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Em cena, o novo eleitor americano

Em cena, o novo eleitor americano

Paulo José Krischke

Cientista político, professor da PUC-SP e diretor do CEDEC

A pré-candidatura de Jesse Jackson à presidência dos Estados Unidos "balançou o coreto" dos liberais tipo Kennedy, que normalmente controlam o Partido Democrata. Eles não têm poupado acusações ao que consideram uma "divisão do voto negro", que de início retirou apoio dos pré-candidatos democratas (Walter Móndale e Gary Hart).

Mas o problema é outro: o fato inteiramente novo é que nenhum dos dois pré-candidatos ofereciam atrativo (e uma liderança reconhecida, como antes os Kennedy e até Carter) aos eleitores negros e outras minorias raciais e culturais do país. E as chances eleitorais de Mondale, após as negociações da plataforma partidária com os outros dois pré-candidatos, são praticamente nulas, pois vão diluir-se num programa tradicional, com um líder sem carisma nem apelo popular, o que havia de novidade na postulação dos outros dois.

Isto significa, em poucas palavras, que Ronald Reagan está praticamente eleito, desde agora, para um novo período presidencial, nas eleições de novembro de 1984. É certo, por outro lado, que Jackson não poderia ter sequer sonhado em eleger-se presidente dos Estados Unidos nesta campanha. Mas o seu lançamento — longe de representar simplesmente a divisão do voto negro, como reclamam os liberais — abriu um processo de negociação e participação das minorias raciais, invertendo uma tendência até então francamente declinante (apenas 50% dos negros e 30% dos hispânicos votaram em 1980). A pré-candidatura Jackson recuperou um senso de dignidade e esperança para as minorias, que antes fora supultado pelas frustrações do governo Carter e pela política desfechada de Reagan contra os pobres (a renda familiar dos negros é pouco mais que a metade da média nacional, e os índices de desemprego e subemprego são mais que o dobro, entre negros e hispânicos).

O fato é que Jackson introduziu toda uma nova geração de eleitores no Partido Democrata. As estimativas totais são de que 3 milhões de novos eleitores negros adquiririam títulos eleitorais durante a campanha; e Jackson recebeu o apoio de 33% do eleitorado hispânico (antes tradicionalmente conservador) nas primárias democratas de Nova Iorque, por exemplo. Para entender o fenômeno Jackson é necessário escutar a sua mensagem — que tem assustado especialmente os liberais e os fisiológicos da máquina partidária. Ele costuma dizer nas suas audiências: "Eu sei negociar com as superpotências, pois tenho negociado com uma delas durante toda a minha vida. Temos vivido a experiência do Terceiro Mundo aqui mesmo na América. E encontramos resistência desde o começo: Martin Luther King foi acusado de comunista, e não era verdade".

Numa entrevista à revista New Republic, ligada aos setores centrais do Partido Democrata, Jackson lembrou: "Não esqueçamos que quando nos rebelamos contra os ingleses éramos oprimidos, mas não éramos contra a opressão. Começamos com o general George Washington, que era senhor de escravos. Só os proprietários votavam. Os negros e os hispânicos não podiam votar. Nós nos transformamos durante 200 anos numa democracia, mas mesmo agora a questão central da minha campanha é a defesa do direito do voto".

Os jornalistas liberais estão perplexos e perguntam — pergunta bem pouco ingênua — se a visão de Jackson "resulta de ignorância, arrogância, ou ambas as coisas". Mas o fato é que Jackson afirma a antiga crença democrática de não haver disputa no mundo que não se possa resolver pacificamente, e declara: "Eu negociarei com todos". Acrescenta ainda não acreditar que os problemas da América Central, por exemplo, decorrem da influência soviética ou do comunismo: "Se o nosso governo estivesse em contato direto com a Nicarágua, poderíamos influenciá-la num sentido democrático. Em lugar de dizer que ela está sendo influenciada pelos soviéticos ou por Marx, nós é que deveríamos influenciá-la. Nós estamos mais perto".

E arremata: "O que acontece sempre é que resistimos àqueles que lutam pela sua autodeterminação. Somoza estava do lado errado da História e os Sandinistas estão do lado certo, caminhando para uma forma democrática de governo através de eleições. Porém, quando apoiamos Somoza e, agora, os somozistas, deixamos de reconhecer os Sandinistas e os forçamos a depender dos nossos adversários".

Esta perspectiva progressista, negociadora e antielitista da democracia é o que tem valido a Jackson o apoio dos pobres, negros e minorias da sociedade americana. E, por outro lado, tem suscitado o temor; o despeito e o rancor, tanto de conservadores tipo Reagan, como dos liberais, tipo Kennedy, que sempre comandaram a seu bel-prazer o Partido Democrata. Estes, valendo-se, por um lado, do fracionamento e desarticulação ideológica das minorias e, por outro lado, dos recursos do welfare state em seus períodos de governo, geraram uma situação de dependência clientelística da sociedade — da qual o atrelamento partidário dos sindicatos é o exemplo mais notório.

