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Entre a palavra oficial e a heresia popular

POLÊMICA

Entre a palavra oficial e a heresia popular

Renato Ortiz

Professor de Antropologia na PUC-SP

A idéia deste artigo surgiu a partir da participação de Renato Ortiz num seminário interno do CEDEC, sobre as Comunidades Eclesiais de Base.

Não sou um especialista em religião. Meu interesse pelo tema, hoje já um pouco distante, sempre foi de caráter mais teórico, e durante um bom tempo me ocupei dos cultos de origem afro-brasileira como a umbanda e o candomblé. Isto talvez ajude a abordar a questão das Comunidades Eclesiais de Base de um outro ponto de vista.

O debate sobre a Igreja católica no Brasil deslocou pouco a pouco a discussão da religião de sua dimensão cultural para a política. É claro, isso não se dá ao acaso. A importância da Igreja durante os anos de ditadura militar, assim como sua mudança de estratégia, promovendo uma política de "opção pelos pobres", colocam de imediato a questão do poder. Até mesmo cientistas políticos, que no passado pouco interesse tiveram pelo estudo da religião, cada vez mais se debruçam sobre o catolicismo procurando entender a lógica de atuação da Igreja. No interior desta, toda uma literatura recente vem ainda enfatizar o lado político, particularmente com a utilização do marxismo como instrumento de diagnóstico da realidade social.

Colocada dentro desses parâmetros, a discussão não deixa de apresentar problemas. Ao se desvincular o lado político do lado religioso, o que se tem é uma supervalorização de determinadas questões, o que muitas vezes impede de se compreender como as religiões operam de fato. O que se escreve e se diz normalmente sobre as CEBs adquire um colorido funcionalista, que se resume na pergunta: elas conservam ou transformam a ordem social? Não que o problema em si não deva ser posto. Pelo contrário, ele é da maior relevância. Não creio, no entanto, que ele possa ser equacionado exclusivamente do ponto de vista político, é necessário entender que para a religião católica vale o mesmo princípio aplicado a todas as religiões, elas são instituições profanas que agem no mundo em nome de uma determinada concepção do sagrado.

Uma conseqüência direta desse processo de politização faz com que as CEBs sejam consideradas como imanentemente "progressistas". Não deixa de ser surpreendente observar que grande parte da literatura sobre o assunto tende a valorizar os aspectos de transformação social promovidos por uma nova consciência de Igreja renovada. Mas se quisermos ter uma visão abrangente das CEBs no Brasil, algumas questões têm que ser necessariamente levantadas. Se é possível compararmos o progressismo das CEBs de São Paulo com outras no Araguaia e no Ceará, é porque existe uma fato que antecede às próprias comunidades eclesiais: a existência de bispos progressistas como D. Paulo, D. Balduíno e D. Fragoso.

Bispos conservadores, CEBs idem?

Dito de outra forma, os elementos de transformação social já se encontram delimitados de antemão nas políticas de cada diocese. Fica a pergunta: e nas áreas administradas por bispos mais conservadores, as CEBs se revestiriam das mesmas características? Penso que não. O curioso é que poucas vezes essas CEBs menos progressistas são consideradas pela literatura que delas se ocupa. Não que nada exista de escrito sobre o assunto, pelo contrário, basta considerarmos as numerosas publicações editadas pelas diversas arquidioceses ou pela CNBB. Acontece que essa literatura é valorizada de forma assimétrica. Existe uma parte considerada como mais legítima e que trata precisamente do tema da transformação das consciências. Eu diria que é esta produção clerical, particularmente dos defensores da teologia da libertação, que marca o campo do estudo das religiões, e conseqüentemente foi mais considerada pelas Ciências Sociais. Existem, portanto, proposições que ficam à sombra e dificilmente são consideradas como por aqueles que se ocupam do catolicismo no Brasil.

Um outro aspecto dessa questão se refere ao papel das religiões no mundo moderno. Com a emergência do Estado leigo, as religiões perdem o poder de organizar a sociedade como um todo. O catolicismo pode influenciar o poder estatal, ou ainda passar concordatas que tentem delimitar o espaço de atuação leiga. No entanto, a unicidade entre religião e Estado se cinde. Isto significa que a sociedade civil comporta em seu seio vários grupos, e não mais existe o monopólio de uma determinada força na estruturação da sociedade como um todo. Tem-se que pela primeira vez surgir ao lado do Estado leigo, um "mercado" de religiões. A sociedade moderna é politeísta, comporta diferentes credos como o catolicismo, o protestantinismo, a umbanda, o pentecostalismo. Dentro deste novo quadro a política da Igreja é duplamente orientada pelas preocupações políticas e pelos assuntos religiosos.

