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Poder econômico e Constituinte

CONSTITUINTE

Poder econômico e Constituinte

Márcio Santilli

Deputado federal pelo PMDB de SP

As distorções no processo eleitoral brasileiro têm uma longa história. O voto de cabresto — largamente engendrado nos currais da República — sempre pesou nos resultados das nossas eleições. Coronéis e manda-chuvas, latifundiários e donos de cartórios, sempre estiveram a serviço das forças mais conservadoras e atrasadas, manipulando de todas as formas a verdadeira opinião do eleitorado.

De 64 para cá, com o regime militar, as aberrações no processo eleitoral foram aperfeiçoadas, de modo que o resultado dos pleitos não espelhasse a vontade popular. A excreta "Lei Falcão" — fina-flor daquele pântano de anteontem — conseguiu reduzir a informação ao mais informe exercício de ridículo.

Se hoje estamos livres das artimanhas de grosso calibre, da truculência descarada da legislação de exceção, isto não significa que tenhamos um avanço consolidado em matéria de eleições. As conquistas recentes, das quais falaremos a seguir, deixam escapar alguns aspectos fundamentais para o disciplinamento da matéria.

Num primeiro lance, podemos constatar a insuficiência orçamentária do TSE e dos TRE, fato que praticamente inviabiliza a ação desses organismos. Como resultante imediata dessa subdotação, temos a questão do transporte do eleitorado, notadamente nos recantos de acesso complicado do Brasil rural. Este dado acaba por gerar uma situação ambígua, que deságua, inevitavelmente, na burla da legislação. E, assim, nos caminhões "doados" aos candidatos, para transporte de eleitores, bem por debaixo dos toldos de encerado, tudo acaba rolando solto: sanduíches, propinas e promessas de todo jeito.

Outra discussão relevante está embutida na conversão do poder político em poder econômico. Sobram evidências de que os orçamentos públicos, em múltiplas circunstâncias, são comprometidos em "obras" de perfil nitidamente eleitoreiro. Os detentores do status quo, na ânsia de angariarem a simpatia dos cidadãos votantes, despejam recursos em projetos duvidosos, priorizando o secundário e postergando o urgente.

Neste mesmo viés — e como ainda é pantanoso esse terreno! — instalam-se "caixinhas" e mutretas mil, sempre escudadas nos desmentidos contumazes dos chefes e dos chefetes. Para se contrapor a esse expediente, vale a voz da sociedade civil organizada, das entidades de classe, dos sindicatos e de todos aqueles que se engajem na denúncia das distorções.

O acesso aos meios de comunicação de massa continua problemático. No período que antecede ao horário gratuito do TSE, os candidatos abastados e os abençoados com as graças das "máquinas" pulverizam seus nomes em "informes" publicitários, passando à opinião pública mensagens trapaceiras, calcadas em sofismas de toda sorte. A propaganda subliminar vem sendo produzida e veiculada em escala abusiva, tomando de assalto as casas brasileiras em horários nobres de TV.

O que já conseguimos

Diante desse quadro, passamos a enfocar as conquistas efetivas para um melhor disciplinamento dos pleitos. Considerando-se a importância e até mesmo a imparidade das eleições de 1986, o recadastramento confere uma maior confiabilidade ao processo eleitoral como um todo. Esta empreitada, sem dúvida, fará voltar à tumba a significativa população de "eleitores" falecidos. Os títulos duplos e triplos saem de circulação, as falcatruas cartorárias sofrem um duro golpe.

Observando o recadastramento sob outro ângulo, podemos inferir que começamos a caminhar em direção à informatização total do processo eleitoral. O primeiro passo — o da catalogação sistemática — está dado. É um avanço, sem dúvida. A legislação vigente, aprovada no primeiro semestre de 1986, mesmo ensejando um arbitramento mais rigoroso das campanhas eleitorais, depende fundamentalmente de fiscalização. O 2.º § do Art. I reza que "qualquer candidato ou Partido e o Ministério Público são partes legítimas para representar perante a Justiça Eleitoral, requerendo diligências a respeito de gastos na campanha ou exigindo a cessação imediata do abuso. Também o Juiz ou Tribunal respectivo poderá determinar de ofício diligências ou providências".

No Art. V, quantifica-se os gastos, com recursos próprios, dos candidatos . Recorrendo ao texto legal, fica estabelecido que cada candidato dispenderá no máximo:

I. candidato a governador de estado e seu vice, em conjunto, na base de até Cz$ 4,00 (quatro cruzados) por eleitor do estado respectivo;

II. candidato ao Senado da República, na base de até Cz$ 2,00 (dois cruzados) por eleitor do respectivo estado;

III. candidato à Câmara Federal, na base de até Cz$ 0,30 (trinta centavos) por eleitor do respectivo estado;

IV.candidatos à Assembléia Legislativa, na base de até Cz$ 0,20 (vinte centavos) por eleitor do respectivo estado.

Para fechar, transcrevemos o § 3.º do Art. 5.º, que estabelece: "Os recursos destinados à campanha e as doações recebidas serão depositadas em uma única agência bancária oficial, ficando o candidato obrigado, no prazo de 60 dias após as eleições, a prestar contas ao Tribunal Regional Eleitoral".

No sentido de garantir o cumprimento da lei, sugerimos a criação de um foro, que assuma o encaminhamento dos processos de denúncia de abuso do poder econômico. Acreditamos ser a OAB uma instância bastante apropriada para a constituição desde foro.

Nesse momento, ficamos com a seguinte indagação: como fazer para aprimorar a legislação? Não seria este o momento para avançarmos um pouco mais no aperfeiçoamento da matéria? Não seria o caso de encaminharmos uma luta no sentido de responsabilizar o poder público pelo financiamento das campanhas dos partidos, como já ocorre em alguns países europeus?

Temos a esperança de que a experiência das próximas eleições seja bem aproveitada, de modo que a futura Assembléia Nacional Constituinte possa aperfeiçoar a matéria no seu todo, instituindo uma legislação eleitoral moderna, voltada para o século XXI, que realmente dignifique o princípio democrático dos pleitos eleitorais. Enquanto houver abuso do poder econômico nas campanhas eleitorais, estaremos apenas engatinhando em matéria de democracia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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