Esta é a situação tradicional que foi profundamente questionada pela campanha de Jackson. Um primeiro ponto para explicar o seu impacto é que ele questiona a tradição partidária clientelista a partir de valores nacionais e religiosos ainda mais enraizados na tradição e, portanto, mais legítimos, da cultura norte-americana. Jackson é pastor protestante, discípulo de Martin Luther King. A sua base natural de apoio, fonte principal de votos e finanças, são as 75 000 igrejas negras locais dos Estados Unidos, com cerca de 16 milhões de membros. A religiosidade dos negros americanos sempre incluiu um elemento de resistência e identidade cultural. Serviu como "sementeira", onde os escravos se comunicavam, e o "meio principal para induzir humildade e inteireza em um sistema desumano" (o escravismo).

Tudo começou com a sementeira

Os atuais críticos liberais de Jackson tendem a opô-lo à geração anterior de lutadores pelos direitos civis, como Martin Luther King, pelo fato de que Jackson não recusa aliar-se com os (radicais) muçulmanos negros e com os (conservadores) católicos hispânicos. Os críticos esquecem que ambas as gerações de líderes negros partiram da mesma "sementeira" comum, da cultura de resistência religiosa tradicional, para estabelecer alianças com novas forças democráticas, dispostas à transformação do seu tempo. Não serão os liberais tipo Kennedy os que já agora não sintonizam com as exigências do tempo e com os setores que lutam pela democracia?

Um segundo ponto de apoio para explicar o ascenso meteórico de Jackson é, justamente, a sua atitude pluralista, participante, dialogante e negociadora, que retira dos liberais o monopólio da democracia, para compartilhá-la entre os pobres e as minorias — seja qual for sua raça, cultura, religião ou ideologia. É certo que a sua proposta, de uma "coalizão entre o arco-íris dos rejeitados", é ainda um sonho aceito apenas pela comunidade negra e uma parcela dos hispânicos e militantes brancos. Mas a sua simples existência, como antecipação de um futuro possível, já é em si mesma uma saída do "gueto" e da fragmentação competitiva, em que as minorias sempre se deixaram isolar e fragmentar no passado.

E uma razão para o seu impacto, como proposta, é que ela não surgiu do próprio Jackson, mas foi recolhida por sua campanha de uma experiência prévia, justamente formada ao redor da extensão do direito do voto às minorias. A partir da larga abstenção verificada nas eleições de 1978 e 1980, uma coalização foi formada por setores sindicais, organizações judaicas e comunidades negras, hispânicas, indígenas e grupos femininos, buscando efetivar a aplicação do Voting Rights Act (Lei do Direito do Voto) entre os setores pobres e desprovidos de poder e representação.

Tal precedente serviu para despertar setores dessas comunidades para a prioridade deste tema e para que Jackson centrasse nele a sua campanha. O resultado é que muitas dessas agências e comunidades que trabalham pelos direitos das minorias vieram somar-se ativamente à campanha de Jackson (diga-se que uma exceção importante foram os setores judaicos, que se afastaram com a adesão dos muçulmanos negros).

Ainda que muitas dessas agências careçam de recursos próprios, possuem bastante penetração em suas respectivas bases sociais, e podem proporcionar quadros militantes e organizadores — especialmente valiosos numa campanha como a de Jackson, sem apoio de "máquina" partidária. Um exemplo do que pode fazer um grupo desses foi dado pela ACORN (Associação de Organizações Comunitárias pela Reforma Já) — rede nacional de associações de moradores em bairros pobres, fundada por Saul Alisnky nos anos 60. Hoje ela inclui cerca de 60 mil famílias em 27 Estados. Dez mil dos seus membros decidiram dar apoio ativo à campanha de Jackson, e enviaram vários ônibus de organizadores voluntários para participar da propaganda nas prévias dos vários Estados.

É à luz dessas bases bastante sólidas de apoio social que podemos entender a capacidade de pressão que agora exibe Jackson, na discussão da plataforma democrata. Ele não chegou à convenção do partido falando apenas em nome próprio, ou de um grupo fragmentário e isolado das minorias, mas postulando um programa adotado por um setor expressivo e crescentemente organizado do eleitorado. Para exemplificar, este programa mínimo inclui a modificação e a fiscalização das práticas eleitorais, principalmente nos estados do Sul — onde a tradição racista e um casuísmo sistematicamente desenvolvido tendem a excluir a participação dos negros e das minorias. Mas inclui também pontos gerais muito claros de política governamental, como o reconhecimento de um Estado Palestino independente no Oriente Médio; a proibição de investimentos dos Estados Unidos na África do Sul; a redução de 20% nos gastos de defesa; e investimentos estatais na criação de empregos e serviços públicos.

Sem dúvida, por trás destes pontos programáticos radica, também, uma capacidade de negociação que visa a influir mais indireta do que diretamente na política federal. Pois trata-se de uma estratégia de longo prazo, buscando uma implantação local e regional, através da participação política na administração, no Judiciário e no Legislativo, que canalize ativamente a presença das bases sociais que sustentam este programa. Assim, o teste definitivo do impacto de Jackson nesta campanha se dará além das eleições de 1984, na capacidade que tenha o movimento, que ele logrou desfechar agora, para eleger cada vez mais representantes de sua linha, a todos os postos de administração, das câmaras municipais às magistraturas estaduais e ao Congresso Nacional.

Como constatava recentemente, com surpresa, um analista: "Há agora candidatos negros a prefeito e à presidência da Câmara Municipal em Selma, Alabama, onde há menos de vinte anos os negros eram impunemente espancados em praça pública".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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