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Bóias-frias, desafio para o sindicato rural?

Bóias-frias, desafio para o sindicato rural?

Maria Conceição D'Incao

Socióloga e membro do Conselho Deliberativo do CEDEC

A intensa mobilização dos trabalhadores assalariados temporários da agricultura paulista, também conhecidos como bóias-frias, iniciada no dia 15 de maio deste ano, significa um marco importante na história do movimento social no campo. Um desafio, inclusive, para o movimento sindical rural, que tem se demorado a adequar sua estrutura e sua prática política às condições específicas do trabalho dos bóias-frias.

Para entender a mudança qualitativa que as recentes mobilizações dos bóias-frias paulistas representam — e, provavelmente, outras que vêm ocorrendo em Minas Gerais, Goiás e Paraná —, há que considerar o fato de se tratarem de bóias-frias na sua forma mais desenvolvida de manifestação. Isso porque os bóias-frias, embora empíricamente sejam identificados como trabalhadores assalariados temporários da agricultura, se manifestam, historicamente, de formas bastante diferenciadas. Formas que vão desde o pequeno produtor insuficiente, que se assalaria sazonalmente como meio de ir equilibrando a sua renda e enfrentando o risco, sempre presente, de sua expropriação da terra, até o trabalhador já totalmente expropriado dos meios de produção e que, uma vez também excluído do mercado de trabalho urbano, não encontra outra alternativa de sobrevivência, senão assalariar-se nos períodos de safra, junto à empresa agrícola. Um imenso contingente de trabalhadores errantes, à procura de trabalho e que, ao nível de uma análise mais aprofundada, só se constituem em totalidade por estarem vivenciando um mesmo processo histórico-social: o processo de proletarização do homem do campo que, no Brasil, vem se desenvolvendo predominantemente através da substituição dos trabalhadores residentes — colonos, parceiros, rendeiros — pelos trabalhadores assalariados temporários.

Em busca da identidade

Neste processo, a auto-identificação como categoria específica de trabalhadores, precondição para a organização das classes trabalhadoras enquanto tais, torna-se difícil. Defronta-se, ao nivel mais concreto, com a intensa mobilidade a que essa população vem sendo submetida, na busca das possibilidades de trabalho que lhe são oferecidas. Ao nível subjetivo, com as fantasias da volta à terra ou de um trabalho na cidade que, freqüentemente, alimentam sua esperança de uma vida mais estável. Só à medida que a agricultura vai se desenvolvendo — no Brasil esse desenvolvimento acentua a sazonalidade do trabalho —, definindo a identidade econômica das diferentes regiões e, paralelamente, os próprios trabalhadores vão esgotando suas fantasias e constatando a impossibilidade de encontrar outro trabalho, é que vão surgindo as condições para a referida identificação.

O ponto final das fantasias

Ora, na região de Ribeirão Preto — a de agricultura mais desenvolvida do país — estas condições estão dadas. Região canavieira e, num segundo plano, produtora de laranja, ela passa a oferecer uma certa regularidade de emprego. Embora o trabalho continue sendo temporário, todos os anos a região absorve grandes contingentes de trabalhadores para o corte da cana e a colheita da laranja. Ao mesmo tempo, por estar localizada no Estado mais desenvolvido do país, ela é, muitas vezes, o ponto final de um longo percurso realizado por esses trabalhadores na direção de suas fantasias, que, afinal, acabam não se concretizando. Abriga trabalhadores vindos de vários outros estados e de diferentes regiões de São Paulo. Trabalhadores que já foram parceiros ou arrendatários e se viram substituídos pelo trator ou pela semeadeira. Trabalhadores que já freqüentaram regiões de frente de expansão e não conseguiram terra. Trabalhadores que já passaram pelos grandes centros urbanos e não encontraram emprego... Enfim, trabalhadores que, além de totalmente expropriados da terra, desenraizados e sem tradição, tendem a se perceber como "trabalhadores sem profissão" e, conseqüentemente, obrigados a aceitar esse trabalho.

Nestes termos, fica fácil entender os bóias-frias dessa região como expressão mais desenvolvida do referido processo de proletarização do homem do campo. E daí a perceber o significado de marco histórico que suas mobilizações têm apresentado, é bastante simples.

