DESAFIO CONSTITUINTE
O destino do SNI
Ana Lagoa
Jornalista
Boa parte do nosso destino está colocada nas mãos da Assembléia Nacional Constituinte. Mas, até agora, não se falou do SISNI Sistema Nacional de Informações. É uma herança que precisa ser revista.
O SISNI organizou-se durante o regime autoritário até se constituir numa intrincada malha de agências e agentes, cujo objetivo principal é identificar e combater o chamado "inimigo interno", aquele que a doutrina de segurança nacional passou a identificar com a subversão.
Agigantou-se para atender ao anseio do governo militar em controlar a política e a vida dos cidadãos.
O SISNI acumulou agentes, equipamentos, verbas, órgãos e fichas. Chegou a ter 20 mil agentes e urna lista de 250 mil pessoas consideradas "inimigas" do Estado. Tudo sob o comando supremo do SNI Serviço Nacional de Informações.
Essa malha chegou intacta à Nova República e em evidente contradição com as propostas democratizantes do novo governo civil.
Mas a trajetória dessa estrutura foi tortuosa em várias ocasiões.
Em 1975, a morte do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho resultaram no afastamento do comandante do II Exército e no remanejamento dos oficiais que serviam no DOI paulista.
O governo Geisel acenava com o início de mudanças no sistema de informações. Eram mudanças aparentes. Nem essas mortes, nem os atentados a bomba, nem mesmo o episódio do Riocentro expuseram a "comunidade de informações" a um controle efetivo por parte do governo, muito menos da sociedade civil.
Com a Anistia e o renascimento das atividades típicas de um regime democrático, as prisões por motivos políticos tornaram-se raras, foi anunciado com grande entusiasmo, como evidência de alterações no sistema. Esqueciam-se de explicar que a abertura forçara uma redefinição do "inimigo interno". Este, pouco a pouco, ocupou as praças e acabou por merecer o reconhecimento da legitimidade e a legalização de sua atuação perante o sistema político.
Nesse contexto, queima de arquivos do DOPS, que simbolicamente encerrava uma etapa de ação, serviu apenas para eliminar provas históricas dos crimes da repressão. Medidas como a mudança do nome de Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica para Centro de Informações da Aeronáutica, por si só, falam do seu vazio.
A etapa mais importante começa mesmo com a Nova República. Desde março é possível identificar uma estratégia global de mudança de imagem. É só de imagem! O conceito de segurança nacional ainda não foi colocado em discussão e continua como pano de fundo de qualquer proposta ou medida prática para o setor. Os chamados interesses de Estado continuam sendo os mesmo daquela República dada como morta em 15 de março deste ano.
Entre as promessas de Tancredo Neves e o que realmente está acontecendo há uma distância considerável. O chefe do SNI continua sendo um militar; não se tem controle dos remanejamentos que levariam de volta ao quartéis tarimba dos agentes de informação; não se sabe de contratação de civis, a não ser em casos esporádicos; não se tem notícia sobre a redução de efetivos e muito mesmos sobre o orçamento do sistema de informações.
Não bastante tão pouca mudança, as poucas medidas tomadas são ambíguas e podem ser vistas de outra forma que a anunciada. Vejamos estas iniciativas e seus significados:
o recolhimento dos arquivos das agências setoriais e regionais do SISNI, se "protegem" mais os cidadãos fichados, também fazem desaparecer as proezas e a história de vinte anos de atividades secretas; a transferências do coronel Ary Pereira para Buenos Aires também afastou do serviço local uma pessoa que seria alvo de acusações com a reabertura do caso Baumgarten;
o recolhimento de material de trabalho que estava na sede do SNI, em Brasília, afasta provas importantes no momento em que a oposição passou a ocupar cargos no governo;
o anúncio de redução do efetivo não pode ser bem apreciado pois nem se sabia qual era esse efetivo nem se sabe se realmente foram feitos cortes;
o anúncio de que os telefones não mais seriam grampeados é uma ótima notícia. Mas, como vamos saber se nosso telefone está sem grampo? Todos teremos que comprar equipamento especial para isso?
a dispensa de agentes leva à pergunta: para onde estão indo? Sabemos que 44 deles estão na P-2 carioca e 77 estão no serviço de segurança do Congresso Nacional;
o CENIMAR anuncia que limpou seus arquivos, ou seja, apagou sua triste história; jornalistas vão visitar a Escola do SNI , gesto muito simpático de seus comandantes, mas qual será o resultado concreto disso em termos de segurança do cidadão?
os inquéritos sobre as mortes de Baumgartem e Mário Eugênio são casos isolados da instituição e se caracterizam como "desvios", os desfechos ainda são incertos;
está em discussão o acesso dos cidadãos às suas fichas armazenadas no SNI. Tudo poderá ser visto, mas como em outros países onde há essa lei, será proibido o acesso aos casos que envolvam a segurança nacional.
E OS CIDADÃOS?
Diante da dubiedade desse quadro, resta ao cidadão ter fé e, através de seus representantes legítimos, levar propostas à Assembléia Constituinte. Algumas questões podem ser colocadas desde já para discussão. Quanto ao acesso às nossas fichas, por exemplo, que seja reavaliado antes o conceito de segurança nacional, que deveria se limitar ao nível das agressões externas, nem sempre militares, mas tão nocivas quanto, como por exemplo, ações danosas à nação por parte de capitais transnacionais. Além disso, o cidadão tem que ter o direito de saber todas as acusações que o Estado tem contra ele, para que possa se defender.
O orçamento do SISNI tem que ser votado pelo Congresso Nacional e suas contas devem ser vistoriadas pelo Tribunal de Contas. Só polícia fardada e com mandado judicial pode ter o direito de nos prender. O conceito de "inimigo interno" deve ser abolido e a sociedade civil vista até hoje como inimiga do Estado deve assumir o seu verdadeiro lugar. O Estado, então, se apresentaria como expressão pública da sociedade civil e estaria a seu serviço. E não mais seria o seu algoz. Já que sempre me deparo com o argumento de que os serviços de inteligência são inevitáveis e irreversíveis no Estado moderno, vou arriscar uma opinião um tanto pretensiosa e questionar a necessidade de se formar dentro dos limites da instituição militar. Por que o presidente da República precisa de um contingente militar desconhecido para se informar do que se passa no país? Não há quadros civis que possam assessorá-lo com informações e análises da realidade brasileira?
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Mar 2011 -
Data do Fascículo
Jun 1986