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Com os partidos, tudo bem no ano que vem

DEBATE

Com os partidos, tudo bem no ano que vem

Definitivamente os cientistas sociais são maus futurólogos.

Por quantas vezes têm declarado a morte de corpos que ressuscitam ou o vigor de embriões que abortam?

Por isso LUA NOVA pediu a Maria Victória Benevides, Hélio Bicudo, Octaviano de Fiori e Francisco de Oliveira que deixassem a bola de cristal em casa e procurassem, nos signos da vida partidária de nosso país, seus principais impasses. Que sistema partidário pode emergir da transição política que vivemos?

A única certeza é de que o futuro depende menos da previsão da ciência do que de nossas próprias ações. Afinal política é "cosa a fare". O mediador do debate foi José Álvaro Moisés, editor de LUA NOVA.

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS — LUA NOVA pensou em realizar um debate sobre a questão partidária, em particular sobre o sistema partidário que tende a resultar da atual transição. Todos nós sabemos das imensas dificuldades que, nesse processo de transição, se têm colocado para a consolidação de um regime de partidos, no Brasil. Em especial, para um regime de partidos capaz de enfrentar os desafios da construção da democracia. A intenção do debate é menos se voltar para os fatos imediatos da conjuntura e mais fazer um esforço de reflexão sobre a experiência recente dos partidos políticos e de que forma essa experiência recoloca na ordem do dia questões clássicas que a literatura sobre o assunto tratou.

Para abrir o debate, pensamos em tomar as questões que se articulam com a reforma partidária de 1979, especialmente as propostas de constituição de partidos de massa. Nesse sentido, gostaríamos de pedir à Maria Victória, ao Chico de Oliveira, ao Hélio e ao Octaviano um balanço retrospectivo vinculado com o papel que os partidos estão jogando desde a reforma de 79. Em particular, gostaríamos de saber a avaliação de vocês sobre o tema clássico da ausência de consistência ideológica dos partidos, da desfuncionalidade da sua representação em relação aos grupos sociais, sua incapacidade para darem conta das classes sociais modernas e da suposta inconsistência programática.

Todos nós sabemos que, embora os partidos tenham o monopólio formal da representação da sociedade, freqüentemente eles são sobrepassados pelas corporações que, muitas vezes, se representam diretamente no interior do Estado. Aqui, penso no papel que instituições como a Igreja, os sindicatos e as Forças Armadas têm jogado no debate das grandes questões nacionais. Muitas vezes, sem passar pelos partidos, essas instituições pressionam diretamente o Estado numa ou noutra direção. Podemos falar, propriamente, da constituição de partidos de massa nesse contexto ou, no fundo, essas propostas são inadequadas para a sociedade brasileira? Por último, estamos diante da constituição de uma cultura democrática, no Brasil? Falar em cultura política é o mesmo que falar na constituição de instituições democráticas, na constituição de uma linguagem política, na constituição de sujeitos para quem os valores da democracia são temas centrais da sua ação. Desde logo, os valores da democracia são relativos à capacidade que têm os grupos sociais para conviver com a desigualdade, a diferença, que são próprias da sociedade contemporânea. Em que medida os partidos dão substrato ao desenvolvimento dessa cultura? Seriam essas as questões iniciais que gostaríamos de propor em nome de LUA NOVA.

VICTÓRIA — Essa pergunta sobre os partidos de 79 para cá, sobre o que permanece das velhasimagens ou o que há de novo, me faz lembrar uma pesquisa realizada no ano passado com deputados federais sobre as suas origens, a sua vinculação com antigas siglas partidárias. Mais de 60% dos atuais deputados federais tiveram alguma ligação direta com os partidos do pré-64. Chegavam a se identificar claramente: "eu sou UDN"; "sou adhemarista"; "sou janista"...

Mas não se trata apenas de uma identidade com as velhas siglas, mas com o que significavam. Os partidos das classes dominantes, como se dizia então, eram muito parecidos. Em relação a eles poderíamos usar a expressão que hoje é tão combatida: eram "farinha do mesmo saco". A UDN e o PSD uniram-se na Arena e depois no PDS, demonstrando que tinham posições muito semelhantes do ponto de vista das políticas de interesses reais, como a reforma agrária, a lei de greve, a política econômica e salarial, a participação popular e a regulamentação sindical.