Muito se tem escrito sobre a reorientação política da Igreja no Brasil, mas presta-se pouca atenção para o fato de que essa nova filosofia se insere num contexto que redefine a posição dos católicos no interior do mercado religioso. Um exemplo clássico é a campanha antiespírita, realizada pela CNBB nos anos 50 contra o crescimento das seitas umbandistas. Existe neste caso uma clara vontade política de disciplinar a concorrência religiosa, e várias medidas, inclusive repressivas, são promovidas pela hierarquia católica. Alguém poderia argumentar que esses exemplos fazem parte do passado. Eu penso, no entanto, que na estratégia da criação das CEBs a preocupação religiosa se insere junto às questões políticas.

O Evangelho e suas leituras

Um documento da CNBB, relativo ao Nordeste, parte do seguinte texto do Evangelho de São Lucas: "Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso (a pregação de Cristo) e zombavam dele. Jesus lhes disse: Vós sois os que quereis passar por justos diante dos homens, mas Deus conhece os corações; o que é elevado para os homens, é abominável diante de Deus". Segue a interpretação: "Esta passagem é uma das afirmações mais contundentes de Jesus para mostrar que não se deve privilegiar uma pessoa pelo fato de ser rica e possuir bens... entretanto no NE, grandes ricos, quase sempre latifundiários, são privilegiados pelo sistema econômico gerador das estruturas iníquas em que vivemos". Sabemos que uma das formas de pregação da Igreja renovada se dá através da leitura do Evangelho. É por meio da leitura e da intepretação da palavra sagrada que se busca dar o sentido de uma ética religiosa. O texto em questão propõe uma interpretação que é claramente política e busca transformar a consciência e a ação do católico praticante. Não pretendo entrar na discussão sobre os meandros da interpretação de um texto. É claro que se trata de uma avaliação atual que se fundamenta sobretudo na premissa da existência de uma teologia da libertação (com a qual eu simpatizo). O Evangelho de São Lucas existe há milênios e nunca foi lido dessa forma. O que eu gostaria, porém, de sublinhar é que a leitura possui ainda uma outra conotação. Ao incentivar a leitura da Bíblia nas CEBs, os católicos não estão simplesmente fazendo política. Eles se colocam de imediato contra o protestantismo, em particular contra o pentecostalismo, que centra a sua pregação na leitura e na interpretação da palavra sagrada. Se tivermos em mente que o catolicismo no Brasil sempre se difundiu na base de uma religiosidade cultural e não ética, temos agora uma profunda modificação de estratégia. Isto significa que a Bíblia, relegada pelo ritualismo católico, transforma-se em instrumento de conscientização e de luta (contra a opressão e a concordância de outras religiões). O problema que se coloca agora é o de formar os leitores privilegiados, isto é, os intérpretes abalizados, que possam entender o texto sagrado segundo a direção determinada pelo movimento católico. Nas classes populares, onde o pentecostalismo cresce dia a dia, a Igreja descobriu uma forma de se contrapor, reivindicando uma leitura mais legítima do que a protestante, que despreza os elementos de crítica social e privilegia os aspectos morais e dogmáticos.

Renovando as consciências

A existência das CEBs colocam para a Igreja o problema da renovação das consciências, por isto podemos estabelecer um paralelo entre este movimento e o da Reforma Protestante. As CEBs são frutos de uma política desenvolvida pela hierarquia religiosa no Brasil. É necessária a formação de quadros especializados, de leitores de Bíblia, e para tanto a Igreja mobiliza todo seu aparato para promover encontros, debates, publicar livros e artigos sobre a reavaliação da fé religiosa. Dito de outra forma, as CEBs nascem primeiro como preocupação da hierocracia para depois se estabelecerem como fatos. Isto, que me parece inegável, muitas vezes encontra-se encoberto por uma ideologia "popular" que acaba identificando a aspiração de setores da Igreja com a própria realidade social. Fala-se em "ouvir democrático", em "verdade do povo", "democracia de base", esquecendo-se muitas vezes que esta democracia é fruto de uma política que é exterior. Na verdade a Igreja enfrenta o mesmo problema que os partidos políticos. Ela necessita formar os quadros que possam atuar junto à massa de acordo com a filosofia oficial da instituição. O velho problema que Lenin enfrentava, se a consciência revolucionária deveria vir de "fora" ou de "dentro" da massa, se manifesta com toda sua agudez, embora sob uma nova forma. Todo movimento de reforma pressupõe uma filosofia, no caso a "opção pelos pobres", e uma máquina burocrática capaz de encaminhar com sucesso o movimento pedagógico de transformação das consciências. A ideologia "popular", que às vezes adquire um caráter utópico, deve ser considerada como um projeto a ser realizado, não como realidade. Basta lembrarmos que esse projeto popular se realiza no seio de uma instituição altamente hierarquizada como a Igreja católica.

