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Inflação e pouca-vergonha

PENSANDO O BRASIL

Inflação e pouca-vergonha

Ladislau Dowbor

Economista e professor da PUC-SP

Conversando com as pessoas, ou lendo os jornais, constata-se que o país é composto exclusivamente de democratas. é de se espantar como chegou a existir uma ditadura.

Com a inflação ocorre um fenômeno semelhante. Todos são contra. Dá até a impressão de que a inflação é independente de qualquer vontade. é mais um dos numerosos partos de mãe virgem que a história nos apresenta.

A pouca-vergonha neste campo chegou a tal ponto, que qualquer um informa praticamente o que quer. Segundo editorial da Folha de S. Paulo, "pode-se assegurar que um aumento de apenas 5% (nos salários) acima do INPç tenderia a provocar um aumento de preços de ordem de cem pontos percentuais, isto é, a inflação anual saltaria de um patamar de 250% para 350%". E tem mais: a semana de quarenta horas elevaria a inflação para 620%, e a trimestralidade para 1175%.

Isso, em artigo de 30 de abril, para ajudar a comemorar o dia internacional do trabalho. Pobres assalariados: da paternidade não têm o gosto, só as responsabilidades.

Joelmir Beting calcula que, se a inflação fosse resultado do salário, deveria ter caído pela metade, em vez de "saltar, olímpicamente, do patamar dos 102% para o altiplano dos 250% ao ano". Poesia à parte, é rigorosamente correto.

Para já, é interessante lembrar os efeitos diferenciados da inflação, e ver quem lucra com ela. O móvel do crime, segundo nos ensina Eça de Queiroz, não deve ser procurado "na consciência humana, no amor da pátria". Ele é encontrado, mais prosaicamente, nas contas bancárias.

De um lado, há o conjunto da população de renda fixa: os assalariados, os aposentados, os pequenos agricultores e microempresários que não têm como influir sobre os preços. Essa massa, que constitui a esmagadora maioria da população, tem os seus rendimentos decretados por terceiros, Eles se ajustam ao que lhes pagam, e se reajustam duas vezes por ano.

Em outros termos, a cada mês que passa, consomem algo com 10% a menos, até que voltem à situação do início do semestre, se o reajuste for de 100%. A sua capacidade de consumo pode ser apresentada como segue:

A parte riscada corresponde à perda de capacidade de consumo, corroída pela inflação. Como não existem bens sem dono, a produção não consumida pela população assalariada será consumida pela população de renda variável.

Um industrial que descobre que os insumos que compra, inclusive mão-de-obra, estão mais caros, e que em conseqüência o seu produto custa mais para produzir, simplesmente eleva o preço de venda, transferindo o impacto da inflação para a frente. Da mesma maneira, um comerciante que recebe um produto mais caro faz um novo cálculo da sua margem, e revende mais caro. Um advogado aumenta os seus honorários, e assim por diante.

É a liberdade estilo Moshe Dayan: só tem o olho direito.

Na realidade, os mecanismos são mais amplos e visam atender a todos os segmentos da classe dirigente, detentores de algum poder. Um assalariado que tem de segurar um dinheiro para um pagamento submetido aos efeitos da inflação: para isso estão aí o Over e o Open. Mas para que não haja abuso, o mecanismo só é acessível a quem disponha de quantias elevadas.

Isto permite garantir que os mecanismos sirvam realmente a quem devem servir, evitando-se o aumento indevido da capacidade de compra por parte de pequenos empresários e profissionais liberais.

A poupança forçada realizada pelas classes trabalhadoras abre, assim, espaço para a atribuição do que não foi consumido às camadas de renda elevada, através de juros elevados no mercado aberto, de subsídios à exportação, de subsídios às grandes empresas agropecuárias, de isenções fiscais, etc.

Os bancos se queixam de que a intervenção do Estado tende a elevar os juros. O argumento é perfeitamente correto. Só que os fundos do Estado acabam por favorecer certos segmentos da própria classe dominante. Quanto aos bancos, simplesmente elevam os seus juros, o que significa que as empresas terão custos financeiros mais elevados, custos estes que serão repassados para os produtos, e finalmente pagos pela massa de consumidores, que consumirá menos, a preço mais elevado.

Não haveria então empresários contrários à inflação? é claro que há: são os que não têm poder suficiente, ou estão em setores insuficientemente monopolizados para permitir o jogo sobre os preços.

Para os privilegiados do processo, adapta-se perfeitamente o dístico tão encontrado nos caminhões: "... é que nem cebola: a gente chora mas come".

Pelo lado dos efeitos e dos interesses em jogo, portanto, é desde já bastante claro a quem a inflação prejudica, e a quem favorece. E é impressionante o cinismo com o qual se atribui a inflação à "irresponsabilidade dos operários".

Pelo lado das causas, a complexidade é indiscutivelmente maior. Focaremos aqui um aspecto apenas, mas que nos parece importante, que é a relação entre o investimento e a inflação.

Todo investimento — construção de uma fábrica, de uma estrada, de uma barragem — exige poupança. As horas de trabalho, a energia e outros fatores de produção necessários para o investimento deixam de ser utilizados para produzir bens de necessidade imediata. Em compensação, materializam-se em novos meios de produção, que por sua vez poderão servir a produzir mais bens de consumo.

Em outros termos, o investimento implica um desvio da produção. A construção de uma barragem hidroelétrica leva a um fluxo salarial, para pagar empregados da obra, salários de quem produziu cimento e outros produtos, sem que haja um aumento de bens de consumo no mercado. Gera-se, naturalmente, um desequilíbrio entre recursos e bens disponíveis, levando a um aumento de preços.