Isso significa que permanece muito forte a idéia de que participar ativamente de um partido, se candidatar a postos eletivos, ao Executivo e, de certa maneira, representar setores da sociedade é uma tarefa profissional reservada para a elite mesmo. Para mim, isso ficou claríssimo quando fiz meu depoimento na Comissão Mista do Congresso Nacional que examinava a convocação da Assembléia Constituinte. A maioria enfatizou que a política é para a elite, de onde devem sair os deputados e senadores, e que a política é feita com a tradição, o costume, com as famílias e os nomes das famílias. Um deputado, por exemplo, chegou a me perguntar se "eu acreditava mesmo em participação popular". E acrescentou: "fui eleito em Minas Gerais, várias vezes, porque todos sabem quem é o meu pai, meu avô, meu bisavô... É isso o que dá minha legitimidade e representatividade..."

OCTAVIANO DE FIORI - Tudo isto é muito patrimonial, não é?

VICTÓRIA — É patrimonial no sentido mais concreto da palavra: de sangue, de nome, de clã! E outro senador — que foi dos autênticos do MDB e depois foi para o PDS, ficou amigo do peito do Figueiredo e, hoje, é PFL — me disse: "a senhora se esquece do peso da tradição. No Brasil, realmente, é o latifúndio, são as grandes fortunas, são os homens letrados, os membros da elite que têm que fazer política". Inclusive, a explicação que dão para investir tanto nas campanhas bilionárias é que é uma profissão, ao invés de uma passagem, onde eventualmente eles vão representar interesses. A noção de que política pode ser realmente ampliada, no sentido da cidadania extensa e da participação popular, é uma utopia nesse nível de representação na Câmara e Senado...

BICUDO — Como é que você situa esses políticos? Primeiro você falou de um político de Minas, depois, quando falou de outros políticos, eu tive a impressão de que não eram políticos do Norte, Nordeste. Esse raciocínio também cabe para o Sul, das famílias, da tradição?

DE FIORI — A família Barros, do Adhemar, é que vai mal, não é?

VICTÓRIA — A família Barros podia dormir sem essa, não é? Na Comissão Mista predominavam políticos de Minas, do Norte e do Nordeste. Os dois mais progressistas eram do Rio Grande do Sul, um do PDT e outro do PMDB. Um deles, aliás, disse que está se retirando do Congresso, decepcionado.

Hoje, quando se fala em partido novo, de massas, mas ao mesmo tempo "um partido moderno", porque è uma frente, a primeira coisa que eu pergunto é: Como conciliar esta visão, que me parece ser majoritária, com um partido aberto à participação? O que significa este "partido frente", "partido ônibus", como novidade, se antigamente também era assim? (Só que, de uma certa camada social para cima.) Era ônibus e frente porque pegava vários interesses e posições... A própria UDN não se chamava partido, mas era uma união de correntes estaduais de opinião. O PSD reunia proprietários de terra, burguesia comercial, profissionais liberais e muitos militares. Até o PTB, que era um partido mais popular, também reunia lideranças sindicais, mas, entre os que elegia, tinha tantos banqueiros e latifundiários quanto o PSD e a UDN.

MOISÉS — Nessa avaliação, você se refere mais aos setores dirigentes de alguns partidos. Em particular, você mencionou o PFL, o PMDB e, certamente, o PDS. No caso específico do PMDB, não poderíamos falar em um partido que está no Congresso e de outro que está fora da política institucional?

VICTÓRIA — Neste ponto há muito de novo. No pré-64, praticamente não havia atividade partidária na entressafra eleitorial. Hoje, é comum encontrarmos diretórios funcionando, com atividades partidárias explícitas, ciclos de estudos, trabalhos em movimentos populares e sociais. No passado, apenas o PTB tinha atividades regulares, menos como partido e mais como movimento trabalhista, juntamente com todos os seus aliados: os comunistas, os adhemarístas e os janistas.