Colocar a questão da Igreja renovada em termos de projeto político e religioso nos leva necessariamente à pergunta sobre a sua eficácia. Não creio que a resposta seja única, mas uma coisa é certa, é preciso passarmos dos estudos sobre a ideologia para a análise da prática católica na sociedade brasileira. Uma primeira distinção deve, a meu ver, ser feita entre os intelectuais orgânicos da religião e os católicos em geral. As entrevistas com a camada intelectual das comunidades de base tendem certamente a revelar o elemento político manifesto na consciência religiosa? Freqüentemente isso se dá porque a prática religiosa se encontra interligada com ações claramente definidas: atuação no sindicato, comissão de moradores, partidos. Os limites se colocam quando nos indagamos sobre a "religiosidade dos simples", isto é, do grupo que não é atingido privilegiadamente pela ideologia católica. Toda ética implica um movimento de conversão, uma "crise de consciência", que possibilita ao indivíduo passar de um estágio de sua vida para outro. Acontece que a hegemonia de uma filosofia não se estabelece de maneira unívoca. Ela demanda todo um esforço individual de reflexão, que implica a interiorização de um universo de pensamento bastante sofisticado. Por exemplo, a noção de um reino de Cristo que só pode ser atingido quando a ação é realizada de acordo com uma crença na igualdade entre os homens. A ação política pressupõe, portanto, a crença em uma determinada filosofia religiosa e não em outra. O problema é que entre o discurso filosófico e a prática política se insere um complexo sistema de mediações sociais.

A Igreja desempenha um papel supletivo

Não resta dúvida de que a situação de uma CEB tem grande importância em relação ao sucesso ou não de sua atuação. No caso do Araguaia, existe uma "situação de conflito" que é aberta, envolve a maioria da população, o que faz com que o campo de divisão entre dominadores torne-se explícito. A nível regional, a Igreja desempenha um papel supletivo, em relação aos partidos, sindicatos e o Estado. A mensagem religiosa renovada integra perfeitamente as contradições vivenciadas pelos posseiros, o que permite uma adequação maior entre filosofia e prática política. O mesmo não se dá nos grandes centros urbanos. Aqui os indivíduos se encontram submetidos a uma tela de instituições diferentes, concorrentes, e até mesmo antagônicas. A ideologia católica encontra um campo ocupado pelos cultos afro-brasileiros, pela indústria cultural, pelos partidos políticos, pela escola. A ética religiosa se defronta com uma fragmentação de prática e de apelos, que se opõem muitas vezes à filosofia proposta: o mito da ascensão social, a valorização dos prazeres (não existe uma teologia de libertação da sexualidade), a ênfase na realização individual, a utilização do lazer, etc. A conversão pressupõe a existência de uma concepção de mundo privilegiado, a católica, que possa integrar as diferentes manifestações da sociedade moderna, e fornecer ao fiel uma orientação segundo as exigências da doutrina. Dito de outra forma, a Igreja, ao considerar o católico, deve levar em conta a pluralidade e a fragmentação de uma sociedade de massa, e neste particular suas dificuldades em levar a mensagem religiosa, são análogas às dos partidos políticos que buscam, por outras vias, consolidar uma hegemonia ideológica.

A discussão sobre os limites da ética religiosa e política nos leva a um último ponto, o da relação entre catolicismo renovado e religiosidade popular. Tanto o catolicismo como o protestantismo, budismo, islamismo e judaísmo são considerados religiões universais, isto é, possuem uma ideologia que procura dar conta da totalidade do mundo e da história. Elas resumem uma multidão de crentes em torno de determinada crença e objetivos comuns; e, um sistema coerente e abrangente de interpretação do mundo. Esta dimensão da universalidade confere a essas religiões duas características fundamentais. Primeiro, elas podem se expandir enquanto "religiões mundiais" na medida em que o universal abarca as diferentes partes da humanidade ainda não integradas no sistema religioso em questão. Por exemplo, as guerras religiosas, onde o adversário é considerado como infiel, isto é, não pertence ainda ao domínio daqueles que participam de uma determinada crença. É com base neste julgamento que os diversos credos se expandiram no passado: o catolicismo nas terras da América e' da Ásia, o protestantismo na Europa e nos Estados Unidos, o islamismo na África Negra e na África de Norte, o budismo, que migra da índia para o Japão e China. Existe, portanto, uma política de proselitismo que pressupõe a universalidade da religião, ou seja, a conversão dos indivíduos ao código "verdadeiro". Segundo, existe um estreito relacionamento entre universalidade e história. O cristianismo coloca o indivíduo no interior de uma historicidade que agora diz respeito a seu destino religioso. Ao agir no mundo, conservando ou transformando a ordem social, o cristão se adequa aos ensinamentos da doutrina. Toda religião universal apela para a consciência individual, e neste sentido insere o indivíduo no seio de uma ordem que o transcende. O budismo clássico afirmava uma ética da pobreza, a recompensa divina se realizando após a morte, no reino dos céus; a teologia da libertação propõe uma ética de transformação da sociedade, pois somente desta forma a comunidade primitiva de Cristo se realizaria na prática do católico.

