Os filhos do Pato Donald
Orlando Miranda
Professor de Sociologia na USP
No ano passado o Pato Donald completou cinqüenta anos (foi desenhado pela primeira vez em 1934). E a TV Cultura, sempre atenta a aniversários e comemorações, resolveu fazer um programa a respeito. Daí, me entrevistou, pois como eu já cometi um livro a respeito, devo entender do assunto:
Qual é, na sua opinião atacou a repórter lá pelas tantas , a contribuição do Pato Donald para a cultura brasileira?
O chato de ser intelectual é que a gente não pode responder simplesmente com um sonoro "sei lá". Na ocasião, gaguejei um pouco, fiz cara de entendido e saquei algumas frases que não faziam nenhum sentido, mas que na televisão a gente pode dizer, porque ninguém presta atenção mesmo.
Qual o legado cultural do Pato Donald? Mirandinha, vosso escriba, não tinha a menor ideia. Certamente, eu conhecia a opinião de outras pessoas: o chileno Mattelart, por exemplo, que escreveu um livro chamado Para ler o Pato Donald, pensa o pato como sendo uma garra afiada do imperialismo, cuja tarefa é a de submeter e domesticar os povos pobres e os trabalhadores em geral. Conformar-se com a ordem vigente, seria sua mensagem básica.
Também José de Sousa Matins (Tio Patinhas no Centro do Universo) mostra como as historinhas transmitem a naturalidade da dominação capitalista.
Mas há também os que acham que as estorietas são um passatempo inofensivo, e até educativo. E foi pensando nisso tudo que eu fui para casa. Na minha casa, eu explico, quem chega depois das sete pode ir pegar a comida no forno. Emengaard, nossa viçosa empregada, minha esposa Lili e as crianças podem ser encontradas na sala assistindo a televisão.
Peguei meu prato e fui procurar o aconchego familiar. Esperei pacientemente um intervalo da novela para reportar minha entrevista e falar do que se sabia sobre o Pato Donald.
Uns patinhos tão bonitinhos comentou a doce Lili sem um pingo de interesse , eles não podem fazer mal a ninguém.
Uns homenzarrão desse tamanho interveio Emengaard, que sempre tem uma opinião a respeito de tudo perdendo tempo pra escrever de uns pato cheio de pena.
Embora sem o necessário estímulo familiar, resolvi pesquisar um pouco mais o assunto, e passei os dias seguintes consultando revistas velhas, que por alguma razão tinham escapado da tesoura escolar de minha filha, Felicia.
Para saber do legado cultural do Pato Donald, a primeira coisa seria apurar o padrão cultural das estorietas, e assim me dediquei a levantar os dados históricos, geográficos e da organização social de Patópolis.
A cidade foi fundada por Cornelius Patus. Não se sabe muito sobre este personagem, mas suas estátuas (e raras evocações) mostram-no com a aparência e vestimentas de um peregrino inglês do século XVII, como aqueles que iniciaram a colonização norte-americana, aportando na Nova Inglaterra.
Contudo, outro monumento histórico é o forte Patópolis, que nos é mostrado sob ataque de índios a cavalo, e defendido por armas do século XIX (Cornelius Patus carrega somente um bacamarte).
Assim, o passado de Patópolis sintetiza dois momentos (pelo menos) da história dos Estados Unidos a formação das 13 colônias e a marcha para o Oeste e poderia localizar-se tanto na Nova Inglaterra como nas pradarias do Meio Oeste.
A questão da situação geográfica pode esclarecer-se se observarmos a "zona rural", o que pode ser encontrado nos arrabaldes de Patópolis. O bosque dos esquilos Tico e Teco, e também o do Lobão e dos porquinhos, com suas nogueiras e coníferas, tem características de floresta fria, poderia situar-se na região dos Grandes Lagos ou no Maine. Talvez até na Nova Inglaterra, de onde, aliás, a granja da Vovó Donalda é um produto típico.
Mas a mata do coelho Quincas é de outro tipo, deve localizar-se nas imediações dos pantanais da Flórida. E quanto à fazendola do Urtigão, sem dúvida situa-se nas montanhas do Kentucky ou Tennessee.
Mais: o rio Mississippi passa por Patópolis, pois é ali que a pata Ricarda ancora sua antiquada barca a vapor. E nas imediações da cidade há paisagens de montanhas e desertos que lembram muito mais o Colorado ou o Novo México. Finalmente, o verão (e a praia) são produtos da Califórnia, enquanto o inverno rigoroso e nevado é o do norte do país.
