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Liberdade, liberdades

PENSANDO O BRASIL

Liberdade, liberdades

Renato Janine Ribeiro

Professor de Filosofia da USP

É muito freqüente ouvir-se falar, nos meios de esquerda, na existência de uma dívida social para com as populações carentes, que têm necessidades gritantes de comida, saúde, moradia e transporte. Está longe de nós a intenção de negar a realidade da miséria que dói a tantos brasileiros; mas achamos importante fuçar um pouco nessas palavras, para ver se não trazem implícito um certo paternalismo no trato dos "carentes".

Outra palavra interessante é "menor", que substituiu criança e adolescente. "Criança" e "adolescente" têm um peso afetivo, até afetuoso, enquanto "menor" é uma categoria jurídica, que define a pessoa pela privação — é quem ainda não é cidadão.

Quer dizer, então, que há populações que são definidas, antes de mais nada, por serem carentes? Ou seja, pelo que não têm ou não são? Os grupos sociais mais pobres são assim compreendidos pelo que lhes falta, por aquelas necessidades que têm, por aquilo de que precisam — e não pelo que fazem ou são: a sua identidade é o pouco ou o vazio, éfaltar-lhes muito, o essencial. Será então que há muita diferença entre essas palavras e o tradicional termo "classes menos favorecidas", que faz a diferença de classes, entre o rico e o pobre, resultar de um favor (de Deus ou do destino) ou da sorte (daí o sinônimo "classes desafortunadas")? O que também faz lembrar o uso de se designar a pessoa de classe média como "remediada" — o que leva a pensar que a pobreza seria uma doença.

Se prestarmos atenção a essas palavras, que triste quadro: a pobreza é doença, é desfavor, é desgraça, é falta, é necessidade. "Populações carentes" é um termo mais seco, menos comprometido ideologicamente com a idéia de um Deus hierarquizando os homens em ricos ("favorecidos") e pobres — mas conserva a crença em que o "carente" se define por não ter algo. Será desejável pensar-se assim? Essa idéia das carências e das necessidades pode acarretar a redução da política social a uma política de assistência social (vejam-se os nomes de alguns órgãos oficiais que lidam com "carentes": Secretarias de Bem-Estar Social, de Promoção Social etc.). Ou seja, acaba-se supondo que o "carente" é quem precisa de um algo determinado que define a humanidade dos homens. Um conteúdo externo ao que têm, ao que são, ao que fazem os pobres acaba definindo-os, dando-lhes identidade, norteando o que eles têm que receber ou empreender.

A ênfase nas necessidades deixa de lado a questão da liberdade. Por quê? Talvez seja interessante nos reportarmos á Itália de alguns anos atrás. O grande partido conservador italiano, a Democracia Cristã, tem no seu escudo a palavra latina libertae: alega, desde os anos de Guerra Fria, defender "a liberdade" contra as ameaças do comunismo. Nos anos 70, porém, o outro grande partido do país, o comunista, centralizou a sua propaganda na necessidade de defender e ampliar "as liberdades" (no plural): a de morar, a de exprimir-se, a de estudar etc.

Igual ao direito de cidadania

Essa diferença já mostra a riqueza, a complexidade do termo "liberdade". Existe uma noção liberal de liberdade, associada ao desenvolvimento do Estado moderno, burguês e democrático: seria igual ao direito de cidadania. Consiste em votar, e ato cívico, solene, o cidadão constituiu poderes legislativo e executivo como seus representantes, para agirem cm seu nome. Os demais direitos humanos vinculan-se todos a esse direito primeiro e principal: existe liberdade partidária para que haja escolha, (isto é, eleição) entre as diversas alternativas políticas; há liberdade de expressão para que a escolha seja livre e esclarecida; haverá liberdade em presarial (o mesmo que "livre iniciativa", ou propriedade privada dos meios de produção) para os indivíduos se protegerem do excessivo poder de um Estado que fosse dono de tudo... Tudo se justifica pelo voto e a cidadania. O fundamento dessa concepção foi exposto por Benjamin Constant, político suíço e francês, que explicou que a liberdade moderna consiste na liberdade do indivíduo diante do Estado.

A crítica a essa concepção da liberdade foi feita pelo marxismo, a partir de uma análise econômica da vida social. Marx mostrou que o direito à propriedade privada, sob o capitalismo, pertence a bem poucos — por que, se as fábricas e fazendas que empregam multidões de pessoas devem ter um dono só, que direito de propriedade terão os empregados? Some-se a isso um dado que constatamos em nossa experiência, de que a riqueza determina em boa parte as escolhas dos homens; assim, a liberdade formal de votar reduz-se, concretamente, a pouca coisa. O "ato solene" dos liberais vira uma ilusão e até, na expressão de Lênin, uma cretinice.

