ESPECIAL
As mulheres se defendem
Só mulheres numa delegacia. Todas preparadas para usar armas, iniciadas em lutas marciais e capacitadas a utilizar-se da legislação. Elas mesmas se orientam e dizem a outras o que devem fazer. Agora, ao invés do gentil cavalheiro, elas mesmas podem cuidar da sua proteção. Contra maridos, pais, irmãos, ou seja lá o homem que for. É a lógica da democratização.
As delegacias de mulheres já existem em vários estados do país e, na verdade, expressam também a legitimação do poder feminino na sociedade. Materializam, ao nível do Estado, o direito que as mulheres têm de lutar, organizar-se e se contrapor ao poder masculino, com todas as forças e conhecimentos disponíveis acumulados pela humanidade. A força policial é um desses recursos.
Aqui fala Rosmary Correa, Delegada Titular de Mulheres em São Paulo, em entrevista a Hamilton Cardoso, de LUA NOVA.
HAMILTON Drª Rosmary, tenho um jornal nas mãos que diz que apanhar saiu de moda. O que a sua delegacia de defesa da mulher tem a ver com isto?
ROSMARY Esta relação é mais no sentido de dar uma orientação sobre os direitos e providências a serem tomados pelas mulheres vítimas de qualquer violência. A delegacia foi criada para que a violência contra a mulher fosse denunciada, e esse objetivo foi atingido: em dois meses de funcionamento as denúncias sobre violências contra a mulher aumentaram cem por cento.
HAMILTON Que tipo de denúncias?
ROSMARY Os casos mais comuns são espancamentos, principalmente os domésticos: agressão do marido contra a mulher, a companheira e até o companheiro. Também há denúncias de sedução de adolescentes e estupros. Inclusive, ao contrário do que se imaginava, a maior parte dos estupros não são cometidos por psicopatas desconhecidos e armados, que escondidos de madrugada atacam as mocinhas. Oitenta por cento das mulheres estupradas são crianças de até 12 anos e são vitimadas pelo pai, em alguns casos pelo avô. Temos um caso em que o avô estuprou a neta de três anos de idade...
HAMILTON Aqui vocês fazem muito contato com homens?
ROSMARY Os homens que contatamos aqui vêm intimados para serem indiciados em inquérito. Conversamos com eles para saber o que está acontecendo. Aos que tentam fazer denúncias só damos orientações, afinal existem 51 distritos onde podem ser atendidos...
HAMILTON Que razão os homens apresentam para espancar as mulheres?
ROSMARY As mais diversas. Alguns dizem que elas os provocam ao exigirem atitudes que não podem tomar. Por exemplo, as esposas e companheiras cobram deles mais arrojo em busca de outro trabalho ou melhores salários, para que possam enfrentar a situação financeira precária por causa dos seus baixos rendimentos. O "bate-boca" muitas vezes gera violência. Outros são casos de ciúme. Os homens afirmam que elas são ciumentas ou então que são infiéis. Por fim, há quem reclame que a mulher, depois que começou a trabalhar, passou a ter uma vida independente, descuidando dos serviços de casa. Os motivos são variados...
HAMILTON Sempre que há denúncia cabe um inquérito e um processo?
ROSMARY Normalmente, em qualquer caso. Quando não há lesão, a mulher não está machucada nem agredida e o problema é mais a dificuldade no relacionamento, que poderá gerar uma agressão física, a polícia, especificamente a delegacia de defesa da mulher, preventivamente expede uma intimação para o homem com o objetivo de evitar a agressão.
HAMILTON Que casos permitem uma punição imediata?
ROSMARY Nenhum. Todos dependem da feitura do inquérito policial e seu encaminhamento ao fórum. O promotor e o juiz decidem sobre a pena. A menos que seja flagrante delito, o que é difícil aqui em nossa delegacia. A nossa estrutura e funcionamento dificultam fazer flagrante, inclusive porque os casos são comunicados bem depois de ocorridos.
HAMILTON Que tipo de orientação homens e mulheres recebem aqui?
ROSMARY A delegacia não se propõe a dar orientações. Afinal é uma delegacia de polícia como qualquer outra, só que com a especificidade de atender à mulher e defendê-la de uma violência particular. De qualquer forma, fazemos um trabalho psicológico e, às vezes, até social junto aos homens para que repensem seu comportamento. Informamos e fazemo-lo ver que a violência não é remédio para seus problemas. Procuramos manter uma conversa a três, mostrar ao casal que ainda pode haver amor entre ambos. A autoridade policial age como intermediador.
HAMILTON São muitos os casos de agressão às mulheres que começam a trabalhar?
ROSMARY Sim. Em cada 100 casos, 60 são por essa razão. A própria dificuldade de manter o lar obrigou a mulher, com a concordância do marido, a sair de casa para trabalhar e contribuir, não para seus supérfluos, mas para a manutenção da casa. Como ela é mais ativa e dedicada ao trabalho, muitas vezes tem promoção rápida e passa a ter um maior salário que o marido. Ela então, fora de casa, começa a conhecer o mundo, sua mente se abre. Ela começa a dar palpites em coisas que jamais se aventuraria a fazer. Essa nova consciência de que é, agora, uma pessoa útil, de que seu salário é útil dentro de casa, gera o conflito e começam as divergências entre o casal.
