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Destinos implacáveis

PENSANDO O BRASIL

Destinos implacáveis

Marijane V. Lisboa

Professora de Sociologia na PUC-SP e redatora de LUA NOVA

Havia um reino em um país muito distante, onde todas as moças só podiam ficar nos bailes até a meia-noite. Depois, todo o encanto se desfazia, e como elas não queriam aparecer em toda a sua feiúra nem pobreza, ao soar a décima segunda badalada, fugiam espavoridas. Em uma dessas noites, cansado de bailes ligeiros, o príncipe (eterno solteirão) já se preparava para dormir, quando notou no salão vazio uma belíssima jovem que continuava a bailar uma valsa inexistente. Apaixonou-se à primeira vista e seqüestrou-a para os seus aposentos, onde viveram aventuras deslumbrantes, em plena Idade Média, com meteoros invadindo os reposteiros, o céu e a terra revolvendo-se sobre os colchões maciíssimos de paina ao som do trinado de mil aves raras. Adormeceram abraçados.

Os primeiros raios de luz entravam pela janela e ouviam-se passarinhos quando o príncipe acordou invadido por aquela inebriante descoberta do amor! Mas, onde estava sua amada? Tudo teria sido um sonho? Não, o travesseiro ainda conservava o doce calor da sua loira cabecinha e a porta estava entreaberta... Levantou-se de um salto, chamou pelos lacaios, recebendo de seu valet de chambre um pequeno papel escrito. Nele, com uma letra suavíssima, leu:

Meu bem amado,

Perdoe-me por fugir-te, mas eis que o alvorecer reservou-me amarga decepção: com a claridade pude discernir os contornos preciosos de vossos pés reais (e oh! dor atroz), são demasiadamente grandes... Sou, na verdade, uma princesa encantada, por isso posso bailar até depois da meia-noite sem que minha beleza sofra qualquer dano, porém, uma fada má, Freuda, condenou-me a só poder pertencer para todo o sempre àquele que tiver um pé tão pequeno que caiba em uma delicada bota que trago sempre comigo por baixo das saias... Adeus, talvez só me restem os anões esquivos das florestas misteriosas...

Poucos dias mais tarde o reino chorava a prematura morte de seu príncipe, vítima de uma gangrena insidiosa, que ocorrera após um estranho acidente em que o príncipe perdera os dedos do pé.

Era um reino cheio de cinderelas atentas às doze badaladas da meia-noite, abandonando o solitário príncipe casadoiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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