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Atlântico Sul: zona de paz e de cooperação?

CONSTITUINTE

Atlântico Sul: zona de paz e de cooperação?

Shiguenoli Miyamoto

Professor de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista

No dia 16 de outubro de 1986 a imprensa publicou um documento de autoria do Itamaraty propondo a criação de urna zona de paz e cooperação no Atlântico Sul. Anteriormente, em 18 de maio do mesmo ano, uma carta tinha sido encaminhada pelo chanceler brasileiro Roberto de Abreu Sodré ao secretário geral da Organização das Nações Unidas, solicitando a inclusão do tema na agenda da 41? Assembléia Geral da ONU. Finalmente, no dia 27 de outubro, com o apoio de dez paises da Assembléia do Sul (entre eles a Argentina) e da vertente ocidental da África, o Brasil conseguiu fazer com que fosse aprovada a zona de paz e de cooperação no Atlântico Sul.

Mas esta iniciativa não encontrou unanimidade, já que oito países se abstiveram e, o mais significativo, os Estados Unidos votaram contra, criticando a imprecisão da proposta brasileira, argumentando, entre outras coisas, que a zona de paz não tinha seus contornos geográficos perfeitamente delimitados.

Qualquer observador medianamente atento sabe que projetos desta envergadura que não tenham apoio do país norte-americano apresentam chances reduzidas de sobrevivência e alcance extremamente limitado. O que significa dizer que tais acordos existem apenas nas cartas diplomáticas, visto que na prática nada e ninguém impedirá que os Estados Unidos (ou a União Soviética) utilizem a região militarmente quando e como bem entenderem, desde que seus interesses estejam em jogo, pouco se importando com a legitimidade ou não de seus atos perante a comunidade internacional. Afinal, esta é a política de poder adotada pelas grandes potências. Os exemplos da América Central, da África, do Oriente Médio, do Sudeste Asiático e da Europa Oriental, além do conflito das Malvinas, estão aí para comprovar a veracidade deste raciocínio.

Por isso mesmo, é ilusório pensar que o Atlântico Sul (ou qualquer outra parte do mundo) seja considerada definitivamente zona de paz, sem o beneplácito das grandes potências. Isto pode ser verdadeiro apenas para os países diretamente envolvidos, portanto, interessados no acordo. E mesmo assim com ressalvas. Senão vejamos.

Sabe-se muito bem que essa iniciativa, como é de praxe na condução da política externa brasileira, partiu do Itamaraty, o próprio presidente José Sarney referiu-se ao assunto em diversas ocasiões, seja na ONU, seja em reuniões multilaterais.

Contudo, uma outra facção tão importante quanto o Ministério das Relações Exteriores se manifestou contrária a esta proposta. Trata-se das Forças Armadas que, consultadas pelo Ministério antes da elaboração do documento final, fizeram questão de realçar as diferenças entre desmilitarização e não-militarização, visando, com isto, impedir que fosse reduzido seu raio de ação em assuntos que consideram de sua exclusiva competência.

Destarte, explicitou-se bem, no item 11 do documento, que "a questão da não-militarização do Atlântico Sul refere-se especificamente às atividades relacionadas às questões e interesses internacionais alheios aos da região, de maneira a não afetar de modo algum os programas de modernização e desenvolvimento tecnológico das Forças Armadas dos países da área. É importante, pois, que fique claramente entendido que o conceito de não-militarização da área por países a ela estranhos não pode ser confundido com o de desmilitarização no sentido de redução da capacidade de atuação militar dos países da região".

Como se vê, este tópico apresenta ressalvas muito grandes e não altera em absolutamente nada a política até agora implementada pelo governo brasileiro ou pelos seus vizinhos daqui e de além-mar. Ou seja, não se faz qualquer restrição ao aumento da capacidade bélica ou às pesquisas nucleares, visando o domínio do ciclo nuclear completo (que em última instância significa a possibilidade de construção da bomba atômica), conforme desejo manifestado em agosto último pelo ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Posições similares a esta são constantemente reforçadas pelos círculos castrenses. Como exemplo desse tipo de comportamento, em 21 de junho de 1985 o almirante José Maria do Amaral Oliveira, ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), colocava-se frontalmente contra a inclusão de qualquer artigo na futura Constituição impedindo a confecção do artefato nuclear, alegando não saber o que poderia acontecer no futuro.

As denúncias constantes feitas pela imprensa sobre a existência de projetos paralelos ao Acordo Nuclear firmado pelo país com a República Federal da Alemanha em 1975, executados pela Marinha, pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) da USP, assim como a questão das instalações da serra do Cachimbo (Pará), indicam visivelmente que existe um discurso militar para consumo da sociedade pregando a paz no continente.

Aliás, isto não é de se estranhar, até porque os estrategistas militares existem exatamente para pensar a guerra. E esta necessariamente leva em conta o fortalecimento do poder nacional frente a um possível opositor. Claro que no caso brasileiro isto só pode ser considerado em termos regionais, porque um confronto bélico com a União Soviética é simplesmente impensável. No raciocínio dos bons estrategistas, a guerra, vale lembrar, só é possível com países cujas forças estejam relativamente equilibradas.

