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Um dia na vida de um comunista

PERFIL

Um dia na vida de um comunista

Takao Amano

"Eu sou comunista. " De repente, esta frase — que, alguns anos atrás, só podia ser sussurrada em situações muito especiais — pode ser dita com a maior naturalidade. "PCB é legal" — diz o slogan descontraído nos broches dos militantes.

Sem dúvida, uma conquista política da maior importância. E é preciso não esquecer que, além da liberdade de expressão do pensamento e da liberdade de organização política, esta conquista toca também, muito, na questão das liberdades individuais.

O que mudou no cotidiano dos comunistas? Como é ser um comunista, à luz do dia?

Takao Amano, hoje com 38 anos, começou a militar no Partido Comunista Brasileiro em 1963, quando participava do movimento estudantil secundarista. Em entrevista a Edison Nunes, de LUA NOVA, ele fala da sua vivência na clandestinidade e do significado que a legalização do "Partidão" tem para ele, como pessoa.

EDISON — O que significou, em termos afetivos, fazer política na clandestinidade?

TAKAO — Como em todo período de repressão, é uma época em que você sufoca muito os sentimentos. Você é como um animal ferido que está sendo caçado, tem de estar constantemente alerta para ver de onde virá o bote. E, ao sufocar os sentimentos, você pode se transformar em uma outra pessoa... fria e por demais racional.

A repressão separou jovens namorados, noivos, recém-casados, amigos... O que cada um deles pôde sentir além de frustração e de uma tremenda angústia? Houve momentos, na clandestinidade, em que as pessoas não podiam se visitar ou, sequer, escrever uma carta porque tudo era vigiado. Mesmo um bilhete tinha de viajar por dezenas de mãos até chegar, de uma forma ou de outra, até a família, dizendo apenas algumas palavras — te amo, te quero, lembranças... E esse bilhetinho tinha uma importância tremenda, dizia que a pessoa estava viva.

EDISON — Nessa situação, você percebia a necessidade de lutar contra essa tendência a sufocar os sentimentos?

TAKAO — Não, só vim a refletir sobre essas coisas agora, com uma relativa abertura. Mesmo na Anistia, todos os que voltaram, voltaram com um pé atrás. A situação era muito incerta no país. Mesmo assim, a maioria apostou certo, embora acreditando que havia riscos — um atentado, atropelamento... um "acidente" qualquer no percurso. Isso nos deixava tensos e não conseguíamos ter uma vida normal porque essa questão pesava muito.

EDISON — Essa sensação de pé atrás durou até quando?

TAKAO — Até as eleições de 1982. Da anistia até aí foram três anos nos quais sofremos atentados, principalmente às bancas de jornais, companheiros foram perseguidos e jornais apreendidos. Tudo isso faz parte de um contexto no qual estávamos apostando na democracia.

Mas ao nível pessoal tem muitas coisas que não estão superadas. Acontecimentos que vejo como se ocorressem hoje. Coisas boas e más. Quando me apaixonei pela primeira vez foi por uma companheira, também militante na luta armada, e nós fazíamos "ponto" (encontros) escondidos para lá e para cá. Tínhamos uma relação meio truncada mas muito boa. Outras lembranças não são agradáveis — assassinatos, mortes e desaparecimento de companheiros...

Quando passo por uma rua me lembro — "foi aqui que fiz ponto com aquele companheiro". Lembro até o dia, hora... Acho que outros militantes devem sentir o mesmo. Ainda fico muito preso ao passado de clandestinidade, esse período anormal de nossa vida. Então bate a nostalgia, a saudade, a angústia. E isso tolhe a vida.

Outra angústia foi até o momento do Colégio Eleitoral. A frustração da derrota da batalha pelas diretas-já... Depois, o que iria acontecer? Nosso medo era de que o Maluf levasse, que a matemática dos votos pudesse não funcionar. Tínhamos fé, mas isso não adianta. Depois foi a doença de Tancredo, um outro sobressalto. A gente vive de sobressaltos. Mas este já era diferente...

