ainda, porque ninguém do regime, ou do Sistema, ou do nome que se queira dar, conseguiu interceptar sua candidatura, tida como indesejável por gregos e troianos. A pergunta que fica é: por quê? De que forças dispõe o candidato para que os demais grupos da ditadura sejam impotentes face à sua vontade?

Talvez uma pista para encaminhar uma resposta apareça, se avaliarmos o sentido dos ataques pessoais desfechados pelo malufismo contra Antônio Ermírio de Morais e os que prepara contra José Sarney. O estilo empregado é o da intimidação, mesclado de difamação, calúnia e verdades.

Quantos dossiês "confidenciais" possui Maluf? Que uso pode fazer deles? Que uso já fez? Assim, o que o torna assustador é o fato de que, num país onde não existem instituições políticas no sentido pleno do termo, mas simples agrupamentos periódicos de interesses privados disfarçados em públicos, o poderio da intimidação pessoal é ilimitado porque não há como regulá-lo nem como detê-lo. O malufismo é um estilo de mando fundado na dominação pessoal.

Também no plano dos fatos, Maluf surge como perigoso, quer vença quer perca no Colégio Eleitoral. Se vitorioso, tomará o poder contra a vontade da maioria da população. Com a gravidade da crise sócio-econômica, iniciará seu governo temperando repressão e sedução para conter a avalanche de manifestações hostis. Polícia, forças para militares, Lei de Segurança Nacional e peleguismo farão reinar a paz dos cemitérios, após as primeiras explosões de greves e de movimentos populares. Se derrotado, usará seus "arquivos confidenciais"' e sua força paramilitar como poderosos elementos de desestabilização política, ainda mais se o governo tiver sido fruto do Colégio Eleitoral.

Os fatos indicam por que o malufismo é assustador, forma limite da ditadura, quando esta passa da força ao gangsterismo. Todavia, não nos explicam de onde o candidato retira forças e sua aparente invulnerabilidade, seu inabalável triunfalismo.

Com a figura de Maluf, um novo estilo de autoritarismo se anuncia e seus traços podem ser entrevistos numa carta enviada por um leitor ao jornal Folha de S. Paulo (22.7. 84). Defensor de Maluf, o missivista afirma que este "não precisa de muletas militares" para governar, como outros candidatos que "vivem pendurados em generais". "Tanto assim que se elegeu para o governo do Estado de São Paulo contra a vontade do grupo militar e do Sistema. Governou sem sobressaltos apesar da campanha movida contra ele por "um jornalzão" e das greves do ABC. Teve como secretário da Segurança um civil que se manteve no cargo por quatro anos. É jovem, corajoso, honesto e trabalhador. Homem de muito fôlego."

Se traduzíssemos essa carta para o real, constataríamos, em primeiro lugar, que ela é tecida pela coerência dos silêncios. O governo Maluf é caracterizado como civil, sem que palavra alguma seja dita sobre a natureza paramilitar desse civilismo. Nada é dito sobre o comportamento do candidato durante a convenção estadual de seu partido para obter a indicação para o governo do Estado. Nenhuma palavra sobre a repressão policial e o uso da Lei de Segurança Nacional sobre os grevistas do ABC. No elogio da estabilidade da Secretaria da Segurança Pública, nenhuma palavra sobre o fortalecimento da ROTA e de esquadrões no estilo do Esquadrão da Morte; nenhuma palavra sobre as torturas de presos comuns em presídios, cadeias e casas de detenção, sobre a corrupção policial. A produção da imagem por omissão de fatos se realiza de tal modo que a noção de eficácia oculte a de violência.

Em segundo lugar, notaríamos que a noção de eficiência permite a construção da pessoa do candidato, através de predicados físicos e psíquicos: juventude, coragem, trabalho, persistência. Ora, essa imagem do corpo físico de Maluf é apresentada como conjunto de atributos políticos, a imagem física e psíquica passando ao "corpo político" de Maluf.

Despolitização da imagem

Esse estranho fenômeno ideológico não é novo. Esteve presente na construção dos chefes totalitários do século XX e dos ditadores de todas as épocas. Sob ele, realiza-se uma operação peculiar de despolitização, na medida em que desloca o problema propriamente político, isto é, a discussão sobre as qualidades das instituições e a natureza do poder, para a das qualidades ou virtudes pessoais do governante, fazendo com que a política passe a depender delas.

Essa privatização despolitizadora se exprime no ideal do Dictador, no Império Romano. Exprime-se também no ideal do Príncipe Virtuoso, no cristianismo medieval, cuja demolição foi efetuada por Maquiavel para que a política moderna pudesse nascer. Cesarismo, bonapartismo, totalitarismo — as figuras modernas do Bom Governo possuem antigas raízes.

Vale a pena, portanto, acompanharmos o caminho de volta que a ditadura brasileira percorreu permitindo o advento de Paulo Maluf com a cristalização do que a teoria política conhecia com o nome de corpo político do rei.

Entre as teorias políticas que conseguiram prevalecer na Idade Média, duas foram as mais importantes sobretudo porque determinaram teorias políticas posteriores ou modernas: a teoria do poder como favor (gratia) e a do corpo político do rei.

Na teoria do favor, alguns homens recebem o poder por misteriosa graça divina — "por mim reinam os reis e os príncipes governam", lê-se na Bíblia. Houve lutas para determinar sobre quem recaía o primeiro favor. Prevaleceu a teoria papal e com ela a idéia de que, pelo cerimonial da unção e da coroação, o papa doa, por favor, poder ao rei. Ambos são imperadores. Isto significa, em primeiro lugar, que não dividem o poder com ninguém; em segundo lugar, que a lei nasce exclusivamente de suas vontades; e, em terceiro lugar, que não podem ser julgados por ninguém, porque ninguém, senão Deus, os investiu no poder. Estão fora e acima da lei e comunidade. São representantes de Deus, cuja vontade imitam e por ela governam.

