Acessibilidade / Reportar erro

A agenda da transição

PENSANDO O BRASIL

DESAFIO CONSTITUINTE

A agenda da transição

Fernando Henrique Cardoso

Sociólogo e senador da República pelo PMDB

Dois meses é muito tempo numa fase de mudança acelerada como a que atravessamos no Brasil. Quando este artigo estiver sendo lido, algumas das nossas perplexidades atuais (escrevo em meados de maio) em relação à conjuntura terão sido esclarecidas pelos fatos. Em compensação, pode ser que algumas certezas de hoje se vejam abaladas...

Com esta ressalva, arrisco-me a afirmar que o rumo geral desta etapa do processo político está definido desde o dia 9 de maio, quando o Congresso aprovou por unanimidade o "emendão" constitucional elaborado pela Comissão Interpartidária.

Eleições diretas para as prefeituras das capitais e áreas de segurança, eleição da Constituinte em 1986, diretas para presidente em 1988 (ou antes, se a Constituinte resolver). Eis a agenda básica da transição, a carta de compromisso que Figueiredo perdeu a oportunidade histórica de assinar e que acabamos conquistando com a Aliança Democrática.

é a agenda ideal? Corresponde ao compromisso possível, .dado o equilíbrio de forças que se estabeleceu a partir da rejeição das "diretas já". O importante, em todo caso, é que esse pacto já se mostrou suficientemente sólido para sustentar o avanço da democratização, mesmo nas circunstâncias traumáticas da doença e morte de Tancredo. Com Tancredo, a Aliança Democrática operou a "quase mágica" de transformar um presidente saído de eleições indiretas, no fiador das mudanças reclamadas pela nação sob a bandeira das diretas. Sem ele, Sarney e os líderes da Aliança perceberam que era preciso refazer essa fiança em termos de um programa claro e de ação conseqüente. No plano político, as transformações estão encaminhadas. Nem tudo saiu como gostaríamos no "emendão". O reconhecimento da cidadania dos analfabetos ficou pela metade: eles poderão votar, mas não ser votados. Não houve respaldo para corrigir as distorções da representação por estados na Câmara dos Deputados: o voto de um eleitor de São Paulo continuará, desse modo, valendo várias vezes menos que o do eleitor de um estado pequeno. Mas o restabelecimento do princípio das eleições diretas em todos os níveis e a garantia de ampla liberdade de organização partidária são requisitos essenciais para que o país reconstrua suas instituições em bases realmente democráticas.

Um cipoal de controles burocráticos

Até o fim de junho, o Congresso deve concluir o trabalho de remoção do entulho autoritário da legislação partidária e eleitoral. A Lei Orgânica dos Partidos, com seu cipoal de controles burocráticos, dará lugar a uma lei mais concisa e que não interferirá na organização interna das agremiações. A Lei Falcão deve ser revogada para dar livre trânsito à pregação eleitoral no rádio e na televisão. Em seguida virá a revisão dos demais instrumentos castradores da liberdade de expressão, começando pela Lei de Segurança Nacional e pela Lei de Imprensa. Com isso, estarão dadas as condições institucionais para que a Constituinte, quando se reunir em 1987, seja um espelho fiel das aspirações da sociedade brasileira.

Democratização em mar revolto

Mas a existência de uma agenda apoiada por forças políticas consistentes e a remoção dos escombros legais do regime extinto, embora fundamentais, não bastam para levar a bom termo a transição democrática. Tanto ou mais que o desejo de democracia, a saturação com os desmandos administrativos e com a inépcia do autoritarismo diante da crise econômica foram o combustível da mobilização social por mudanças-já. Estabelecido um horizonte de mudanças no plano institucional, resta ver como faremos para conduzir o barco da democratização até lá pelo mar revolto da dívida externa, da dívida interna, da inflação galopante, de índices de desemprego assustadores — apesar da incipiente recuperação dos últimos meses —, da justa exasperação dos assalariados após anos seguidos de arrocho e, como pano de fundo disso tudo, da ameaça de descrédito a que se expõe o novo governo se não for capaz de oferecer à nação perspectivas razoáveis de superação das dificuldades.

As greves e os estouros financeiros que pipocam são como as duas pontas do imbroglio econômico deixado pelos governos militares. O primeiro desafio das autoridades da Nova República está sendo revelar à opinião pública toda a extensão dessa herança desastrosa.

Além de franqueza, no entanto, o povo espera decisão daqueles que chamaram a si a responsabilidade de encontrar saídas para a crise, não só no plano político, mas também no económico e no social.

Com a decretação do novo salário mínimo e a intervenção moderadora nos conflitos trabalhistas, o governo tem demonstrado que o empenho democratizante corresponde a uma atitude de respeito diante das reivindicações das maiorias trabalhadoras e assalariadas. é desejável que tal atitude se consubstancie o quanto antes na revisão dos dispositivos da legislação trabalhista (a Lei de Greve, o regime de atrelamento sindical) que impedem a livre negociação salarial. Esta é a parte que interessa especificamente aos trabalhadores na remoção do entulho autoritário.

Logo será preciso demonstrar também firmeza para cobrar das minorias privilegiadas — principalmente dos que até agora só engordaram com a especulação — e do próprio setor público a cota de sacrifícios que lhes cabe, para conter a inflação e abrir espaço para a recuperação sustentada da produção, do nível de emprego e dos salários.

Nesse processo, fatalmente virão à tona — como já estão vindo em relação às greves — divergências no interior da Aliança Democrática. Então os setores populares terão de marcar com firmeza crescente suas posições, para contrabalançar a banda conservadora que tentará limitar, tanto quanto possível, o alcance social da agenda democratizadora.

Evitar que o pacto de transição se rompa, prejudicando a realização de seus objetivos no plano institucional, e ao mesmo tempo não deixar que naufrague por imobilismo diante da crise econômica: entre esses dois riscos, o PMDB, com a responsabilidade de principal força propulsora da democratização, terá de definir sua estratégia daqui até a Constituinte. Do êxito com que o faça depende a possibilidade de considerarmos o regime autoritário, com todas as suas instituições, uma página realmente virada da história.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br