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Nações indígenas

PENSANDO O BRASIL

DESAFIO CONSTITUINTE

Nações indígenas

Sylvia Caiuby Novaes

Antropóloga, professora no Departamento de Ciências Sociais da USP e assessora do Centro de Trabalho Indigenista

Pensar uma proposta para a nova Constituição, no que diz respeito aos índios e à FUNAI, implica, necessariamente, uma reflexão mais ampla sobre a especificidade das sociedades indígenas e, ainda, sobre as possíveis relações entre os índios e o Estado brasileiro, que seria certamente mais rica se' nos aprofundássemos na trajetória histórica desta relação. Os conceitos de povo e nação podem nos auxiliar nesta reflexão.

O conceito de povo implica, em primeiro lugar, um agrupamento de pessoas que se reúnem em função das várias afinidades que mantêm entre si. Povo não quer dizer, em nenhum dos significados que aparecem nos dicionários, uma organização formal ou poderes formalmente constituídos. Designa muito mais um compartilhar de uma história, de uma mesma língua, de hábitos e tradições comuns, como é o caso dos vários povos que emigraram para o Brasil — japoneses, judeus, etc. As outras acepções de povo nos transmitem a idéia de um conjunto de pessoas que, por uma eventualidade, estão reunidas - por morarem no mesmo local ou então por serem igualmente destituídas de reconhecimento social.

O conceito de nação, por outro lado, fala explicitamente em território (e não em localidade, como os bairros da Liberdade ou do Bom Retiro em São Paulo), condição essencial da própria existência das sociedades indígenas. O conceito de nação implica não apenas o compartilhar de certas afinidades, mas também a organização política destas pessoas sob um único governo, tal como ocorre nas sociedades indígenas no Brasil.

O que esses conceitos evidenciam é que, embora os índios se constituam, efetivamente, como nações (diferenciadas entre si e diferentes da Nação brasileira) sempre foram tratados como povos e é ainda sob esta condição de povo que inúmeros antropólogos, indigenistas e até mesmo índios continuam a tratá-los (vide, por exemplo, o documento "Princípios para uma nova política indigenista", que, ao se recusar a tratar as sociedades indígenas como nações, confunde-as com grupos minoritários de imigrantes no Brasil).

Na verdade, quando se pensa nas relações entre os índios e o Estado, parece muito difícil — e esta dificuldade é histórica — pensar os índios com nações, com direitos soberanos sobre o seu território e com suas formas de organização social. E este é precisamente um dos grandes desafios que os constituintes terão que enfrentar. Não seria possível pensar o Estado brasileiro como plurinacional, e não apenas pluriétnico ou plurirracial?

Por outro lado, não se trata mais de criar mecanismos para aprimorar a agência estatal encarregada do. trato com os indios. Sabemos que a FUNAI, que veio a substituir o antigo SPI (Serviço de Proteção aos índios) — este por sua vez sucessor do Diretório dos Ìndios —, está fadada a total ineficácia. Não podemos mais cair na ironia dos sinônimos. A criação de uma Agência Indigenista, como vem sendo proposta, não poderá resolver o problema de uma nação ter seus direitos reivindicados e defendidos por terceiros, mesmo que no quadro desta agência constem alguns índios.

É fundamental que a Constituinte seja precedida de amplos debates, com representantes de diferentes nações indígenas, antropólogos, indigenistas, juristas familiarizados com a questão indígena, parlamentares, representantes de entidades civis de apoio à luta indígena, da Igreja (CIMI), e inclusive de indigenistas que pertençam ao quadro da FUNAI. Da pauta destes debates certamente deverão constar as seguintes questões:

— Como pensar as relações entre o Estado brasileiro e as diferentes nações indígenas? Há que se considerar não só a especificidade das sociedades indígenas enquanto nações, mas também as várias diferenças entre elas: tempo de contato, população regional envolvente, população numérica, tipo de contato com a sociedade regional, os diferentes níveis de auto-suficiência econômica, etc. Seria interessante que se estudassem formas já existentes de relacionamento entre o Estado moderno e grupos minoritários, como, por exemplo, a Iugoslávia, a China, etc.

— Como se poderia pensar a representação política das nações indígenas no Estado brasileiro?

— Como ficam as questões da tutela e da emancipação?

— Como garantir a essas nações sua autonomia administrativa, seu direito à autodeterminação?

— Não seria possível pensar a questão da posse e propriedade dos territórios indígenas a partir da propriedade comunal? Quais as vantagens e desvantagens de se manter a atual situação, em que a União detém a propriedade dos territórios indígenas? é fundamental que se faça também uma análise minuciosa da questão da exploração do subsolo dos territórios indígenas.

Inúmeras outras questões deverão ser levantadas. Estas são apenas algumas sugestões iniciais a serem analisadas e ampliadas. São mais de 220000 indivíduos, representantes de 180 nações indígenas, e sua importância ultrapassa em muito sua dimensão numérica. Este é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelos constituintes de um país que se quer democrático.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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