Mas as situações são profundamente diferentes, conforme o tipo de investimento que foi realizado.

No caso de uma fábrica de massas alimentícias, por exemplo, depois de dois ou três anos de construção, teremos um suplemento de oferta de bens de consumo individual final, que resulta da nova fábrica que atinge a fase de produção, e o processo se inverte, reduzindo-se a pressão inflacionista. Temos aí o "desequilíbrio dinâmico" do capitalismo, no que tem de mais saudável.

Mas um ponto chave reside justamente no período de maturação do investimento, e na sua "distância" relativamente à produção de bens de consumo individual final.

Assim, uma barragem, originando amplo desvio de fatores de produção, e podendo inclusive provocar a redução de produção de bens de consumo, ao mesmo tempo que gera importante fluxo salarial, terá efeitos inflacionários duráveis, na medida que os efeitos em termos de produção de bens de consumo só se farão sentir a bem mais longo prazo: a energia da barragem levará a economias externas maiores numa região, possibilitando a instalação de novas fábricas e modernização de unidades agrícolas, e é apenas após a maturação de um novo ciclo de investimentos — por exemplo, dez anos depois — que sentiremos os efeitos em termos de aumento de oferta de bens de consumo, reequilibrando-se o processo.

Faraós embalsamados e inflação crônica

O tipo de investimento — ou a importância do desvio produtivo que representa — constitui, portanto, um fator relevante dos efeitos inflacionários ou não — ou mais ou menos inflacionários — de uma política de investimentos.

É óbvio que, no caso brasileiro, com o Estado empreendendo gigantescas obras como a Transamazônica ou as grandes barragens, ou ainda o programa nuclear, a inflação torna-se quase crônica, pois não há como recuperar o desequilíbrio entre recursos e produção. Quando a Transamazônica começará a ter efeitos positivos em termos de produção de bens de consumo individual final?

Por trás do processo de inflação criado no Brasil — por outro lado, perfeitamente normal quando se realizam investimentos — está o fato de os investimentos realizados não corresponderem às necessidades reais da economia, de não constituírem alavancas de dinamização da produção.

Quando uma Brown-Boveri ou uma Westinghouse pressionam o governo para que realize grandes investimentos estatais, estão utilizando a forma disponível de escoar os seus produtos num mercado nacional relativamente limitado, recorrendo à sua expansão artificial, via Estado.

Mas, com isso, levam a uma inflação estrutural. Isto quer dizer que criam uma inflação que passa a fazer parte permanente do sistema econômico, na medida que obrigam a sociedade a construir, e depois a manter, um aparelho que não está criando impacto de dinamização da produção. E os custos dessa manutenção, os chamados custos recorrentes, são imensos. Constitui-se, assim, uma poupança forçada durável, que se evidencia através da inflação.

Os diversos investimentos, ou as diversas políticas de investimento, levam à constituição de linhas de consumo de inclinação diferente.

Por exemplo, no caso de uma fábrica de massas alimentícias, enquanto dura a construção da fábrica, com criação de fluxos salariais sem produção de bens de consumo correspondentes, há uma queda inicial do nível de consumo. Neste caso, no entanto, após um lapso de tempo relativamente curto, a fábrica entra em funcionamento e a produção, superior à que havia antes do investimento, leva o consumo a ultrapassar o nível que haveria sem esse investimento.

Se pensarmos, entretanto, em investimentos na realização de obras como barragens ou estradas, que levam muito tempo para construir e só têm efeitos de aumento da produção depois de muitos anos, veremos que a redução de consumo provocada pelo investimento é maior, e a recuperação da taxa de consumo é muito mais lenta, espelhando a profundidade do desvio de produção representado pela barragem. Os efeitos positivos sobre o nível de consumo — e portanto o novo equilíbrio entre os fluxos salariais criados e a oferta de bens de consumo — podem perfeitamente, neste caso, ultrapassar uma década.

A Transamazônica, por exemplo

Mas há exemplos de investimentos cujos efeitos produtivos são praticamente nulos, mantendo-se assim um desequilíbrio estrutural permanente que se manifesta na inflação. é o caso da Transamazônica, que teve grandes custos, provocou um importante fluxo salarial, mas não teve nenhum efeito produtivo.

Enfim, podemos considerar uma situação em que os efeitos do investimento são contraprodutivos, como os investimentos agrícolas que esterilizam a terra, ou os investimentos do governo na produção de energia nuclear, em que os custos de manutenção ultrapassam a produção, tornando o investimento contra-produtivo.

O que se coloca no nosso caso, portanto — e por trás do monstro da inflação —, é o caráter dos investimentos, e o problema da natureza do desvio. Uma análise dos investimentos, e em particular os do Estado sob pressão das empresas transnacionais, mostra efeitos limitados em termos de capacidade de aumento da oferta de bens e serviços de consumo individual.

Arcamos assim com todos os efeitos negativos do investimento — os seus custos e a poupança que torna necessária — mas não temos os efeitos positivos.

Por trás do problema temos simplesmente as mesmas causas que nos impedem de saldar as nossas dívidas: o aparelho produtivo está desgarrado das necessidades produtivas e de consumo nacionais do momento.

E, no entanto, o estoque interno de capital fixo aumentou. Isto é, temos mais barragens, mais estradas, mais despesas de manutenção, mais serviços administrativos para geri-las. Em outros termos, temos mais PIB (Produto Interno Bruto). Temos até uma renda per capita mais elevada, já que ela representa uma simples divisão da produção nacional pelo número de habitantes. Mas o que não temos, é o aumento da satisfação econômica per capita por parte de quem arca com a inflação. Como foi tão bem resumido pelas autoridades ultrapassadas: a economia vai bem, o povo é que vai mal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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