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GM: a guerra de classes

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GM: a guerra de classes

Paul Singer

Economista e pesquisador do CEBRAP

Na grande vaga grevista, que teve lugar em março e abril últimos, afetando sobretudo os metalúrgicos paulistas, o confronto de classes assumiu níveis inusitados de violência, que se tornaram particularmente dramáticos no caso da fábrica da General Motors, em São José dos Campos. Os fatos, amplamente divulgados pela imprensa, consistiram essencialmente na ocupação do prédio pelos grevistas, que impediram os mensalistas (não grevistas) de deixar o edifício, reunindo-os a partir de certo momento no pátio da empresa e os obrigando a participar da assembléia que ali se realizava, além de expô-los aos suplícios (chuva, fome) a que os próprios ocupantes da GM estavam sujeitos.

As versões do que ocorreu durante as cerca de 50 horas em que os mensalistas estiveram "seqüestrados" variam bastante, dependendo naturalmente de que lado se originam. Os mensalistas, que incluem as chefias da empresa, falam em humilhações, agressões morais e físicas e ameaças de morte. Os sindicalistas negam tudo isso, atribuindo toda violência à Polícia Militar e à "guarda da empresa fortemente armada e a jagunços contratados".

Do que não há dúvida é que houve uma escalada de violência, de lado a lado, que, com toda probabilidade, começou do lado patronal, sobretudo sob a forma de demissões de sindicalistas, inclusive de diretores do sindicato, que gozam legalmente de estabilidade no emprego, pela duração de seu mandato.

As demissões indignaram os grevistas, que resolveram ocupar a fábrica. O cerco policial, estabelecido em resposta à ocupação, levou os trabalhadores a tentarem utilizar os chefes e demais empregados burocráticos como reféns, para evitar a invasão do prédio. Tudo leva a crer que, se não prevalece o bom senso no último momento, uma tragédia poderia ter ocorrido.

Greves nunca são inteiramente pacíficas, porque subvertem a hierarquia de mando, que passa do patronato aos trabalhadores. Estes, ao se recusar ao trabalho, assumem o comando da empresa: eles se responsabilizam pela manutenção do equipamento e dos serviços vitais, seja ao público (no caso de greves de pessoal de saúde, por exemplo), seja ao capital (operação de fornos, por exemplo, que não podem ser desligados), seja aos próprios grevistas (cozinha, refeitório, ambulatório etc.)

Essa inversão de autoridade nunca é bem aceita pelo patronato, que teme não recuperá-la por inteiro, depois de cessada a greve. Depois de uma greve vitoriosa, não é difícil que se estabeleça na empresa uma espécie de dualidade de poder, em virtude da qual a autoridade do capital pode ser, a qualquer momento, contestada pela liderança sindical presente na própria empresa, sob a forma de "operação tartaruga", greves por seção e outras formas de insubordinação.

O caso da GM de São José dos Campos revela uma luta de morte entre a grande burguesia industrial e o novo tipo de sindicalismo, que surgiu nos últimos anos, no Brasil, conhecido como "autêntico" ou "combativo". A burguesia, ao se sentir menos amparada pelo Estado, em virtude do fim do regime militar, resolveu destruir, de qualquer modo, um movimento sindical que lhe escapa do controle.

Para tanto, tratou de retirar concessões feitas anteriormente, como a trimestralidade, mostrando-se intransigente ao extremo nas negociações; e decidiu usar extensamente a demissão e as listas negras, para afastar das empresas todo e qualquer trabalhador que considere "radical", passando inclusive por cima dos direitos legais de dirigentes sindicais e membros das CIPA e dos compromissos em relação aos integrantes das Comissões de Fábricas. Estas táticas, ao que parece, foram adotadas não apenas pela GM, mas pela maioria das grandes empresas do ABC e de outros centros industriais de São Paulo.

Os trabalhadores da GM acabaram caindo na armadilha patronal, ao se voltar contra os mensalistas, muitos dos quais ocupam cargos de chefia. Provocados em excesso, deixaram-se dominar pela exaltação e não mediram as conseqüências de seus atos. Com isso, legitimaram a interferência policial e se indispuseram com a opinião pública.

A estratégia antigreve do grande capital (as empresas médias e pequenas em geral acabaram concluindo acordos em separado com os sindicatos) não se limita ao âmbito das empresas, mas se desenvolve também na cena política. Nesta, a tática principal é dividir os sindicalistas entre "radicais" e "moderados", atribuindo àqueles propósitos políticos inconfessados.

De acordo com as versões, que o patronato veicula através da grande imprensa conservadora, os sindicatos ligados à CUT são dominados por grupelhos infiltrados, que integram partidos clandestinos de extrema esquerda. Tais grupelhos não respeitariam as leis em vigor e lançariam mão da violência, com o fito único de preparar a tomada revolucionária do poder.

A estratégia do grande capital foi até agora magistralmente enfrentada pelo sindicalismo "combativo", que — com a notável exceção do caso da GM de São José dos Campos — não se deixou provocar, mantendo a cabeça fria em face das demissões, ameaças e agressões. Em várias grandes empresas, os sindicalistas "combativos" conseguiram atrair os mensalistas para o seu lado, unificando todos os assalariados contra o capital.

A grande lição a tirar disso tudo é que o movimento sindical como um todo tem de se munir de mais armas legais para poder praticar a greve, sem pôr em risco todo um movimento, com reações violentas despropositadas. A regulamentação do exercício da greve e da estabilidade no emprego, em termos mais favoráveis aos trabalhadores, são algumas dessas armas.

Como o "entulho" legal, herdado do regime militar, o sindicalismo "autêntico" está exposto a golpes que podem aniquilar sua excelente organização nas fábricas. A luta de morte que ele sofre, por parte do grande capital, está longe de terminada. É óbvio que para resistir à ofensiva patronal, o sindicalismo "autêntico" terá de reforçar a autodisciplina de seus quadros e impedir que caiam em provocações, como ocorreu na GM de São José dos Campos.

O relacionamento com as chefias intermediárias e os mensalistas, em geral, é um dos aspectos centrais desta autodisciplina, que requer a superação da natural hostilidade dos operários contra elementos que se aproveitam de suas lutas — qualquer conquista beneficia por igual todos os assalariados — sem correr os riscos e suportar os ônus que delas decorrem.

Mas, o caso da GM representa também um alerta para o conjunto do movimento operário e popular. Ele mostra como as instituições legais, que regem as relações entre classes no Brasil, podem ser manipuladas pelo grande capital, mesmo quando o Executivo não tenciona reprimir as greves.

Casos como o da GM podem-se repetir e terminar em derramamento de sangue, contribuindo para difundir a histeria antigreve, que já se está formando. Está na hora de se mobilizarem as forças democráticas do país para obter, antes mesmo da Constituinte, a alteração das leis de greve e de estabilidade no emprego. É preciso pôr um "basta" à guerra que o grande capital move contra o que há de melhor em nosso sindicalismo, e é preciso fazê-lo sobretudo no plano político-legal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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