HAMILTON Quando estão aqui, diante de você, o que eles dizem, Rose?
ROSMARY A grande reclamação do homem é de que sua mulher, transformada em trabalhadora fora do lar, começa a esquecer e negligencia os problemas e tarefas de casa, o que não é verdade. Acredito que a mulher que trabalha foratalvez cuide melhor de seu lar do que aquela que fica lá diariamente. Esse argumento o homem usa para fugir e não reconhecer que não quer valorizar o trabalho feminino. Quanto à mulher, a sua briga é porque, uma vez que chega em casa cansada da mesma forma que o homem, acha que deveriam dividir o trabalho doméstico. Isso o homem não aceita. Às vezes conseguimos fazê-lo chegar à conclusão que não há vergonha em participar do trabalho doméstico e assim reconher o trabalho dela. As mulheres também cedem um pouco e admitem falhas nos seus afazeres...
HAMILTON Quais os limites da legislação para a proteção da mulher?
ROSMARY A legislação penal não diferencia sexo. Apenas em alguns casos, como sedução. O crime de sedução contra a mulher ocorre segundo a lei, quando ela é virgem e honesta, ao passo que o homem não precisa ser virgem, nem honesto: basta ser constrangido por alguém, mediante a força, a praticar atos libidinosos.
HAMILTON Ocorrem muitos crimes de sedução?
ROSMARY Sim. Antes achava que sedução era um crime fora de moda. Pensava que a evolução e a quantidade de informação veiculada por rádio, televisão e cinema tivesem acabado com a ingenuidade de garotas de 14 a 18 anos nesse campo. Achava impossível que pudessem ser seduzidas, mantivessem relações sexuais e chegassem a ficar grávidas por ingenuidade. Mas, ao começar a receber os primeiros casos, descobri que a inexperiência e a engenuidade ainda existem. A ingenuidade impera na maioria dos casos de sedução que recebo aqui. E não só das garotas, mas de toda a família. No caso do homem, ele pode ser constrangido a praticar sexo por um outro homem...
HAMILTON Você diz que 80% dos estupros são feitos por pais. Como chega uma mãe, nessa situação, à sua delegacia?
ROSMARY Elas chegam traumatizadas. Não conseguem, sequer, explicar o que ocorre, sem chorar. Imaginei também que casos de estupros pelo pai tivessem uma pequena dose de conivência da mãe; achava impossível um pai manter relações sexuais com a filha sem a mãe saber. Mas é o que ocorre. As mães não conseguem imaginar que um pai faça isso, e não desconfiam de qualquer manifestação de carinho ou ciúme do pai pela filha; pensam que é amor paternal. Também, ambos trabalham fora e as mães não ficam em casa durante o dia e jamais supõem o que está acontecendo.
As vítimas, que são crianças, por um mecanismo inexplicável, sabem que se revelarem à mãe vão criar problema no relacionamento dos pais. E se calam. Só denunciam num momento onde a situação é insuportável, sempre para uma vizinha, madrinha, tia ou pessoa de confiança que não seja a mãe. A mãe, nesses casos, é sempre a última a saber. Quando ficam sabendo, as mães sequer falam com o marido. Vão diretamente para a delegacia. Chegam desesperadas, traumatizadas, quase sem condições de falar.
Várias mães já desmaiaram nesta delegacia quando confirmei que suas filhas haviam, realmente, sido defloradas pelo pai. Mesmo depois da denúncia, porém, a criança não consegue falar à mãe sobre o assunto. Ela não se sente à vontade. É aqui, sozinha, que conta toda a história para mim. Depois eu digo para a mãe.
HAMILTON Esses casos costumam demorar quanto tempo?
ROSMARY Apareceu no 26º D.P., no Sacoman, o caso de uma família muito "boa", onde o pai manteve relações sexuais com a filha dos seis aos oito anos. A garota só denunciou porque, um dia, ao resistir, o pai se excedeu no "corretivo" e deu-lhe um murro na boca e rachou os lábios da menina. Então ela explicou para a vizinha, que contou à mãe, que denunciou na delegacia. A criança calou-se com o delegado e só contou a história para mim.
HAMILTON Os estupros ocorrem mais em que classes sociais?
ROSMARY Em todas. Talvez mais nas classes baixas, mas pela promiscuidade em que vivem essas famílias, essa situação é tida como natural. Então, não há denúncias. Quem denuncia é a classe média e alta, porque na classe baixa a situação é tida como natural...
HAMILTON Não seria medo...?
ROSMARY Não. Não é medo não. Trata-se apenas de um certo comodismo, um problema de educação e até de nível. Uma família com 16 filhos, pai e mãe morando todos no mesmo quarto, só pode gerar promiscuidade. Nessa realidade, pai, mãe, filhos e irmãos encaram relacionamento incestuoso como natural.
HAMILTON Você pode traçar o perfil do estuprador?