Nada melhor que a liberdade!

EDISON — A vivência da legalidade transforma esse panorama?

TAKAO — Nada melhor do que podermos ser o que realmente somos, trabalhar como somos e nos apresentar como somos. Sem nenhuma repressão. Hoje ainda existe repressão, mas é muito mais camuflada e muitas vezes seletiva... Nada melhor que a liberdade!

Hoje você vê as pessoas falando o que não falavam. Antes eu sussurrava, hoje já falo mais alto. A clandestinidade cria certos hábitos, o de falar pouco, de só falar em certos códigos, falar sempre baixo, e nunca falar nomes de pessoas. Especialmente no telefone, que podia estar "grampeado", ou em lugares fechados, por causa de possíveis microfones escondidos... São medidas que vão dificultando sua vida.

Hoje podemos falar sem medo. Por isso muitos comunistas estão saindo da toca. Alguns com 25 anos de partido estão voltando com a legalidade. E voltam trazendo um batalhão de gente. Pessoas que ficaram afastadas por medo mas que não pararam de lutar por seu ideal. Estavam lá nos sindicatos, nos grupos de aposentados, com a garotada, e por isso, quando voltam, quase trazem um partido feito.

Pessoas que queremos ter no Partido podem agora ser convidadas muito abertamente: "Você quer entrar no PCB?". Ou então: "Quer conhecer o que é o comunismo?". E há espaço até para a brincadeira muito descontraída: "Vocês comem criancinha mesmo?". Podemos também vender abertamente nosso material: jornais, brochezinhos e panfletos.

Para nós, enquanto pessoas, isso é fabuloso. Falar o que se pensa. Ter essa liberdade de falar integralmente o que você pensa. E também, ouvir o outro dizer onde concorda, onde não concorda. É a liberdade de poder transmitir alguma coisa para outro ser humano, é o diálogo. Não ter essa possibilidade, ter de se esconder, só falar nos "momentos devidos", estraçalha o coração.

EDISON — Você diria, então, que uma das maiores violências da ditadura é impossibilitar que todos se assumam publicamente como são?

TAKAO — Isso mesmo. Qualquer repressão impede que você seja o que você é. A ditadura nos impedia de ter uma vida normal. Gostar de samba, futebol, namorar, gostar de rock ser comunista. Afinal, comunista é gente como todos, só que com uma ideologia própria. Isso é uma aspiração maior e uma conquista dos comunistas, sermos nós mesmos. Essa liberdade de ser gente e deixar de viver num gueto é o que hoje estamos adquirindo: a nossa cidadania. É esse o sentido.

Deixar de viver no gueto e ter uma vida normal

Se vamos ou não ser aceitos, é claro que é uma questão importante, mas já é secundária, e quem vai julgar é a vida, o povo. O importante é que podemos casar, ter filhos, uma vida normal.

EDISON — Abrandou o anticomunismo difuso na população? Como a população reage em face da legalidade do PCB?

TAKAO — Ainda existe a indústria do anticomunismo, com métodos que são mais sofisticados. A resistência existe e, para muitos, comunista ainda é coisa do diabo. Mas as coisas têm sido muito mais fáceis do que esperávamos. Temos condições de crescer com muita rapidez. O maior perigo já é o inchamento do partido. Vem tanta gente que não sabemos o que fazer com ela.

EDISON — Quando você se apresenta como comunista, a tendência das pessoas é respeitar essa opção?

TAKAO — Todos me conhecem como comunista. No período anterior as pessoas olhavam com simpatia, por causa da amizade. Mas não passava dessa simpatia, não se aproximavam muito. Era o medo de perder o emprego ou então ficar marcado. O medo nunca foi causado por nossas idéias, mas adotá-las e sofrer as conseqüências. Acho correto esse raciocínio: é a lei da sobrevivência. O povo não é aventureiro, não se envolve com coisas que vão impedi-lo de pagar o aluguel ou de trazer o leite das suas crianças.