Em suma, Patópolis aproxima, coloca à sua volta todos os Estados Unidos, da mesma forma que a história do país compõe sua própria história.
Lógico! concordou Emengaard quando eu expliquei essas idéias na mesa do jantar. Não foram eles que inventaram esses pato? Então, queria que fizesse eles como?
Eu tentei explicar que há muito tempo as estorietas Disney são desenhadas e produzidas em dezenas de países diferentes (muito poucas das estórias publicadas no Brasil são, hoje, de origem norte-americana), e que me parecia surpreendente que a internacionalização da produção não tivesse alterado o caráter típico estadunidense do universo de Patópolis. Tenho certeza de que Emengaard, então às voltas com uma omelete, não me prestou a menor atenção.
Lili, que sempre me apóia nesses momentos, comentou que o que eu dissera era "muito interessante", e serviu-se de um pouco mais de batatas fritas.
Nós, intelectuais, somos muitos incompreendidos. A civilização brasileira ali ruindo sob o impacto do imperialismo cultural e as duas nem aí, preocupadas com omeletes e batatas fritas.
Afinal, onde fica Patópolis?
Voltei para minhas revistas decidido a decifrar a organização social e política de Patópolis, e a relação de seus habitantes com os estrangeiros.
Patópolis é uma grande metrópole, um dos maiores centros industriais e financeiros do mundo, sede dos impérios econômicos de Patinhas e Patacôncio (para não falar de outros trilionários locais). Porém, fora dos edifícios-sede das corporações, assemelha-se a uma cidade pequena, ou a um grande subúrbio, com habitantes de classe média, casas térreas, planas e de bom terreno, e vizinhos que se conhecem.
Embora o Mickey às vezes possa ser chamado para ajudar em assuntos de "segurança nacional", as autoridades do país estão ausentes e em nada interferem na vida da cidade. A justiça local conta com ciosos policiais e rápidos e eficientes juizes, e as maiores autoridades são o chefe de polícia e o prefeito, que no entanto, para desempenhar suas funções, necessitam do prestimoso auxílio dos cidadãos proeminentes. O coronel Cintra, para enfrentar a criminalidade, vale-se com freqüência do Mickey, do Superpateta ou, em último caso, do atrapalhado Morcego Vermelho. E que seria dos planos do prefeito se não pudesse valer-se da contribuição financeira (nem sempre espontânea) de Patinhas e Patacôncio, ou ainda do gênio inventivo do Pardal?
Há, em Patópolis, um democrático poder local, que o sociólogo Wright Mills chamaria de maior herança do liberalismo, convivendo e se sobrepondo à presença das grandes corporações. Sem dúvida, mais um mito americano, uma visão idílica dos Estados Unidos.
E a comparação desta concepção de organização política com a dos "estrangeiros" revela um preconceito frequente no senso comum norte-americano.
Os europeus em geral aparecem segundo seus estereótipos (o snob inglês, o artista francês etc.), um tanto excêntricos, mas de qualquer forma civilizados. Menos sorte têm os latino-americanos, africanos e asiáticos, em regra pobres, ingênuos e indolentes. Nestas exóticas regiões tem-se, por natureza, um forte e centralizado autoritarismo, marcando a organização regional. E exercido por reis, príncipes, presidentes, bondosos ou malévolos, e contra os quais se desenham com frequência as mais estranhas conspirações.
Mas aqui no Brasil não é assim mesmo? interveio Emengaard quando comuniquei meus raciocínios à família. As pessoas vão votando que nem besta. Veja o Jânio Quadro, por exemplo...
Eu me recuso a permitir que o senhor Jânio Quadros entre pelo meu texto adentro, e por isso, no melhor estilo Ernesto Geisel, fui cassando a palavra de Emengaard.
Você tem que concordar disse eu em que pelo menos essas estorietas estão ocupando um espaço que poderia ser utilizado na preservação dos valores nacionais.
Como assim? perguntou a trêfega serviçal.
Eu expliquei que se uma estória em quadrinhos reproduzia o universo cultural norte-americano, era possível, em vez de divulgá-la, trabalhar estorietas que preservassem nossos próprios padrões. Para isso continuei não bastava produzir no Brasil, pois muitas das estórias Disney são feitas aqui, e eu tenho sérias dúvidas de que outros produtos, como a Mônica, por exemplo, constituam um universo brasileiro.
Seria preciso eu estava ficando entusiasmado preocupar-se em recuperar o clima, a vida, a herança cultural do Brasil. Daí, falei que havia traços positivos no Zé Carioca (produzido pela mesma equipe Disney), e lembrei do velho Pererê, tal como Ziraldo o elaborou nos anos sessenta.