ROSMARY É impossível. Eu já tive na minha frente quatro estupradores e não consegui achar um denominador comum entre eles. São absolutamente normais: pais de famílias normais, trabalhadores benquistos em seus empregos e com bom círculo de amizades, A gente imagina que deve haver algum tipo de debilidade mental, mas traçar um perfil ou paralelo entre eles é impossível.
HAMILTON Do ponto de vista legai, o que fazer contra o estupro?
ROSMARY Infelizmente nosso trabalho policial, nesse sentido, é como em qualquer delegacia. O acusado é indiciado e o inquérito é encaminhado ao fórum. Às vezes não temos nem condições de pedir prisão preventiva do cidadão. O homem tem endereço fixo e é primário. O que fazemos, então, é orientar a família para ir à vara civil e fazer com que ele perca o pátrio poder.
HAMILTON Há muitos problemas no campo da justiça que frustam as mulheres...
ROSMARY Nós temos que separar bem o que é da competência da Justiça e o que é da competência da policia, que não tira marido de casa, não faz separação, não vai buscar filho nem faz partilha de bens. Tudo isso é problema judicial e é feito através de uma petição de ERRO que concede ou não uma liminar para que o ato seja realizado. Muitas mulheres querem separar-se sem sair de casa e nos procuram, querem que nós, policiais, tiremos o marido de lá. Mas isso é impossível, não é nossa prerrogativa, mas da Justiça. Nesses casos, nós as encaminhamos a um advogado para que ele encaminhe o processo.
HAMILTON Então, qual a diferença entre esta e outra delegacia policial?
ROSMARY Aqui todas as funcionárias são mulheres e nós trabalhamos em função da defesa das mulheres. Sendo uma delegacia específica elas são tratadas como se estivessem em suas casas, têm sua privacidade respeitada e maior liberdade para.narrar os casos. Em outras delegacias, seriam atendidas ao mesmo tempo que um PM traz um bêbado, uma vítima de assalto vem reclamar ou o escrivão autua um furto de um auto. Não há privacidade para narrar um conflito delituoso.
HAMILTON Depois de assumir esse posto, o que mudou em sua vida de delegada?
ROSMARY Aqui acabamos aprendendo mais alguma coisa. Com a especificidade da delegacia nossa experiência profissional aumentou e acabamos descobrindo, nos meandros da violência contra a mulher, muitas outras tipicidades de crimes que não conhecíamos antes, porque não eram diariamente comunicadas à polícia. Aprendemos a ser psicólogas, sociólogas, amigas, companheiras e até confidentes das pessoas que nos procuram. Enfim aprendemos a conhecer melhor quem nos procura: o ser humano.
Essa é uma experiência gratificante, uma vez que a gente começa a notar a importância de uma palavra de apoio às pessoas que procuram uma delegacia, uma palavra de estímulo. A delegacia de defesa da mulher já conseguiu evitar até suicídios. Toda essa experiência faz com que a gente se aprofunde e se anime no trabalho para oferecer cada vez mais. Mais que uma orientação ou um trabalho profissional à mulher que nos procura, nós queremos oferecer, aqui, estimulo, apoio e colaboração em todos os sentidos.
Por outro lado, a existência e a divulgação ampla da delegacia revela formas de violências não-reconhecidas, escondidas sob o mito do casamento e da convivência feliz, entre quatro paredes, isso faz com que os colegas de outros distritos, mais atentos ao que se passa, repensem a sua própria forma de atendimento nas delegacias, independente de quem sofre violência, se o homem ou a mulher.
HAMILTON Aqui só trabalham mulheres que atendem a mulheres. Podemos dizer que este é um mundo feminino que se manifesta com liberdade e força para enfrentar os desvios do mundo masculino?
ROSMARY Exatamente.
HAMILTON Como você vê o mundo masculino?
ROSMARY Da mesma forma que antes. A violência é igual em todos os setores. Não é porque estamos aqui, especializadas e dirigidas para ver especificamente a violência contra a mulher, que vou achar que não existe mulher violenta, ladra ou assassina. A violência é igual e geral para ambos os sexos. Agora estou de um lado só da situação e vejo o problema da mulher vitima, o que não evita que uma mulher agressora seja indiciada c, muitas vezes, mais perigosa que os homens.
HAMILTON E sobre o movimento de mulheres?
ROSMARY Só o conhecia pelos jornais. Mas já achava uma coisa bonita. Ao conhecê-las melhor, porém, comecei a dar-lhes o devido valor: são mulheres valorosas, persistentes, batalhadoras e, graças a elas, a mulher está conseguindo uma melhor situação social.
HAMILTON Você é casada, solteira... tem namorado?
ROSMARY Sou solteira, tenho namorado.
HAMILTON E se um dia ele cometer violência contra você, a quem reclamará?
ROSMARY Não... eu tenho certeza que ele jamais fará isto. Mas, infelizmente, e falando como mulher e passional que sou, se algum dia ele cometer alguma violência contra mim, vou cometer outra contra ele. E ambos não vão reclamar em lugar algum...
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Mar 1986