Se, no exemplo nacional, a concepção geopolítico-militar se apresenta dentro desses parâmetros, o mesmo pode ser dito em relação à Argentina, cujo programa nuclear se encontra em fase mais acelerada ainda que o brasileiro, além do reforço às despesas militares no período pós-Malvinas.

Não se deve esquecer ainda que, embora tenham assinado o Tratado de Proscrição de Armas Nucleares na América Latina em 1967 (conhecido como Tratado de Tlatelolco), nem o Brasil nem a Argentina ratificaram em 1968 o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), chegando o primeiro a encaminhar às chancelarias dos países latino-americanos (em abril de 1968) um memorando explicando por que se recusava a assinar tal documento.

Dentre os vários argumentos levantados pelo Brasil, alegava-se, naquela ocasião, que o referido projeto feito pelos governos norte-americano e soviético não continha cláusulas destinadas a prevenir a proliferação vertical das armas nucleares por parte das potências já possuidoras da bomba atômica. Quer dizer, quem conseguiu o domínio da tecnologia nuclear tudo bem, mas impedia-se agora o acesso aos não-possuidores. Na ótica brasileira, isto era inaceitável para o país, que exigia o direito de obter este tipo de tecnologia, visto como essencial para seu desenvolvimento. Esta postura foi inclusive defendida pelo ex-embaixador Araújo Castro nos Estados Unidos, que considerava tal acordo uma tentativa de congelamento do poder mundial, dividindo o globo em dois grupos: um, de países adultos (possuidores de tecnologia nuclear), e outro, de países imaturos (desprovidos de tecnologia nuclear).

Pode-se perceber, pois, que entre o discurso e as práticas governamentais existe um fosso insuperável. Fala-se em paz, em zonas de cooperação, mas não se abre mão do poderio bélico. No documento apresentado à ONU está perfeitamente clara a diferença entre desmilitarização e não-militarização, atendendo aos anseios militares (e não era apenas uma diferença semântica, segundo o ministro da Marinha, almirante Henrique Sabóia).

Torna-se assim pertinente perguntar qual a eficácia da existência desta zona que, além de não contar com a tutela norte-americana (que julga esta uma área sua de influência geoestratégica), tem como contrapartida a possibilidade de fortalecimento militar dos países ribeirinhos do Atlântico. Afinal, se não há nenhum obstáculo ao desenvolvimento de suas indústrias armamentistas (assunto de decisão interna de cada país), e se a recomendação da ONU é que haja, a partir desse momento, a redução de presenças militares estranhas à região, determinando que sejam proibidos armamentos nucleares e determinando que se impeça que conflitos estranhos à área sejam aí instalados, a única hipótese plausível é que os países se fortaleçam prevendo um dia um confronto entre si. Isto é, Brasil versus Argentina, para saber quem "realmente manda" nesta parte do hemisfério. Tudo isso segundo a concepção militar, obviamente.

A recente visita de José Sarney a Buenos Aires coloca, em princípio, um ponto final na secular rivalidade entre os dois Estados acerca de pretensas hegemonias na América Latina, deslocando o discurso geopolítico para um plano secundário. Se, na década passada, o clima era de visível desconfiança, chegando inclusive a delicados momentos, como por ocasião da construção de Itaipu, esta década tem mostrado uma cordialidade ímpar entre a Casa Rosada e o Palácio do Planalto, principalmente após o fim dos regimes ditatoriais que em ambos os países prevaleceram. A perdurar tal clima, as perspectivas futuras podem ser consideradas extremamente otimistas.

Deve-se, todavia, encarar com reservas a retórica pacifista proclamada no continente, mormente no exemplo mais próximo, ou seja, o Brasil. Pelo menos não se deve acreditar nisto enquanto as Forças Armadas não tiverem suas funções precisamente definidas e não se encontrarem submetidas ao poder civil, tema este que deverá suscitar agudas discussões na feitura da nova Constituição.

Finalmente, é bom enfatizar que a possibilidade de concretização de uma verdadeira zona de paz e de cooperação no Atlântico Sul só se tornará realidade quando alguns pontos forem atendidos: ao nível interno dos Estados, a supremacia do poder civil sobre o poder militar; ao nível mundial, a obediência às convenções internacionais pelas grandes potências, respeitando a soberania dos países da área; ao nível regional, a resolução do problema das ilhas Malvinas; o sepultamento definitivo dos projetos militares expansionistas apoiados nas teorias geopolíticas; na vertente ocidental africana, a resolução do apartheid na África do Sul e a independência da Namíbia com a retirada de tropas sul-africanas desse país.

No momento em que estes fatos se tornarem realidades concretas, poder-se-á falar então, sem nenhum receio, em integração regional, em acordos duradouros de qualquer espécie, e em zona de paz nos dois lados do grande lago atlântico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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