FRANCISCO DE OLIVEIRA — Há na verdade, como disse Maria Victória, uma identificação muito grande da classe política com os partidos do pré-64. Entretanto, parece-me que isso não é suficiente para definir os atuais partidos. No período autoritário, o regime congelou a sua direita no partido do governo, mas que não estava no governo, e liberou a sua esquerda, no sentido de que quem não estava no seu partido era a oposição. Isso tem conseqüências para a formação posterior dos partidos. O PMDB é um partido que teve a sua mídia feita pelo autoritarismo. Sua história vem, eu diria, de uma lógica da resistência ao regime autoritário.

Golbery, que todo mundo diz que foi o autor da reforma partidária de 79, percebia que aquela situação era extremamente artificial e, então, tentou abrir o leque partidário para comportar aquilo que, na concepção dele, seria expressão das diversas forças que existem no país. Isso não contando com o cavalo azarão, que corria em raia, própria, que era o PT. O capitalismo tinha vencido a batalha dos desafios impostos até 64, e a sociedade tinha algo que conservar, pois houvera enorme expansão capitalista, muita gente enriqueceu.

A reforma trataria, apenas, de dividir aquilo que tendia a um comportamento eleitoral plebiscitário, para que a tendência conservadora emergisse de várias partes. Então, houve a mudança da lógica da resistência para a lógica da representação, que os partidos não são completamente capazes de preencher, não o são em suas cúpulas, onde se aloja a classe política.

A segunda coisa nova é que, ao contrário do pré-64, todos os partidos procuram construir a sua representatividade a partir de bases urbanas. É claro que o PT procura incorporar certa base rural e o PC do B, quando estava na clandestinidade, tinha um ativismo maior nesse setor. Os outros partidos quase não têm a preocupação de incorporar a base rural, tanto do lado dominante quanto do lado dominado.

O terceiro ponto a anotar é que há, realmente, uma diferenciação social que precariamente penetra nos partidos. As estruturas rígidas dos partidos tentam impedir que essa diferenciação social penetre completamente e transforme os partidos, levando, finalmente, a uma representatividade que possa traduzir uma estrutura social em estrutura política. Ao meu ver, existem pelo menos dois partidos que encaram essa diferenciação.

O PMDB é o partido que incorpora a centralidade das "classes médias" na sociedade brasileira de hoje e o PT procura representar mais nitidamente o papel da classe operária. Nos demais partidos essa relação é mais obscura, o que se deve ao papel jogado pela grande burguesia no processo político.

A lógica da resistência reservava aos partidos, apenas, o papel de caixa de repercussão das insatisfações da oposição, das demandas populares, mas mantinha escassa capacidade de intervir no Estado. Toda a iniciativa legislativa, na verdade, tinha origem no Executivo. À medida que os partidos são obrigados a transpor essa diferenciação social e passar para a lógica da representação, desenvolvem a virtualidade de constituirem-se num canal privilegiado nas relações sociedade/Estado, adquirindo, portanto, a capacidade de "curto-circuitar" os acessos diretos dos grupos econômicos ao Estado. A burguesia joga claramente no sentido de impedir a lógica da representação, porque a massa de interesses envolvidos é enorme. O estilo de condução da política econômica, certamente, pode ser outro se os partidos tiverem real capacidade de intervir nessa relação.

MOISÉS — Num certo sentido, você elucida por que a burguesia tende a bloquear a passagem de uma lógica para outra, o que, segundo a minha preocupação, pode acabar reforçando a corporativização da política. Se isso é claro para a burguesia, por que deveria ser assim com os trabalhadores? Na minha experiência no PT, vi operários que se transformaram em grandes líderes políticos e, na abertura, quando os sindicatos recuperaram seu papel, tiveram a tentação de voltar ao mundo sindical, abandonando a política. Ficam na verdade com um pé em uma canoa e outro na outra. Eu entendo que a burguesia não queira fazer a passagem de que fala o Chico, mas por que os trabalhadores não a fazem?

BICUDO — Até dentro da Direção Nacional do PT temos líderes que dizem que se sentiam melhor nos sindicatos do que no partido.