Para minha surpresa, Emengaard concordou comigo, e pude perceber o sorriso de orgulho da doce Lili, satisfeita com a demonstração de inteligência superior do marido.
Pensei que daí para a frente trabalharia sossegado, sem que a empregada me interrompesse a cada momento, lembrando que havia "coisas mais úteis para fazer", assim como mudar o bujão de gás ou trocar uma lâmpada, tarefas que Emengaard considera tipicamente masculinas.
Mas me enganei. Nem bem tinha recomeçado meus estudos e apareceu Emengaard, propondo que fôssemos vender para uma editora a estória de Raimundinho, um pequeno jegue que morava às margens do São Francisco, vizinho da feira do Caruaru, e perto do açude de Orós, aliás sua terra natal (de Emengaard, não do jegue).
Apesar de ela me ter proposto sociedade, tentei explicar a Emengaard que nós, intelectuais, apenas criticávamos e sugeríamos coisas. Não fazíamos.
Então retrucou ela com certa propriedade para que é que cês servem?
Isso, leitores, foi a gota dágua. Peguei algumas revistinhas e entreguei a Lili e Emengaard.
Leiam disse eu. Quero saber a opinião de vocês.
Na verdade, essa não era uma atitude tão desesperada como possa parecer. Eu estava achando que partindo de um universo tão completamente distinto, e se constituindo (tal como a televisão) numa atividade solitária, que não engendra nenhuma prática social, seria clara para mentes não perturbadas a distinção entre o real e o imaginário, de tal forma que os valores da estorieta permanecessem à parte, sem influência maior no cotidiano dos leitores.
A experiência foi, de certa forma, trágica, com Emengaard trancada no banheiro, atrasando o almoço por três dias consecutivos.
Afinal, sem se preocupar com o fato de o arroz ter queimado ligeiramente, ela apresentou suas conclusões:
Esse pato velho de cartola é patife sentenciou ela. Se é podre de rico só pode de ser patife.
Lili protestou imediatamente. Explico: minha doce esposa, apesar do meu miserável salário na USP, e de certas revistas não pagarem as colaborações que escrevo com esforço, ainda assim nutre sonhos de ascensão social, e tem a maior simpatia pelo tio Patinhas e a maneira como ele gere sua fortuna.
Um pato tão trabalhador e econômico!
Que nada! insistiu Emengaard. Ele véve é de explorar os patinho.
Imagine a doce Lili permanecia firme também , ele é que faz tudo, e ainda tem que dar emprego pra esse povo todo.
É isso. Dentro de um contexto cultural tipicamente norte-americano, o que se propõe aos leitores é um jogo, uma disputa amistosa entre personagens, como se fosse uma competição esportiva.
Disputa-se um prêmio, que pode ser um troféu, os favores de Minie ou Margarida, a moeda número um do Patinhas, ou simplesmente quem é mais hábil, mais inteligente, ou quem está com a razão.
Em muitos casos pode-se oferecer ao leitor um partido, um "mocinho", como o Mickey ao enfrentar João Bafo-de-Onça ou Patinhas em luta contra a maga Patalójika. Mas em outros, talvez na maioria, não é certo quem conseguirá a risada no último quadrinho e quem aparecerá em fúria, derrotado. E o leitor pode escolher, segundo o tipo que preferir. Emengaard seguramente torce pela vitória de Donald ou Peninha, enquanto minha doce Lili considera Patinhas seu herói.
Seja quem for o eventual vitorioso, a narrativa se esgota como um jogo, que pode ser prontamente esquecido.
Na divulgação das histórias Disney, na mitologia de Patópolis, perde-se um espaço cultural que poderia ser aproveitado de outro modo, mas o que ali se difunde é provavelmente inócuo, de fronteiras nítidas, ao qual cada um adere, identificando-se conforme seus próprios valores.
Não é uma garra afiada do imperialismo nem um produto educativo (uma vez que não é didático nem seus valores são fáceis de distinguir), mas apenas um jogo, onde o que mais se deve criticar é deixarmos de ocupar nosso próprio espaço.
Eu tenho uma coisa a dizer sobre esses patos anunciou definitivamente a Emengaard, encerrando a discussão diante da proximidade da novela das sete.
Fizemos todos um respeitoso silêncio, e a flor de Orós apresentou sua conclusão:
Pato que fala não é pato, é papagaio. E mais: pato só é bom, mesmo, assado.
E vocês querem saber de uma coisa? Dessa vez, eu até que concordo com a Emengaard.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Dez 1985