Acessibilidade / Reportar erro

A aventura de Zé do Pedal

A aventura de Zé do Pedal

Numa manhã de junho, chegou à redação de LUA NOVA uma carta vinda de Singapura, nada mais nada menos. A nossa Flora (que é um misto de secretária, embaixadora da paz, confidente e companheira de molecagem) acenava com o envelope no ar. "LUA NOVA do outro lado do mundo!"

Ninguém conseguiu parar na cadeira. A curiosidade era demais. E, de repente, o nome Singapura desapareceu do centro das atenções. Foi quando conhecemos a surpreendente história de Zé do Pedal.

A carta dizia:

"Senhor Editor

Sou mineiro e estou dando a volta ao mundo de bicicleta. Sou correspondente internacional da International Press Association, com sede em Hollywood, e atualmente estou escrevendo um livro autobiográfico: Vida Flutuante.

Há dois meses estive na Tailândia, onde tive a oportunidade de visitar a ponte do Rio Kwai e o campo de refugiados vietnamitas de Khao I Dang. (Fui o primeiro latino-americano a visitar esse campo.)

Gostaria de saber se vocês precisam de um correspondente internacional. Daqui sigo para a Indonésia, Japão, Hong Kong, China, Índia, África, Europa, Canadá, Estados Unidos, México (Copa 86), América Central, do Sul, até o Brasil, pretendendo chegar a Viçosa dia 26 de novembro de 86.

Espero que possamos trabalhar juntos.

Atenciosamente, José Geraldo de Souza Castro (Zé do Pedal)"

Claro que nós queríamos! Carta de lá, carta de cá, e aqui está a estréia do nosso mais novo correspondente: José Geraldo de Souza Castro, esta espécie de Arturo Bandini tropical, que prometeu à sua mãe estar de volta à cidade de Viçosa exatamente no dia 26 de novembro de 86.

São duas matérias que retraíam dois extremos desse autor-personagem apaixonado e aventureiro: sua tranqüila cidade natal, no interior de Minas, e sua visita ao campo de refugiados de Khao I Dang.

Vida flutuante

José Geraldo de Souza Castro

Guaraciaba é uma pequena cidade-vila no interior de Minas Gerais, rodeada de montes e banhada pelas nada tranqüilas águas do Rio Doce. Sua principal fonte de renda é a agricultura, somada à criação de gado bovino. Ainda é uma cidade tipicamente do interior e conserva intactas suas raízes culturais, políticas e religiosas. É urna cidade "onde todo mundo conhece todo mundo". Tem pouco mais de 5000 habitantes, ruas ainda calçadas com pedra "de mão" e a típica pracinha que, como toda cidade de interior que se preza, não poderia deixar de existir. Nessa pracinha, as manhãs são dos idosos que para ali se dirigem, sabendo que o Sol nasce para todos. À noite, são os jovens que ocupam o sempre aberto coração do jardim. Ali, entre amigos, namorados, noivos e amantes, a amizade colorida rola solta, explodindo no corpo a saga de amar, o prazer de viver intensamente as estrelas numa esplêndida noite de primavera.

Ali tem de tudo que um lugar precisa para ser chamado de cidade: prefeitura, cartório, delegacia de polícia, açougue, igreja, botecos de esquina, carros, bares, casas comerciais, "onde você compra de tudo, desde uma agulha até um avião", motos, bicicletas e algumas centenas de casas residenciais. Até jornal tem: "chega com alguns dias de atraso, mas chega". As charretes, carroças e carros-de-boi ainda vagam tranqüilamente pelas ruas desertas nas manhãs ensolaradas da cidade-vila. Ali, onde o povo não perdeu o seu amor ao próximo, o carinho, a humildade, a simplicidade interiorana e o respeito mútuo ainda existem.