VICTÓRIA — A análise" do Chico aponta que partidos políticos modernos requerem realmente um grau de desenvolvimento político que nunca houve no Brasil. Nosso espaço de conscientização política é de resistência e é, digamos, mais fácil, até do ponto de vista epidérmico, a indignação às condições tenebrosas de vida, à ditadura, ao arrocho. Um passo qualitativo superior é acreditar na representação, o que exige conscientização política, escolha e organização.

FRANCISCO — Vou exagerar o argumento e arriscar uma simetria entre a participação dos trabalhadores e os "curto-circuitos" da burguesia. A maioria dos trabalhadores tem a sensação de que os problemas só podem ser resolvidos numa relação direta: fazem comitivas, acampam na frente dos gabinetes das autoridades e dai sai um calçamento ou uma extensão de luz.

OCTAVIANO — Isso leva à não institucionalização da prática política...

FRANCISCO — Sim, porque se trata de uma forma de relação direta, desses setores sociais, com o poder. Parte do enigma está aí: mesmo nos setores mais combativos da classe operária essa experiência existe. Lula negociava diretamente com o Ministro do Trabalho, quando, institucionalmente, não podia negociar dessa forma. Isso não odesmerece pessoalmente de forma alguma já que, na realidade, não existiam outros canais eficazes.

BICUDO — A análise de Maria Victória mostra que não temos no Brasil, de ontem e de hoje, partidos políticos e ideológicos com expressão. E isso porque os mecanismos de representação são muito falhos. Não temos formas de controle do princípio da representatividade.

Mas essa situação pode mudar. Nesses anos todos, o Brasil procurou se modernizar; um maior desenvolvimento econômico no Sul permite que uma nova faixa de pessoas venha a participar de atividades partidárias. Isso fica muito claro se comparamos o perfil dos constituintes paulistas de 46, recrutados entre o que havia de mais expressivo nas suas elites intelectuais, e os que representarão o Estado em 86. Eu não acredito que estarão representadas aí apenas as elites, desmistificando um pouquinho a idéia de que a política é apenas para poucos. Assim, o desenvolvimento pode levar a nova expressão partidária e, através desta, a nova maneira de se fazer representar deputados e senadores no Congresso Nacional.

Mas, ainda assim, vejo dificuldades ao restabelecimento do princípio da representatividade do Congresso Nacional calcada na população de cada Estado, o que contribuiria bastante para a consolidação de uma nova expressão partidária mais representativa. O atual Congresso distorce este princípio, já que os Estados menos populosos têm proporcionalmente mais deputados. O voto de um nordestino vale muitos votos paulistas. Com um Congresso Constituinte temos poucas chances de mudar isso, já que esses deputados não têm interesse em alterar as regras que facilitaram suas eleições, dando um poder enorme aos políticos mais atrasados do Norte e Nordeste. Só uma Assembléia Constituinte convocada apenas para esse fim poderia acabar com esta história. Outro dia, ouvi no rádio Herbert Levy afirmando que os políticos do PFL não estavam dispostos a votar na Constituinte proposta pelo Sarney porque não haviam conseguido os postos que desejavam. Isso é chantagem, não é? Mas é exatamente isso o que eles procuram preservar: seus cargos e postos.

O quadro político-partidário brasileiro gira em torno destas diferenças entre Norte e Sul. Enquanto o Sul caminha num sentido muito mais popular, com a presença de sindicatos muito mais agressivos, que às vezes saem na frente dos partidos políticos na reivindicação da liberdade pública, isto não existe no Norte. E quando surgem, como os sindicatos rurais, são violentamente reprimidos pelo político tradicional que habita no Nordeste, ou no Norte, e que tem assento no Congresso. A perspectiva do partido de massa passa a existir quando o desenvolvimento econômico consegue tirar das elites a condução do processo político.

Volto a insistir que a Assembléia Nacional Constituinte é fundamental para o futuro dos partidos políticos no Brasil. Mas se caminharmos para aquilo que querem os homens que estão nos governos estaduais e federal e fizermos apenas a encenação da Assembléia Constituinte, não poderemos ter uma organização partidária que reflita realmente aquilo que se está passando hoje no Centro-Sul. Nessa hipótese, a organização dos partidos vai continuar estilhaçada no velho coronelismo, nas mãos do latifúndio da empresa improdutiva que vive às custas do governo federal.