Só quando a sociedade civil estiver mais organizada, fortalecida, o povo com mais consciência, é que o medo do povo não será tão facilmente manipulado.

EDISON — Você se referiu ao período de clandestinidade como uma fase anormal da vida. Mas faz quase quarenta anos que o Partido foi posto na ilegalidade após um pequeno período de atuação às claras. TAKAO — Pode anotar e grifar o que vou dizer: não foi fácil a batalha dentro do partido pela legalidade. Para companheiros que estão muito tempo na ilegalidade é uma dificuldade muito grande se adaptar aos novos tempos. Isso afetou mais agudamente as bases do partido. A direção já em 1974 percebeu que os novos tempos estavam chegando e já apontava para a democratização do país e logo, para a legalização do partido. Mesmo antes de 1982 começamos a reestruturar o partido com esse fim, ainda que discretamente. Fizemos vários encontros, amadurecendo uma concepção nesse sentido.

A luta interna foi dura. Uns diziam que a legalidade deveria ser buscada só com o fim da ditadura. Mas quando isso acontece? Não se pode dizer ainda que houve uma ruptura, mas que está havendo uma que não está completa.

Se fôssemos esperar os companheiros seríamos pegos de calças curtas: hoje o partido não seria legal e íamos permanecer no gueto, escondidos da sociedade.

EDISON — Muda o regime, mudam os comunistas. Surgem perspectivas novas de convivência no interior desta sociedade que sempre foi bastante conservadora?

TAKAO — Apostamos que, na medida em que a população participe mais, vamos todos poder dar um salto para civilizar nosso país, que viveu sempre num zigue-zague de crises. Na Nova República — onde está embutido um pouco mais de liberdade — procuramos dar nossa contribuição para que as aspirações do povo se concretizem.

Ninguém mais quer a volta ao passado e o povo não é revanchista. Mesmo os torturadores eram simples peças de uma engrenagem. Queremos desmontar a máquina, não atacar apenas as engrenagens.

Queremos todo o povo lutando, em cada setor social, por seus direitos. Aí está o que se chama felicidade. Ela se faz por etapas; depois de atingirmos um degrau de felicidade queremos também o outro e isso até, quem sabe, o infinito.

Nosso objetivo final é a libertação do ser humano de todo o cativeiro em que se encontra: econômico, social, político e de "cuca". Quando falamos em socialismo queremos dizer de uma outra sociedade em que as pessoas sejam livres do salário mínimo e da correria que é São Paulo, por exemplo. Por isso, se você perguntar se estou satisfeito, responderei que não. Quem está? Talvez os poderosos ou talvez nem eles que são os culpados por essa situação. Mas sabemos que as mudanças são lentas, é um processo, a gente muda e é mudado...

EDISON — Você falou dos torturadores. Quais são seus sentimentos em relação a esses homens? Acabou-se todo o ódio? TAKAO — Qual seria minha atitude se encontrasse uma pessoa que me torturou, na rua? Não sei dizer... Podem ser várias, desde indiferença até a vontade de querer dar uma porrada na cara dele.

No passado a lei era "olho por olho"

Acho que o que me controla em face dessas emoções negativas é saber que não adiantam nada. Posso até dar um tiro num cara desses, em dois, três... em mil. De que adianta? O que vale é desmontar a fábrica que constrói esses monstrinhos. Eles também são simples instrumentos.

Se eu não sentisse dessa forma, estaria voltando ao passado que vivenciei, onde a lei era "olho por olho". Nessa época a resposta à pergunta que me fez só poderia ser dar um tiro mesmo! E posso dizer que atiro relativamente bem. Isso ¡ria adiantar alguma coisa? Não iria com isso apenas estragar minha vida?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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