Guaraciaba é uma comunidade unida e coesa. O povo é carinhoso e amável — você ainda pode ir tomar um cafezinho "na casa da comadre que mora na banda de lá do rio". Esta cidade, que para muitos japoneses é o fim do mundo (e nós que sempre achamos e dizemos que o Japão é que está no fim do mundo), mas que fica "logo ali, a uma legüinha a cavalo, a três tiros de espingarda e um de garrucha", você segue a beira-rio e quando o vento fizer a curva para a direita, você dobra à esquerda, sobe um morro e desce uma lombada, cruza duas pontes de madeira e outra de concreto armado "até os dentes" e chega bem no "centro da cidade". Aqui começa uma das mais (talvez) controvertidas vidas. Aqui começa uma vida de amor, carinho, desespero, batalha pela sobrevivência, com vitórias e derrotas, alegrias e tristezas. Aqui, onde o tempo parece ter parado para descansar, começa a vida de José Geraldo de Souza Castro:

EU

O "hospital" onde nasci era uma farmácia que às vezes era açougue, supermercado, ponto de jogo e, como estava numa esquina, nos fins de semana era "... boteco de esquina". Ali se aglomeravam os "jogadores profissionais" do campeonato regional de futebol de várzea, os campeões do jogo de palitinhos (popularmente chamado de porrinha), pescadores e outros craques mais para a "saudável pinguinha dominical" no boteco da esquina. Ali, naquele "rebu" todo, enquanto muitos discutiam o lance maravilhoso que deu a vitória ao Atlético Mineiro sobre o Cruzeiro (completamente desvalorizado por uma das maiores torcidas brasileiras: a atleticana) na noite anterior, alguns falavam do tamanho do peixe que "arrastou o barco por mais de cinco léguais rio acima antes de arrebentar a linha", outros discutiam porque "lhes estavam roubando na porrinha", ameaçando sair "no tapa" com todos os espectadores. E os técnicos reclamavam da "pior tabela que a Federação já fez em toda a sua existência", ameaçando inclusive parar no tapetão a "Super Liga do Campeonato Regional de Futebol de Várzea" (REFUVA). E até um bêbado que se recusava abertamente a dar a tradicional primeira "golada pro santo".

Ali, naquela discussão toda, onde ninguém falava o mesmo idioma, pois ninguém queria dar razão a ninguém, descobri a luz do Sol. Fazia um pouco de frio, mas, na verdade, eu não estava "nem aí", pois para mim era maravilhoso descobrir esse mundo novo (imaginem Pedro Álvares Cabral, a cara que ele iria "botar" quando soubesse que eu descobri um mundo novo, já com televisão em preto e branco, rádio, as músicas de Pixinguinha e Vicente Celestino rodando nas vitrolas e os carros rolando soltos na rua. Certamente ele iria morrer de inveja, mas isso não vem ao caso).

A cama onde nasci, bem, não era uma cama, mas sim uma velha maca do exército, que parecia ter saído dos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial (mas aí vem aquela pergunta, até hoje sem resposta: a Guerra foi Mundial, mas os campos de Guaraciaba não a viram, nem mesmo na época da Revolução de 30, portanto, de onde raios apareceu aquela maca???).

Khao I Dang

Campo para refugiados cambojanos

José Geraldo de Souza Castro

Situado na provincia de Prachimburi, a aproximadamente 30 km ao norte da cidade de Aranyaprathet, no Leste da Tailândia, e a 235 km a leste de Bangkok, capital do país, o campo de Khao I Dang foi aberto em 21 de novembro de 1979, quando o primeiro grupo de aproximadamente 5000 cambojanos foi trazido da fronteira pelo Exército Real Tailandês. Contingentes de refugiados continuaram chegando. Até o final de maio de 1980, a população alcançou a cifra de 130000 (dizem que, naquela época, Khao I Dang foi a maior "cidade" de cambojanos do mundo, quando as ruas de Phnon Penh ficaram semidesertas e a cidade esteve perto de não ter nenhum habitante).