MOISÉS — Deixa eu fazer uma pontuação na sua fala. Você fala da possibilidade de uma nova estrutura partidária em grande parte dependente e condicionada a um processo de modernização, que levaria a uma participação de setores que, antes, estavam marginalizados. É a hipótese clássica da integração das massas na política.

Mas essa tendência colide, mesmo no Centro-Sul, com o que tenho chamado de a corporalivizaçõo da política. Falo do peso das grandes corporações na política brasileira, em particular a Igreja que, na Nova República, indicou pelo menos dois ministros. Mas penso nos sindicatos, nas empresas estatais, para não falar das Forças Armadas. Como você vê esses obstáculos que, num certo sentido, tendem a esvaziar o conteúdo dos partidos, mesmo nos centros urbanos?

BICUDO — O problema está menos nas classes trabalhadoras que nas outras corporações, como as Forças Armadas e as estatais. Se nós temos que tentar a construção de partidos de massas, nós vamos ter que enfrentar essas barreiras.

Esse fenômeno está ocorrendo, juntamente com a união das elites no Centro-Sul, para impedir a união das classes populares na formação de partidos de massas. As grandes corporações tentam isso, porque elas querem a permanência do status quo. E cabe, evidentemente, aos partidos políticos que pretendem ser partidos de massa entrar nessa jogada de trazer as classes populares para a militância política mais clara, mais definida.

OCTAVIANO — É isso mesmo. Eles tentam manter a estrutura política arcaica, principalmente no Norte. A classe política está na administração e tende a se perpetuar lá através de truques. Mas é claro que a sociedade brasileira mudou muito, cresceu aqui no Sul, o que fez com que, pelo menos no Rio e em São Paulo, a política seja disputada no interior das massas. E para enfrentar essa disputa, a direita recorre a fantasmas como o Jânio. Por outro lado, aparece um homem como o Brizola que é um populista extraordinariamente vigoroso, moderno e que sabe usar a TV. E os populistas são mais eficientes que os partidos que organizam as massas, porque é mais fácil organizar uma resposta populista do que organizar a consciência popular.

Temos, realmente, capacidade de enfrentar esse tipo de ação que compete com a organização democrática? Isso é algo que eu não sei como responder.

Mas os partidos também estão na briga. Os partidos ônibus de hoje diferem dos de antigamente pelos passageiros que levam. Hoje, uma boa parte desses passageiros é classe média e classe operária. Estou organizando um comitê no Parque do Carmo, Itaquera, em São Paulo. Trata-se de um fenômeno de colonização: de quem chega primeiro! São massas que não têm cultura política de tipo algum...

VICTÓRIA — Isso explica por que o PTB cresceu tanto aqui em São Paulo. Chegou primeiro.

OCTAVIANO — Claramente. O PT é a face oposta do janismo. Havia nas eleições para prefeito um número muito grande de indecisos que poderiam ir para qualquer dos dois lados. Essas pessoas se decidiram de forma estranhíssima. Foram conquistadas antes e estabeleceram uma certa tradição local.

Tenho a impressão de que a sorte dos partidos de massa se relaciona, por isso, com a possibilidade de crescimento econômico. Se houvesse um surto econômico, acho que haveria grande possibilidade de crescimento de partidos populares de forma organizada. O populismo tem um sucesso tanto maior quanto mais essas massas não tiverem sucesso econômico. Quanto mais desgraçadas, encurraladas, pobres, sem representação, se sentirem.

Mas isso também depende das vontades dos partidos. Diretórios com vida política permanente são um fato apenas do Sul. E, mais claramente, do PT e do PMDB.

VICTÓRIA — Seria o caso de São Paulo, porque os outros...

OCTAVIANO — Mesmo o PDT, no Rio, não é desse tipo. Ele tem inchaços e desinchaços. Acho que há uma disputa entre um populismo crescente e uma vontade organizatória que está' presente principalmente na juventude.