Religiosidade popular: uma relação direta

Se olharmos, porém, a religiosidade popular, observaremos que as coisas se passam de maneira diferente. Não possuímos mais uma ética universal, mas sim particular, que adquire uma dimensão mais instrumental do que dogmática. O adepto da umbanda comercia favores com os espíritos: sacrifica-se para Exu em troca de um pedido sobre a sexualidade, toma banho de cachoeira para se livrar de determinado mal. A sessão umbandista tem como objetivo final a descida dos espíritos que vêm à terra resolver os problemas humanos. A prática umbandista é em grande parte voltada para o particular; o indivíduo opera com uma série de estratégias que têm por objetivo resolver questões concretas e determinadas.

O mesmo pode ser dito do catolicismo popular brasileiro. Nele, o aspecto ritual, as missas, os milagres, os pedidos de cura, as procissões adquirem uma dimensão que tende a ofuscar o apelo racional da doutrina. Não é por acaso que os estudiosos deste catolicismo falam em troca de favores com os santos, da mesma forma que ocorre com os ubandistas em relação aos espíritos. Por isso, nas classes populares, a passagem do pólo católico para o umbandista, e vice-versa, se dá com facilidade. Em última instância procura-se selecionar, nos dois universos religiosos disponíveis, os elementos julgados mais convenientes para o sucesso de uma ação determinada. Se os santos não curam, não custa tentar os espíritos. Isto não ameaça de forma algulma a "crença oficial" no catolicismo, pois aquele que se dirige ao terreiro não vê nenhuma necessidade de se filiar à umbanda. Seu pedido se encerra na particularidade do fato que o preocupa, por exemplo, uma doença, ou a falta de emprego. Resolvida, ou não, a questão se esgota aí, e não tem necessariamente conseqüências ao nível da consciência individual.

Ao considerarmos a religiosidade popular como particular, temos que a concepção de história que está em jogo é diversa daquela proposta pelas religiões universais. A historicidade não diz respeito às transformações mais gerais da sociedade ou da religião, mas se encerra na particularidade da vida cotidiana das pessoas.

Penso que este é um problema que se manifesta com toda sua força nas CEBs, pois o que estas propõem é uma reforma radicai da consciência que vai encontrar entraves na própria religiosidade popular. Essa tensão me parece evidente quando se observa a maneira ambígua com que os católicos progressistas encaram o catolicismo popular. Enquanto elemento do povo, isto é, como manifestação das classes subalternas, ele deve ser valorizado pela ideologia igualitária preconizada pela Igreja; enquanto ética instrumental ele tem que ser combatido, pois aqui se encontra uma resistência específica ao projeto de transformação das consciências. Colocando de outra forma: a procissão, como forma de arregimentação de pessoas, será valorizada, mas a crença nos milagres, razão última deste evento, deve ser criticada, uma vez que o destino dos homens se realizaria no seio da história atual, numa luta entre dominadores e dominados.

Catolicismo popular: onde fica a tradição?

É curioso observar que a corrente tradicional do catolicismo parece possuir um maior entendimento da religiosidade popular do que os adeptos da teologia da libertação. Esta última, colocando a ênfase no caráter racional da doutrina, tem dificuldades em enfrentar o apelo de uma religiosidade voltada para o culto e não para a doutrina. Já os católicos tradicionais não vêem problemas algum em cultivar as manifestações populares (exemplo: santuário de N. S, Aparecida). É claro, desde que integradas ao controle da hierarquia da Igreja. O conflito se dá somente em caso de ruptura deste equilíbrio entre religião oficial e religião do povo. O caso de Antônio Conselheiro é um bom exemplo, onde se tem o confronto aberto entre a palavra oficial e a heresia popular.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1986
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