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Entulho e desentulho

PENSANDO O BRASIL

DESAFIO CONSTITUINTE

Entulho e desentulho

José Genoíno Neto

Deputado federal pelo PT

Quais serão os pressupostos sobre os quais se assentarão as regras do jogo no processo da Constituinte? Desde logo afirmamos que não é do nosso menor interesse uma Constituinte que seja convocada sem que se mova uma palha para transformar a disputa eleitoral que precederá a escolha de seus delegados num momento de liberdade e democracia ampliadas. Não é possível, portanto, convocá-la na vigência de leis autoritárias e restritivas que nos legou o regime anterior. Tampouco considero que bastem uns breves retoques nessa fachada, a fim de disfarçar a permanência de seus fundamentos ditatoriais.

É bem verdade que a liberdade é igual ao exercício da liberdade, mas não é nem um pouco desprezível que esse exercício também esteja sancionado e reconhecido na lei. Isto pelo fato, simples e óbvio, de que as leis não são apenas palavras que expressam uma determinada norma, à qual devemos obedecer e segundo a qual devemos nos conduzir. A lei, no mesmo passo que sanciona uma conduta, também potencializa outra. Assim, se as eleições forem mantidas sob o garrote da legislação, restrita, ainda que reformada, sem dúvida elas não serão realizadas num clima de maior liberdade.

Se continuar a pairar sobre as eleições a espada das "salvaguardas constitucionais" da Lei de Segurança Nacional e do SNI, não haverá condições para se construir, no próprio processo, a liberdade que desejam as camadas populares. Portanto, é necessário acabar com isso, pelo menos, se pretendemos que as eleições sejam minimamente democráticas, e não apenas uma farsa que, como tal, seja revestida de belas palavras e pequenas mudanças.

Neste mesmo sentido é que raciocino sobre as demais leis que regularão explicitamente o processo de escolha dos delegados. Por exemplo, será possível pensar numa escolha minimamente livre e democrática se os partidos políticos forem beneficiados com uma parcela da propaganda eleitoral apenas se possuírem deputados? Espanta-me, portanto, que a formulação mais avançada sobre esta matéria, que atualmente é apreciada numa comissão do Congresso, seja um projeto de lei que preveja 50% do tempo igualmente distribuído entre todos os partidos e os outros apenas proporcionalmente ao número de deputados. Se aprovada essa lei, a sanção não será mais diretamente política, mas disfarçadamente política. O que serve, entre outras coisas, para disfarçar o caráter discriminatória que permanece na Nova República.

Não é demais que se mencionem aqui as modificações que foram propostas à comissão interpartidá-ria, da qual faço parte, e que possuía, como todos sabem, a missão de preparar as disposições para a convocação da Constituinte. Pois bem, aquela comissão agiu de forma muito tímida e limitada para o meu gosto. Não enfrentou de forma decisiva a questão do voto para os analfabetos, soldados e marinheiros. Não enfrentou, além disso, a questão da proporcionalidade eleitoral para a Câmara Federal. Foi mantido o critério anterior, que, no fim das contas, termina por restringir a proporcionalidade dos estados mais ou menos ao mesmo pé. Os estados mais populosos não podem passar de 60 deputados no limite máximo, e o limite mínimo é de oito.

Mais uma vez a Comissão vergou-se à influência política das oligarquias e aceitou manter o critério anterior que sobejamente as beneficiava. é fácil perceber por que: qualquer estado nordestino ou nortista tem quase o mesmo peso político no Congresso que os mais avançados e populosos centros industriais e urbanos, onde, realmente, mais pulsa a vida política e econômica do país. Tal modo de encarar as coisas sanciona o absurdo, na medida mesmo que dá pesos iguais para valores desiguais. Esse procedimento não aponta para as diferenciações que é necessário assinalar, mas para um obscuro critério que só serve àquelas forças que são historicamente as mais reacionárias e retrógradas neste país.

Portanto, são duas as tarefas que vejo se abrirem de forma imediata às forças interessadas efetivamente em ampliar as margens de liberdade do nosso acanhado e ainda autoritário processo político.