Embora vivenciando o processo de identificação já esboçado, e estando, já há algum tempo, voltados para a avaliação de suas próprias condições de trabalho — seus discursos são bastante críticos e expressam demandas bastante precisas —, esses trabalhadores têm-se defrontado com muitas dificuldades no tocante a sua própria organização. A primeira delas deve-se à natureza intermitente e itinerante de seu trabalho. Trabalham como cortadores de cana ou colhedores de laranja, apenas durante os meses de maio a novembro e, nas entressafras, dispersam-se à procura de pequenos bicos ou de outras tarefas agrícolas. Além disso, durante o período do trabalho que os une ou identifica, deslocam-se de um lugar para outro, dependendo das prioridades das colheitas. Isso dificulta a definição de espaços que possam permitir o debate e encaminhamento mais sistemático e coletivo de suas necessidades e reivindicações.

Aparecem novas dificuldades

A rigor, o espaço institucionalizado para atender a essas necessidades é o sindicato. Mas aí se encontra a segunda ordem de dificuldades com a qual os bóias-frias vêm se defrontando. O movimento sindical rural, de um lado, não está preparado para enfrentar as condições específicas de seu trabalho e, de outro, não dispõe de um projeto político que incorpore, de forma orgânica, as suas demandas. No primeiro caso é preciso destacar a questão da base territorial dos sindicatos e a figura do delegado sindical que não vêm se adequando às referidas condições de trabalho. A base territorial do sindicato rural é fixada pelos limites geográficos dos municípios e pode se estender com a incorporação de outros municípios, através de delegacias sindicais. Ora, esse critério não corresponde aos critérios de organização do trabalho temporário. Freqüentemente acontece de o trabalhador morar num município e trabalhar em outros, sem a necessária correspondência das bases territoriais dos sindicatos. E a dificuldade para o trabalhador é óbvia: onde encaminhar suas demandas? Como definir seu vínculo com o sindicato? Estas questões e outras que dela decorrem estão a exigir uma revisão estrutural por parte do sindicalismo rural. As lideranças mais atuantes da região de Ribeirão Preto têm procurado resolver o problema através da maior extensão da base territorial dos sindicatos, pela criação de delegacias sindicais. Mas essa solução, além de não resolver totalmente os problemas mencionados, ainda se defronta com outro: ao mesmo tempo que viabiliza a definição do vínculo sindical para um maior número de trabalhadores, centraliza excessivamente as decisões e, conseqüentemente, dificulta a maior participação das bases. A alegação freqüentemente utilizada para este último problema é a da qualidade dos líderes sindicais. E, realmente, na região existem alguns líderes sindicais que vêm se destacando pela qualidade de seus trabalhados de base e que podem ser responsabilizados pela prontidão com que o movimento sindical rural vem respondendo às recentes mobilizações dos trabalhadores. Mas discute-se aqui a estrutura do sindicalismo rural e, tal como ela está definida, o surgimento de lideranças sindicais representativas das bases fica limitado pela própria dificuldade de participação.

É evidente que o risco da excessiva centralização ficaria minimizado com a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, garantindo uma relação mais orgânica entre os trabalhadores e as delegacias sindicais e, em decorrência, entre estas e os sindicatos. Mas esta questão passa, necessariamente, pela figura do delegado sindical, que também não está resolvida entre os bóias-frias paulistas. Nas greves dos canavieiros de Pernambuco, ocorridas em 1979 e 1981 e mobilizando, respectivamente, 100 e 300 mil trabalhadores, o papel do delegado sindical como mediador entre o movimento sindical e o movimento dos trabalhadores foi da maior importância. Sobretudo na garantia da participação dos trabalhadores assalariados temporários, ali conhecidos como clandestinos. Mas, em Pernambuco, o delegado sindical é um trabalhador morador e tem sua base definida pelos limites do engenho. Ora, em São Paulo, inexistem trabalhadores moradores e é, portanto, necessário encontrar uma forma nova para a realização do delegado sindical. Nas condições de trabalho predominantes, tudo indica que a unidade a partir da qual o delegado sindical deve ser pensado seria a turma, única referência constante dos trabalhadores. Mas aí deve-se considerar o problema da atuação dos gatos (intermediários dos patrões na contratação dos trabalhadores), além dos trabalhadores que não possuem turmas fixas, dos que ficam alojados nas próprias usinas — trabalhadores que vêm anualmente fazer a safra — e dos que são vinculados diretamente às usinas, sem a mediação do gato e, portanto, sujeitos a formas de organização de trabalhos diferentes.

