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China e modernização

PENSANDO O BRASIL

China e modernização

Daniel Aarão Reis Filho

Professor de História na Universidade Federal Fluminense e doutorando na USP

As notícias que vêm da China surpreendem: "Os camponeses ricos são os representantes das forças produtivas de vanguarda no campo STOP produzir melhor e mais, respeitando a iniciativa individual STOP tempo é dinheiro STOP socialismo não quer dizer pobreza STOP as chinesas reaprendem o uso da maquilagem e dos permanentes incrementados e desfilam novamente com os sensuais vestidos de corte lateral STOP hotéis de luxo oferecem-se aos turistas em Nanquim, Xangai, Cantão, Pequim STOP".

O que há de verdade nisso tudo? Como entender esse quebra-cabeças? Mudou a China ou mudou o socialismo? Que fim levou a China de Mao?

Em meados dos anos 70, depois da morte de Mao, o quadro socioeconômico do país não chegava a ser brilhante. Embora a miséria, a fome, a desnutrição, as guerras entre senhores de terras, flagelos da China anterior à vitória da revolução, fossem coisas do passado, certos dados não permitiam grandes expectativas em relação ao futuro.

O crescimento demográfico continuava alarmante. O analfabetismo marcava cerca de 25% da população. Escasseavam os recursos para financiar novos surtos de desenvolvimento. Era baixo o nível tecnológico.

As experiências anteriores não entusiasmavam. O Grande Salto para a Frente levara o país para trás. A Revolução Cultural provocara o pânico entre as elites, quase destruíra o Partido Comunista e gerar a estagnação. O PCC e o Estado chinês não queriam mais ouvir falar do legado maoísta. O que fazer então?

Deng Xiaoping, novo homem forte da China, e sua corrente política tinham uma alternativa. E desde então ela vem se impondo. Ainda em 1976 é aprovada a linha das Quatro Modernizações: da indústria, da agricultura, da ciência e tecnologia e das forças armadas. Em dezembro de 1978, o Comitê Central determinaria mudanças nos princípios ideológicos e na política agrícola. As reformas seriam estendidas às cidades em outubro do ano passado. 1976-1985: nove anos de um novo curso. Qual o sentido dessas reformas?

Comecemos pela agricultura. As decisões de dezembro de 1978 pegaram em cheio o setor: o Estado retirava parcialmente seus controles, liberando quase todos os preços. Os camponeses ficariam obrigados a vender apenas uma quota de sua produção para o Estado. O resto ficaria à sua livre disposição. Desde então a quota vem caindo de importância e, às vésperas de 1985, o regime anunciou sua extinção e substituição por um imposto. O ponto alto das reformas é o chamado "sistema de responsabilidade contratual", pelo qual são estimuladas as pequenas unidades de produção, baseadas na exploração familiar, respeitando-se e incentivando-se a iniciativa individual.

As relações com o capital internacional também registram mudanças. Desde 1980 criaram-se Zonas Econômicas Especiais — as ZEE. Numa delas, em Shenzhen, já existem em operação ou instalação cerca de 400 empresas internacionais. O país está abrindo a exploração de recursos naturais — no Mar da China 30 companhias, capitaneadas pela Exxon, exploram, com contratos de risco, campos petrolíferos.

Para cada situação seu peso e sua medida

A política de relações exteriores procura novas definições: reaproximação com a URSS, ampliação das boas relações com os EUA, abandono definitivo da posição de porta-voz revolucionário do Terceiro Mundo. A orientação geral é pragmática. As relações com cada país serão examinadas de acordo com os interesses nacionais. O caso de Hong-Kong é expressivo: a partir de 1997 a colónia inglesa será incorporada à China. Um tratado assinado no ano passado com a Inglaterra garante a permanência do capitalismo em Hong-Kong por mais 50 anos. A China socialista terá uma província capitalista: "um único país, dois sistemas sociais". Abandono de princípios? Ou uma solução concreta para uma situação concreta, como gostaria de dizer Lenin?

As medidas de impacto para as cidades também são significativas: liberação dos preços industriais, autonomia financeira e administrativa para as empresas, salário pago de acordo com a quantidade e a qualidade do trabalho investido. A empresa que não for eficaz fechará as portas. Até mesmo os princípios ideológicos foram alcançados pelas reformas: a luta de classes deixou de ser uma preocupação essencial, a política será substituída pela técnica no posto de comando. Os que produzirem mais e melhor serão recompensados. O Estado e o Partido garantem paz, tranqüilidade, dentro da lei e da ordem.