São os jovens que organizam o diretório e esperam dos políticos não favores, mas algo em termos de ideologia mesmo. Isso talvez venha a mudar a situação no Sul, de forma tal que, de fato, cresça e se estabilize uma nova cultura política. Mas, se isso não acontecer? Ou se acontecer de forma parcial, fragmentária... Bom, neste caso, os populistas vão crescer cada vez mais.

MOISÉS — Eu diria que, freqüentemente, eles chegam antes. Isso não nos leva a questionar a consistência dessas experiências embrionárias de diretórios dos partidos de massa?

OCTAVIANO — Eu acho que uma das sortes que nós temos é que, no Brasil, a televisão não é serviço público, é um negócio público, é um negócio e, graças a Deus, ela só faz política obrigada e ranheta. Se ela fosse utilizada como veículo político, os populistas teriam uma chance que a gente não tem.

A organização política a sério é, evidentemente, um trabalho de formiga. Chegar lá e convencer, organizar, levar o trabalho. Os populistas não fazem isso, tentam operações mágicas. Acho que a classe dominante tem um certo medo da irresponsabilidade dos populistas e, talvez, tente botar um freio nisso.

Por outro lado, temos um grande número de jovens, formados em faculdades de periferia, que diante dessa massa se comportam como seus "intelectuais". Eles explicam as coisas, aparecem como os seus "doutores". Basta um jovem desses para organizar 500 pessoas em um Comitê. O PT tem desses jovens. O PMDB também, só que de forma mais amalucada, sem essa unidade ideológica do PT. Acho que isso é o que pode vir a criar um novo sistema partidário que ponha fim à política patrimonialista, dando lugar ao surgimento de nova cultura política com participação popular.

MOISÉS — Como se poderia avaliar a atuação dos partidos na constituição de uma cultura política verdadeiramente democrática no país? Penso que nossa experiência já demonstrou que a democracia é um valor em si e não um instrumento para a conquista do poder e, como tal, deve contemplar duas exigências fundamentais. Primeiro, a crença em um conjunto de regras que estabeleça com precisão e clareza direitos iguais para todos os cidadãos e, segundo, o reconhecimento das diferenças, o que inclui a possibilidade real de a minoria transformar-se em maioria. Na verdade, não vejo muita gente carreando água para este moinho.

BICUDO — Também tenho essa impressão. Desde que se armou a Aliança Democrática, a intenção é a de preservar os privilégios da classe política. Mas, falando em cultura política num sentido mais amplo, gostaria de ressaltar o papel da Igreja, dos Centros de Defesa dos Direitos Humanos e toda essa linha de atuação do movimento popular, no sentido de evidenciar que a violência não é solução para a violência. Isso tudo é muito rico para despertar uma cultura política e, através dela, aprofundar as raízes da representação.

MOISÉS — Se isso que você está dizendo é verdade, gostaria de colocar um paradoxo. Freqüentemente, setores das classes populares contrapõem à democracia representativa a democracia direta, sem que ninguém diga como é que funciona. O comportamento plebiscitario das assembléias não é nada democrático.

BICUDO — O problema é o desencanto em relação à representação política. Por isso existe essa tendência nas classes populares de absolutizar a democracia direta. Acho isso natural, resposta à falsidade da representação.

MOISÉS — Só não concordo que seja natural. É a expressão de uma incapacidade de entender o jogo político.

FRANCISCO — Para falar sobre cultura política, gostaria de chamar a atenção para o comportamento do PMDB no poder. Surpreendentemente, ele nada inovou na sua relação com a população, o estilo é o mesmo do passado. Parece-me que isso tem a ver com a tradição de relação direta entre os setores sociais e o Estado, curto-circuitando a representação. Essa prática é benéfica ao partido que está no poder, para o qual se dirigem as demandas da sociedade e que o acaba transformando no grande e poderoso mediador dos conflitos.

MOISÉS — Você diria que, ao invés de o partido conformar a estrutura do poder, acaba sendo conformado por ele?

FRANCISCO — Há na verdade uma relação dialética em que se fica dentro de um mesmo circuito. Falamos do populismo do Brizola e do Jânio, mas o sr. Mário Covas é tão populista quanto os outros dois. Ele vai, nos fins de semana, carregar pedra na periferia, em dia de inauguração, enquanto o povão carrega pedra o ano inteiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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