Agrava-se a questão social

Essa demora do movimento sindical rural, na adequação de sua estrutura às condições específicas do trabalho dos bóias-frias, explica-se pelo fato de a CONTAG só muito recentemente ter-se voltado para a questão dos bóias-frias. Tendo surgido — primeiros anos da década de 60 — num momento em que a questão agrária era debatida nos limites da ideologia industrial-desenvolvimentista dos anos 50, o movimento sindical rural, em seu projeto político, deu mais atenção à questão da reforma agrária considerada como precondição do próprio desenvolvimento industrial e, conseqüentemente, viável, já que contava com a possível aliança da burguesia industrial.

Indispensável detalhar o fato de que essa aliança não se fez e que o processo de industrialização se desenvolveu sem a reforma agrária e agravando a questão social no campo. Mas é interessante lembrar que, enquanto essas mudanças ocorriam, agudizando tanto a luta pela terra como as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores rurais que se proletarizavam, a ditadura militar impedia uma atuação mais eficiente junto às bases das diferentes classes trabalhadoras rurais e, conseqüentemente, a necessária revisão do projeto político da CONTAG.

Só mais recentemente, a partir do 3? Congresso Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (1976) e uma vez iniciada a abertura política, o movimento sindical rural passou a privilegiar, como forma de atuação, o trabalho direto com as bases. Em decorrência, passou a promover encontros de trabalhadores por categorias. As diferentes categorias enquadradas nos sindicatos rurais são: pequenos produtores, posseiros, arrendatários, assalariados rurais. E, pela primeira vez, os bóias-frias começaram a ser contemplados com um tratamento especial. Como medidas principais dessa nova forma de atuação junto aos bóias-frias, encontram-se o contrato coletivo e o delegado sindical, ambos visando a enfrentar os problemas derivados do caráter itinerante de seu trabalho. Aquele, pela via da fixação de cláusulas contratuais que atendam à especificidade de suas relações de trabalho. Este, visando à organização nos locais de trabalho e a sua maior participação no sindicato.

Novos fatos, velhos entraves

É de se supor que essa abertura da CONTAG para as bases acarrete mudanças substantivas em seu projeto político. Mas cabe agora considerar a relativa ineficiência prática das medidas definidas para os bóias-frias. Já foi lembrado que a proposta do delegado sindical ainda não encontrou sua via adequada de realização. E, por outro lado, o contrato coletivo vem se reduzindo, no Estado de São Paulo, ao dissídio coletivo, sem a participação organizada dos trabalhadores e com o mero estabelecimento das cláusulas bastante genéricas já previstas em lei e, portanto, possíveis de serem facilmente aprovadas pelo Tribunal Regional do Trabalho. Sem contar que sequer essas cláusulas — 13? salário, férias, licença-gestante, etc. — têm sido cumpridas e que as próprias datas dos dissídios — março e setembro — são inadequadas às condições de trabalho dos bóias-frias da região que se está considerando, uma vez que a safra começa em maio e acaba em novembro, data em que a tramitação do 2? dissídio costuma se completar.

A hipótese que se levanta é de que os velhos entraves do projeto político da CONTAG continuam dificultando o desenvolvimento do sindicalismo rural junto aos bóias-frias. Mas o fato a ressaltar é que a esses entraves se somava a imobilidade desses trabalhadores. E que as recentes mobilizações dos bóias-frias paulistas colocam um desafio novo para o movimento sindical rural. Não obstante todas as dificuldades mencionadas, eles venceram a fase das pequenas mobilizações — paradas de turmas, redução do ritmo de trabalho —, que tinham mais o significado de resistência. Passaram a atuar mais agressivamente, enquanto categoria, inaugurando a etapa das negociações entre trabalhadores e empregadores. A mudança qualitativa da qual se falava.

O movimento sindical rural tem sabido, até o momento, responder a essas mobilizações, apresentando as listas de reivindicações da campanha salarial que se iniciava, para servirem de base às negociações que vêm sendo feitas, e tornando-se o mediador; e insistindo na importância de os acordos serem feitos em todos os sindicatos — já foram feitos mais de 20 —, a fim de que os itens estabelecidos atendam mais de perto à especificidade de cada situação de trabalho e à necessária organização dos trabalhadores para a garantia das conquistas firmadas. Mas a continuidade desse processo depende de uma série de revisões da estrutura e do projeto político do sindicalismo rural, revisões que, de necessárias, passaram a ser urgentes, uma vez que os trabalhadores estão sabendo se fazer ouvir. Estão se constituindo em sujeitos coletivos e expressando suas demandas. Saberá o movimento sindical transformar-se na instância institucionalizada da organização e encaminhamento político de suas lutas específicas?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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