Fixando-se em pontos concretos

Desde já é preciso buscar a unidade possível em torno de pontos concretos para travar a luta contra todas essas medidas que estão sendo mantidas para convocar a Assembléia Constituinte. Neste sentido, considero que o ponto prioritário de nossa unidade deve se dar sob a bandeira de liberdade de expressão política partidária e do fim da legislação de segurança e do aparato de repressão. Todos conhecem as propostas de modificações que foram feitas para a legislação partidária. Eu pergunto se se pode dizer que são modificações que acabam com o tão propalado entulho autoritário ou se apenas diminuem e abrandam seus artigos mais despudoradamente ditatoriais.

Abrandou-se, por exemplo, o art. 152 da Constituição, que, lá pelas tantas, dizia que não era permitido aos partidos nenhum relacionamento com entidades ou partidos políticos estrangeiros. Fato deveras embaraçoso, porque na medida que se fala em um governo pluralista e aberto às coisas do mundo, a própria Aliança Democrática iria ver-se tolhida em seus esforços para contatar partidos políticos de outras nações. Propõe-se a modificação desse absurdo impedimento de relações de qualquer natureza para impedir a subordinação a entidade ou partido político estrangeiro. Outras modificações que foram propostas não vigorarão para as eleições de 1986, como, por exemplo, a exigência de 3% do eleitorado em todo o país ou 2% por estado, ao invés dos 5% e 3% anteriores.

Porém, aquilo que há de mais autoritário na nossa legislação partidária não foi alterado. O que se manteve e que era fundamental que fosse alterado? Sem dúvida, a tutela dos partidos políticos pelo Estado, através do Judiciário, que detém um enorme poder. Desde a fiscalização financeira até o controle das atividades políticas e administrativas. Este cordão umbilical deveria ter sido rompido. A Comissão, talvez temerosa das reações, não quis avançar para além e mexer nos pilares autoritários da atual legislação.

Os partidos políticos continuam atados ao Estado e respondendo diante dele. A sua função, no entanto, é, exatamente, servir aos diversos interesses políticos que se pretendem representar, e também responder pelos seus erros políticos apenas diante de seus filiados. E deveriam ser esses filiados a arrancar com todas as responsabilidades políticas, administrativas e financeiras, inclusive as responsabilidades de controle. Apenas dessa forma é que se pode forjar cidadãos que não encarem a política como algo externo a suas vidas e não vejam o Estado como um pai todo-pode-roso que os tutele e protege sempre. Depois de tudo isso, só pode soar falso a cantilena nas escolas, de que as crianças devem se criar levando em consideração suas responsabilidades na construção dos destinos do país.

Por todas as razões que acabo de enumerar, é que considero fundamental que busquemos a unidade das forças populares a fim de participar da luta por uma Constituinte, com uma maior margem de liberdade, tentando diminuir a hegemonia conservadora no interior dela. Nossas tarefas vão muito mais longe do que andarmos a reboque das propostas das classes dominantes. Devemos nos preparar para enfrentá-las, ainda que seja em seu próprio terreno, onde, obviamente, levamos desvantagem.

Porém, se não começarmos a agir dessa forma, buscando o enfrenta-mento, jamais conseguiremos forjar nosso próprio espírito de luta, jamais estaremos aptos para um dia assumir o poder e realizar, aí sim, todas as transformações que julgamos necessárias a este país. Transformações que não ficarão limitadas a umas quantas leis, mas que deverão incidir sobre a própria estrutura de poder e de propriedade. Esse caminho só poderá realmente ser aberto se começarmos a fazê-lo desde agora.

Se a alternativa que soubermos criar para disputar a Constituinte se basear numa real e efetiva plataforma de mudanças, ela poderá ser um dos primeiros passos para que construamos uma alternativa política com força suficiente para opor-se à proposta política da Aliança Democrática e por isso mesmo enraizar-se no coração e nas mentes das maiorias exploradas e oprimidas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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