Os progressos são registrados em prosa e verso. Desde 1979 a produção agrícola cresceu a uma taxa média anual de 7,9%. As pequenas unidades familiares, nos dois últimos anos, conseguiram uma produtividade 8,4 vezes superior às fazendas estatais, a renda per capita do camponês duplicou em cinco anos. Em 1984 a produção de cereais chegou a 400 milhões de toneladas, 176 a mais que em 1978. A produção industrial não ficou atrás: mais 10,1% em 1983. Mais 13,1% entre janeiro e novembro de 1984. As vendas a varejo cresceram de 15,8% e o PIB pulou 11%. As relações com o capital internacional atravessariam um momento excelente. Em 1984 a China acertou contratos de compra de tecnologia no valor de U$ 2 bilhões, créditos de U$ 2,5 bilhões, investimentos de U$ 1 bilhão.

Mas nem tudo são flores no reino da euforia desenvolvimentista.

Há limites dificilmente removíveis a curto e médio prazos: transportes e comunicações deficientes, carencias energéticas, desqualificação da força de trabalho, tecnologia obsoleta. A expansão da presença do capital internacional é problemática: a imposição das iniciativas conjuntas — 51% para os chineses e 49% para o capital externo — é considerada insuportável por muitos capitalistas. A transferência de tecnologia sofisticada tem implicações estratégicas que provocam resistências. Na área diplomática as reorientações não andam tão rápidas como se poderia imaginar pela leitura da propaganda. As mudanças esperadas têm um tempo de maturação necessariamente mais lento.

Por outro lado, as reformas desenvolvem e acentuam desigualdades sociais e regionais já existentes. As contradições manifestam-se no interior do Partido e das Forças Armadas. Desde 1976, campanhas de retificação têm promovido milhares e milhares de expurgos em ambas instituições. Mas se os expurgados achavam que as reformas tinham ido longe demais, outras correntes pensam que estão lentas em demasia. Jovens e intelectuais têm protestado contra aspectos essenciais do socialismo chinês: a força todo-poderosa do Partido, a centralização excessiva, a censura oni-presente e a falta de liberdade de expressão. A direção atual tem sabido navegar com habilidade entre estas duas oposições. Aliás, a existência delas não é totalmente nociva para Deng e seus companheiros, que afirmam a própria hegemonia na base da caricaturização do "es-querdismo igualitarista e utópico" e do "direitismo liberalburguês".

Mas o governo tem sido impotente ante dois flagelos que alimentam as oposições e minam os seus esforços: a corrupção e a repressão.

A corrupção: atribuição ilegal de apartamentos e mordomias. Importação fraudulenta e contrabando. Exportação ilegal de armas, objetos de arte, drogas. Vendas não autorizadas de combustíveis. Propinas, gorjetas, sub e superfaturamentos, subornos. A sucessão de escândalos abala o prestígio das reformas.

A repressão continua brutal. Os dirigentes prometeram que o país seria governado por leis e não mais pelo puro arbítrio como no tempo do "Bando dos Quatro" que reinou nos últimos anos da vida de Mao. Acontece, porém, que o código penal, editado em 1980, e depois emendado num sentido ainda mais severo — e com efeito retroativo —, viola os direitos fundamentais da pessoa humana, consagrados em todas as convenções internacionais. Assim, por exemplo, os delitos de opinião são freqüentemente amalgamados aos crimes contra a Revolução e a segurança do Estado. As autoridades administrativas têm poder para despachar, até por quatro anos, para campos de reeduca-ção, indivíduos considerados anti-socialistas. A pena de morte foi excluída da consideração da Corte Suprema e vem sendo decretada em processos sumários contra criminosos ditos comuns. A assistência jurídica é precária, às vezes nula. Não são incomuns a prática de torturas e o encarceramento em condições su-bumanas. é claro que repressão e corrupção não foram inventadas pelas reformas. A repressão é filha dileta do poder sem controle democrático. A corrupção acompanha o capitalismo e a livre iniciativa, assim como os Estados ditatoriais. As reformas na China estão conseguindo misturar estes ingredientes: o Estado onipotente e a onipotência do dinheiro. O fato de que floresçam com as reformas não seria uma indicação da relatividade de sua tão propalada eficácia social?