O que o marxismo introduziu, portanto, foi uma teoria sociológica da liberdade, provando que são poucos os beneficiários desta sob o regime econômico capitalista, no Estado democrático moderno. É com base nessa teoria que os comunistas italianos, para voltar a eles, falam em "liberdades". O termo "liberdade", tornando-se plural, deixa de referir-se apenas a um direito formal, para ficar mais próximo dos fatos: afasta-se do plano simplesmente jurídico ou constitucional, para de certa forma sociologizar-se. Ao liberal bastará inscrever na Constituição o direito de todos à cultura, por exemplo: mas, para o homem de esquerda, será preciso que esse direito se coverta em liberdade, que seja um direito real. Real vem do latim res, "coisa": um direito real faria então a ligação entre as leis e o que acontece na sociedade.

Barreiras aos direitos humanos

É isso o que permite nos últimos anos, um trabalho intelectual extremamente produtivo, que vem sendo feito no sentido de descobrir que barreiras detêm as pessoas nos seus direitos humanos. O que é o direito à cultura sem a alfabetização, e o que significa alfabetizar quem está no limite da inanição? É essa, basicamente, a crítica que os homens de esquerda têm a fazer ao liberalismo: de que vale o voto sem as suas condições? E tais condições são, em grande parte, econômicas. Pertencem ao "reino da necessidade", ao espaço que não resulta de minha liberdade porém se governa muitas vezes sem eu ter consciência nenhuma disso.

Mas há um risco sério na defesa das "liberdades". É esquecer que elas não são um elenco quantificável. Não há sentido em fazer uma lista das liberdades, e discutir que nota damos a cada país em cada uma delas: em dizer, por exemplo, que no Brasil há tanto por cento de liberdade social, um tanto mais de liberdade partidária, uma boa liberdade de produção cultural e muito pouca de acesso à cultura... É útil fazer essas distinções, mas, bem ou mal, a liberdade política tende a prevalecer e concentrar as demais, catalisá-las. Sem ser a única liberdade, é de certa forma a chave das outras. É a que distinguirá um acesso à cultura conquistado de um acesso à cultura fornecido burocraticamente. "As liberdades não se pedem, tomam-se", diziam, com razão, os tupamaros uruguaios.

Vale ainda notar que a referência às "liberdades", como elenco qualificativo, serve para absolver as ditaduras da opressão política que realizam. Existe, nos Estados Unidos, uma instituição particular que dá notas aos países do mundo pela liberdade política, econômica e cultural neles vigente, e consegue a façanha de avaliar a África do Sul acima da Nicarágua. Existe por outro lado, na esquerda, uma tendência a desculpar a falta de liberdade política, partidária e de expressão em Cuba, porque lá não se sofre a fome ou a miséria que temos no Brasil. Ora, por paradoxal que isso pareça, o que assim se faz com um tal uso frouxo da "liberdade", no plural, é despolitizá-la: retirar o seu carnê político, para reduzi-la a uma estatística de realizações no plano social e econômico. Mal comparando, lembra as tabelas que os governos apresentam na época de eleições, contando os quilômetros de canalização e de asfalto, os carros de polícia — para contestar a experiência pessoal de cada eleitor de que as coisas não vão bem, mediante os dados sérios de uma ciência (a economia) que, lidando com o quase invisível, nega ao cidadão comum capacidade para julgar os assuntos políticos.

Esse é o risco das "liberdades" quando, sociologizadas, perdem a sua força política; e perdem essa força ao se reduzirem à simples satisfação de necessidades, ao justificarem uma política paternalista de assistência "aos carentes". Seria o caso de tentarmos uma síntese das duas concepções, a da liberdade política e a das liberdades sociais, e de restituirmos a estas últimas a sua intensidade política. Política, e nãoapenas partidária: porque o partido é apenas uma forma de organização para intervir na sociedade, quando podemos sugerir que toda ação, que pretenda ter efeitos na vida social, é política. Será política a ação dos ecologistas, mesmo que não se possa reduzir às divisões esquerda/direita, empregado/patrão. Será uma maneira de recuperar os sentidos de liberdade — dessa difícil tentativa de o homem conhecer a si mesmo, aceitar-se e transformar-se sem ter um conteúdo a preencher ou um modelo a repetir.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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