A teoria do corpo político do rei pretende conferir autonomia ao poder do rei face ao do papa, e foi minuciosamente estudada pelo historiador Kantorowicz no livro Os Dois Corpos do Rei. O rei tem, como Cristo, duas naturezas ou dois corpos: um, humano, sujeito às doenças,e à morte, finito; outro, imortal, incorruptível, eterno, místico: seu corpo político. O rei representa Cristo (primeiro) e Deus (depois) na medida em que seu corpo político imita a divindade. Como corpo político, o rei nunca morre — donde o refrão francês: "O rei está morto, viva o rei" —, pois, enquanto o corpo físico do governante é levado à tumba, seu corpo político foi integralmente transferido ao de seu herdeiro, imortalizado.

Tudo o que constitui o corpo político do rei é imortal como ele e faz parte dele, exatamente como os órgãos e os membros constituem seu corpo físico. São órgãos do corpo político: a lei (da qual ele é dito ser o Pai), a justiça (da qual ele é dito ser o Filho) e o fisco (chamado de sacratissimus fiscus). São seus membros: o parlamento, a magistratura, o exército e o povo. São signos de sua imortalidade os regalia: coroa, cetro, espada, estandarte e a dinastia.

Paulo Maluf, cujas características fascistas têm sido frisadas por seus adversários, traz consigo, como toda figura da política nazi-fascista, os anseios arcaicos de reencanar o corpo político do rei. Isto não se deve à sua personalidade, mas ao conjunto de condições favoráveis que a ditadura lhe ofereceu, pois a marca da ditadura foi a destruição de todos os referenciais políticos do conflito, da luta, da legalidade, da legitimidade, da diferença entre o público e o privado. Nisto, aliás, foi sempre favorecida pelo autoritarismo que define a sociedade brasileira como um todo e desde sempre.

A reencarnação malufista

A reencarnação pode ser acompanhada tanto no plano dos símbolos mobilizados quanto no das ações defendidas pelo candidato. No plano dos símbolos — a imagem do papa pendurada na parede do escritório "eleitoral" evidencia não só a aspiração do candidato de governar em nome de Deus, pois, não sendo eleito pela população, assegura o favor divino, mas também que, como corpo político místico, ele encontra apenas no papa o seu igual ou seu par. Além disso, objeto de favor, pai da lei e filho da justiça, pensa-se como Imperator, isto é, como não podendo ser julgado por ninguém, donde seu régio desprezo pela opinião pública.

A imagem da "bolsa da mãe" demarca o espaço de sua atividade como espaço doméstico. Sobretudo, porém, se alia à idéia de corrupção, não apenas no sentido da compra de votos e venda de cargos (o que é natural, uma vez que o cargo é órgão do seu corpo político), mas no sentido de uso pessoal do fisco (o que também é natural, urna vez que o fisco é órgão de seu corpo político). Vê-se por que, a partir da figura do corpo político do rei, o deputado zomba dos que o chamam de corrupto.

Ainda no plano simbólico, a imagem do "carro da vitória", além das características marciais nazi-fascistas e das características fetichistas (tanto no sentido religioso do amuleto, quanto no sentido psicanalítico da "coisificação" sexual), possui também as características dos regalia (coroa, cetro, espada e estandarte) do corpo místico do rei.

No plano das ações defendidas pelo candidato em primeiro lugar, a defesa do Colégio Eleitoral, que poderia parecer um contra-senso na perspectiva do corpo político do rei, é sua realização mais perfeita, pois corpo régio como realidade integral significa: "o rei no parlamento".

Além disso, o elogio da agressividade, do trabalho ininterrupto e das grandes realizações não é apenas o elogio dos valores mais caros à classe média ressentida e temerosa, mas é sobretudo a construção de um corpo político exemplar, objeto de imitação. Não só seu corpo político deve penetrar em todos os detalhes do cotidiano social e psíquico, mas o social no seu todo deve ser a realização do corpo uno do governante. Oferecendo-se como exemplar, Maluf revela a presença inconfundível da teoria do corpo político do rei, isto é, a política como imitação e espetáculo.

Enfim, a busca da popularidade através da elaboração de uma imagem que circule pelos meios de comunicação de massa não é apenas o uso da "modernidade eletrônica" nem dos recursos da chamada indústria política. Mais do que esses aspectos, a busca decorre da concepção imitativa e espetacular da política, da criação de mecanismos de identificação entre o detentor do poder e os governados, para que permaneçam fascinados por sua imagem e seduzidos pelo seu desempenho.

Maquiavel recomendava ao Príncipe que fugisse do ideal teológico que lhe impunha ser amado pelos súditos para ser por eles imitado e, ao invés disso, procurasse simplesmente não ser odiado por eles, de sorte que o risco da identificação tirânica não existisse. Contrariamente, Maluf retorna à teologia do virtuoso rei amado e à sedução do exemplo. Todavia, ao fazê-lo, corre um risco previsto por Maquiavel. Este recomendava ao Príncipe que afivelasse uma máscara ao rosto, mas que, se a máscara caísse, o rosto encontrado fosse a própria máscara. O Príncipe não precisa dizer a verdade; é necessário, apenas, que não minta. É o risco da mentira, da distância entre o rosto e a máscara, que Maluf está correndo em seu espetáculo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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