Tentando compreender a nova etapa

A China moderniza-se. Tentei registrar as belas violas dos progressos e os pãos bolorentos das contradições. Mas qual o significado histórico destas reformas para a construção do socialismo?

Um primeiro caminho de reflexão é negar o socialismo na China. As reformas seriam a "prova" que faltava. Sociedades agrárias não podem mesmo aspirar ao socialismo, têm de esperar o superproletariado dos países capitalistas avançados. Não concordo com a hipótese e penso que o socialismo está irreversivelmente associado aos processos históricos das revoluções que pretendem construí-lo. é muito duvidosa a validade de negar sua existência, a golpes de citações de clássicos do marxismo, inclusive porque os chineses também têm seu arsenal de citações. Desconfio dos que fazem tábula rasa dos processos existentes e querem começar do zero, anunciando receitas do verdadeiro socialismo, o autêntico.

Proponho que comecemos pela tentativa de compreender por que se impuseram as reformas atuais. Para isso é preciso recuar um pouco no tempo, refletir sobre a formação do movimento comunista na China e sobre as relações que estabeleceu com o povo chinês.

O comunismo chinês, desde o início, definiu o objetivo de libertar o país da opressão estrangeira — neste sentido sempre revestiu um caráter nacional. Tratava-se de conferir à China a possibilidade de crescer, equiparar-se e superar os que a oprimiam e a exploravam. Para isso estabeleceu a necessidade — uma condição indispensável — de ligar-se, para dirigi-las, às aspirações dos movimentos sociais da cidade e do campo.

Numa primeira fase, os comunistas tentariam reproduzir o modelo da revolução soviética. Não deu certo. Assim como Paraíba não é Chicago, Pequim e Xangai não são Petrogrado e Moscou. No prosseguimento da luta revolucionária, a pujança do movimento social camponês ensinaria o caminho. Depois de muitas marchas, algumas longas, os comunistas chineses abandonaram os dogma e adequaram-se ás realidades e à dinâmica dos camponeses. As experiências de luta, de vida e de produção nas áreas libertadas, particularmente em Yanan, onde residia o estado-maior revolucionário, forjaram uma concepção igualitário-democrática que seria essencial para a mobilização e organização dos milhões de camponeses que lutavam por terra, paz e independência e unidade nacionais.

O lugar dos sonhos igualitários

Com a conquista do poder os comunistas tenderam a arquivar o igualitarismo e a democracia. Entenderam que o projeto de construção do socialismo exigia o desenvolvimento acelerado das forças produtivas, a modernização. Novamente funcionaria a sedução da meca do socialismo: Moscou. Mas não seria fácil livrar-se das forças identificadas com as experiências da luta revolucionária. Elas tinham ampla base social, tradições seculares de sonhos igualitários, núcleos duros nas forças armadas e no partido. Em dois momentos, entre 1956 e 1958 e entre 1966 e 1969, estas forças tentariam oferecer alternativas aos projetos modernizantes: o Grande Salto para a Frente e a Grande Revolução Cultural Proletária. Tentativas frustradas. Durante a Revolução Cultural, o povo nas cidades chegou a destruir praticamente o Partido Comunista e começou a inventar novas formas estatais. Mas não teve fôlego, consistência, formas de organização, programas alternativos e lideranças capazes de afirmar um novo caminho. Na maré baixa do movimento, impôs-se o reino do arbítrio, do terror político de Estado, comandado por ex-dirigentes da própria Revolução Cultural — foi o tempo do chamado Bando dos Quatro. Tentariam o impossível: desenvolver um regime igualitarista sem a mobilização e a confiança do povo. Uma democracia apoiada na polícia política. Virou caricatura. E preparou o caminho para que as reformas modernizantes aparecessem como alternativa de salvação nacional.

Reformas modernizantes, tendências igualitárias. Os chineses parecem seduzir-se alternativamente por umas e outras. Neste momento, Deng Xiaoping está procurando consolidar dirigentes e criar fatos consumados, de forma a garantir as reformas por muitos e muitos anos. Sinólogos categorizados não têm dúvida em afirmar que a China encontrou o caminho para o século XXI. Estamos em plena euforia modernizante. Seria possível então afirmar que as tendências igualitárias e democráticas estariam definitivamente mortas e enterradas? Esquecidas as experiências revolucionárias de Yanan e da Revolução Cultural? Ou elas ressurgirão das cinzas, como chuvas depois das secas, como a liberdade depois das longas ditaduras?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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