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Arrigo e Ritchie: a moeda e suas faces

Arrigo e Ritchie: a moeda e suas faces

Paulo Puterman

Sociólogo e crítico de música

Cara tia,

Justo eu, que passei a vida inteira lutando para ser músico e pesquisador de música, fui acabar como jornalista! Pois é, quem diria que nossas conversas intermináveis, sobre música, músicos e sobre os que tentaram pensar a música, acabariam por frutificar? Mas acho que "eles" não agüentam minha capacidade crítica por muito tempo. Tudo é questão de espaço.

Na minha nova atividade uma coisa tem me deixado encafifado. Lembra-se daqueles livros que a gente lia junto e discutia muito? Falavam da necessidade de uma nova música, da chegada de um novo tempo e da burrice das massas.

Schoenberg, Webern e Adorno — lembra-se? — foram escritores e músicos iniciadores de uma nova tradição tanto no que diz respeito à música como no que se refere a escritos sobre música. Lembro que a senhora falou que os havia conhecido, mesmo antes de chegar ao Brasil. Muitas das coisas que essas pessoas discutiam e faziam na Europa do começo do século ainda têm seus seguidores no Brasil dos dias de hoje. Cristo também.

Na verdade, pouco do que escreveram esses homens influenciou a música industrial no Brasil de hoje, e já faz tanto tempo que a gente não se vê...

Desde o momento que a indústria fonográfica (a que fabrica discos) se consolidou, no Brasil e no mundo, como próspero negócio, tudo que se refere à música mudou muito. Existe, desde então, toda uma movimentação em torno da descoberta e estabelecimento de novos estilos, compositores e composições, no sentido de estimular o consumo e a produção musical.

É mais ou menos como fazem as fábricas de automóveis hoje em dia quando lançam novíssimos modelos que são absolutamente idênticos aos do ano passado, com pequenas alterações. Na música industrial também acontece muito isso. Os produtos aparecem como novos quando na verdade são sempre iguais entre si.

Ao nível da música de massa, por exemplo, mambos, boleros e congas gravados por grandes orquestras são muito parecidos entre si quando originalmente apresentavam características bem diferenciadas. É comum orquestras americanas tocando sambas com percussão e estrutura rítmica peculiares aos ritmos latinos que estiveram em evidência durante a década de 40, o que descaracteriza a canção como samba.

Moral da estória: no mundo da indústria o que importa não é o respeito às origens e identidades, mas sim o que os diferentes rótulos podem representar em termos econômicos. Não existe em nenhuma gravadora um departamento cultural.

Lembra quando chegou em São Luís a cópia daquele livro chamado A música hoje, do escritor francês Pierre Boulez? A gente discutia toda aquela teoria debaixo das mangueiras enquanto dona Maria preparava pés-de-moleque, canjiquinhas, pamonhas. Muito bucólico!

Aquelas discussões foram muito boas pra todos nós. Era a única possibilidade objetiva de se discernir boa de péssima música, distinguir legítima de falsa. Certezas! Foi muito interessante aprender como os compositores europeus deixaram de lado toda aquela tradição romântica e partiram em busca da conquista de um novo mundo dos sons. Depois de Adorno, a única coisa que me abalou realmente foi Elvis Presley cantando "Hound Dog". Eu sei que a senhora nunca entendeu direito esta minha paixão. Até então, eu nunca tinha gostado muito de cantores. Nat King Cole, Frank Sinatra, etc. me cheiravam muito a xaropada. Elvis não.

Na voz de Elvis Presley eu sentia toda a ousadia de um Schoenberg. A senhora sabe que o rock e seus cantores começaram em pequenas gravadoras independentes? Pois é, artistas originais. Elvis, Little Richards, Chuck Berry. Depois o rock foi engolido e virou tudo: amor, política, paz e consumo. Antes não, o assunto do rock and roll era o próprio rock and roll.

Acho que não aconteceu mais nada depois do rock. Foi uma coisa tão forte que, hoje, trinta anos depois, a indústria continua diluindo seus elementos por toda a gama do espectro cultural.

Grana na cabeça e no coração

Sabe, mesmo trabalhando como crítico do jornal eu tenho que continuar dando aulas de violão, e a coisa é geral: todo indivíduo que se inicia num instrumento e busca seguir uma carreira profissional quer inovar, como Arrigo Barnabé, ou fazer sucesso, como Ritchie. Grana na cabeça e no coração. Estranhamente, as aulas de violão, tanto para um tipo como para outro, são idênticas.

Não vejo muita diferença entre Arrigo e Ritchie e atualmente acho que não queria estar na pele nem de um nem de outro. Ritchie trabalha em condições muito mais favoráveis principalmente porque fala bem o inglês. Não. Na verdade não sei se é bem isto que importa.

O som do Ritchie é mais adequado à produção radiofônica do que o som do Arrigo. Já ouvi algumas coisas do Arrigo no rádio e muito do que sua música tem de intenção, a nível de instrumentação e arranjo, não fica muito claro nas FM. Mas isto pode ser também porque a gente não está acostumado a ouvir esse tipo de som no rádio. No começo, ninguém estava acostumado a ouvir rock no rádio, também.

Muito do que faz o Arrigo só aparece quando reproduzido em excelentes aparelhagens. Ritchie é mais direto com seus timbres sintetizados, harmonia e melodias simplificadas. Eu continuo ouvindo meus discos na minha velha aparelhagem. O baixo não aparece muito e a percussão fica misturada. São as minhas condições. Mas eu acho que disco também foi feito para ser ouvido em aparelhagens ruins. O som do Ritchie me diz mais ao coração e soa melhor na minha vitrola.

Arrigo me faz pensar na infância e em todos aqueles momentos em que pensei me tornar um superstar. Mas sempre me faltou o saco para cortar os cabelos e botar tênis de cores diferentes. A superfície me cansa.

Exatamente por causa disto é que eu gosto tanto do Ritchie como do Arrigo. Os dois me trazem velhas emoções: rock dos anos 50 e vanguarda do começo do século. Um faz música de consumo com sumo e o outro sem sumo. Quem é quem? Me perdi nestas vãs guardas deste tempo todo, e o que realmente tem importância neste momento é o "bolo de fubá, o lelê e o mocotó".

É meio triste concluir assim, mas a senhora sabe que às vezes me dá uma saudade daqueles esperançosos dias de Getúlio Vargas?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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