O papel da UNHCR (Alta Comissão das Nações Unidas para Refugiados) em Khao I Dang é dar proteção e assistência, procurar soluções duradouras para os refugiados. A UNHCR trabalha em conjunto com o Supremo Comando do Governo Real Tailandês e a Task Force 80 (Força Tarefa 80) controlando a administração do campo em várias áreas de assistência. Os programas da UNHCR são realizados por pessoal voluntário.

Os refugiados construíram e mantêm por si mesmos cabanas de bambu, cobertas de sapé. Muitos plantam verduras para suplementar a ração básica fornecida pela UNHCR, que consiste em 500 gramas de arroz por adulto diariamente, como também verduras e outras comidas frescas, incluindo peixe e carne. Essa ração fornece ao adulto aproximadamente 2275 calorias por dia. Para as gestantes, mães amamentando e crianças com peso abaixo do padrão normal em relação à altura, existem programas de alimentação suplementar. Os chefes dos grupos de refugiados verificam diariamente as casas para assegurar-se de que a quantidade de ração está sendo bem distribuída.

Há pouco tempo, muitas das crianças em Khao I Dang receberam pouca ou nenhuma educação escolar antes de virem para a Tailândia. A educação foi enfatizada e agora existem cursos em língua cambojana para pré-primário, primário e ginasial (pelo menos 70% dos entrevistados mencionaram sua intenção de retornar ao Camboja depois que a situação melhorar). O projeto para o desenvolvimento de curriculum resultou na impressão de grande volume de livros no idioma cambojano para a educação básica. Também existe uma escola especial, usando novos métodos para a instrução de excepcionais. Cursos vocacionais são muito bem recebidos por eles. Para os que estão esperando relocalização, existem cursos de francês e inglês.

O fornecimento de água em Khao I Dang tem sido um problema constante desde o princípio. A procura de água no subsolo teve resultados praticamente negativos e, durante o ano de 1980, aproximadamente cem caminhões-cisterna transportavam a água diariamente por uma distância aproximada de 55 quilômetros.

Desde o final de 1982, logo após a construção de uma represa perto de Khao I Dang, com a ajuda bilateral dos japoneses, o fornecimento de água tem sido facilitada e conseqüentemente barateado o seu custo operacional. Assim os refugiados bebem água dos poços artesianos e usam a água da represa para outras necessidades.

Durante 1984, uma média de 1750 cambojanos saíram mensalmente da Tailândia para relocalização em terceiros países. A UNHCR providencia todos os documentos para que os refugiados encontrem soluções duráveis, incluindo restabelecimento ou repatriação voluntária quando necessária. Os grupos responsáveis pela seleção de refugiados para os EUA, Austrália, França, Nova Zelândia, Canadá e Japão têm como critério básico, por exemplo, a existência de parentes nesses países, haver trabalhado em empresas que tivessem tido laços com eles, ou por alguma razão médica e humanitária. Quando algum país não envia mais equipes de seleção à Tailândia para entrevistar os refugiados para relocalização, eles continuam sendo admitidos tendo como princípio laços familiares. As afirmações relativas são fornecidas pela UNHCR, juntamente corn toda a documentação pessoal.

Em janeiro de 1985, o governo real da Tailândia decidiu converter quatro seções de Khao I Dang num sítio para aproximadamente 60000 cambojanos que estavam antes na orla da fronteira de Nong Samet e Red Hill. A UNBRO (Operação de Socorro de Fronteiras das Nações Unidas) providencia assistência aos refugiados nesse novo local, denominado Bang Poo.

O total de refugiados indochineses nos campos, assistidos pela UNHCR na Tailândia desde o final de 1984, foi de 128000 pessoas: 42000 cambojanos (em Khao I Dang e Phanat Nikhon); 54000 das tribos de montanha do Laos; e 5000 vietnamitas (a maioria desses chegou à Tailândia de barco).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br